Há textos que me assombram. Têm ideias e imagens que me perseguem. E estas impõem-se sobre as coisas com que me cruzo. Como se, depois de os ler, já não pudesse ver do mesmo modo, ficando o meu olhar capturado por um ponto de vista exterior. É um processo bonito (porque se abre à alteridade e a um entendimento do mundo que inclui o outro como uma forma de compreensão mais vasta). Mas é também assustador perceber como aquilo que achava ser único, é afinal uma colecção de fragmentos alheios. Faço esta confissão porque enquanto via Domangchin yeoja (A Mulher Que Fugiu, 2020), de Hong Sang-soo, não pude evitar recordar uma crítica de Luc Moullet, escrita para os Cahiers du Cinèma (quando ainda eram amarelos), sobre Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953), de Kenji Mizoguchi, que me vem acompanhando desde que a li, há anos.
Nesse que é dos pedaços de escrita mais inspirada do crítico-realizador (que na altura tinha apenas 22 anos – o texto é de 1959), Moullet defende que Mizoguchi trabalha uma simetria narrativa e dramatúrgica interna ao próprio filme com o propósito de encontrar na circularidade uma espécie de niilismo fatídico e cruel. “A cada cena corresponde uma outra, semelhante no tema, mas diferente na forma: dois mortos pela lança, duas aparições de fantasmas, duas idas à cidade; por duas vezes Ghenjyro faz girar o seu torno, etc. A cada movimento corresponde um movimento contrário, daí a introdução e o epílogo da chegada ao mercado.” E conclui, “Mizoguchi ultrapassa o erro e apaga-o no regresso. A caminho do nada, nesse ir e vir, ele substitui o que podemos, ao menos, considerar como a presença do nada.”
Em que se traduz a repetição dentro do cinema de Hong Sang-soo?
Em A Mulher Que Fugiu também tudo se organiza em duplas. Por duas vezes se visita a casa de uma amiga distante. Por duas vezes se abre uma janela e se respira o ar fresco do exterior. Por duas vezes a câmara se lança numa panorâmica para a paisagem, enquadrando o monte adjacente, e por duas vezes se faz um raccord desse mesmo monte visto a partir de uma, outra, janela (e por duas vezes é nesse momento que entra uma música na banda sonora). Por duas vezes se faz um zoom out, de uma janela para o interior da divisão. Por duas vezes alguém descasca uma maçã, delicadamente, e a oferece, aos pedaços. Por duas vezes se bebe café e por duas vezes se bebem bebidas alcoólicas. Por duas vezes se vê ou se fala de galos e galinhas. Por duas vezes se vai ao jardim. Por duas vezes se conversa no sofá, e por duas vezes se conversa, frente a frente, junto a uma janela. Por duas vezes se almoça e por duas vezes há fogo (na grelha, e no estrugido queimado da frigideira que se esqueceu ao lume). Por duas vezes se olha para imagens de câmaras de vigilância. Por duas vezes Gam-hee (Kim Min-hee) caminha sozinha pela rua. Por duas vezes se fala de um ex-companheiro que fala demais (e se gosta de ouvir). Por duas vezes se toca no joelho da amiga para a reconfortar. E por duas vezes há um gesto de carinho (um abraço, na noite, com o cigarro entre os dedos, e doutra vez, um mão que se sobrepõe a outra, sobre uma mesa de café). Todas as conversas entre amigas são repartidas em dois momentos distintos. E, por fim, por duas vezes se vai ao cinema (ver o mesmo filme – da primeira vez a câmara faz uma panorâmica da tela para a plateia e da segunda faz o inverso, passando dos espectadores para o ecrã).
Só que não.
Em A Mulher Que Fugiu também tudo se organiza em triplas. São três as amigas que Gam-hee reencontra e são três as conversas, frente a frente, à mesa de refeição. E são três vezes aquelas em que conta, a cada uma das amigas, que é a primeira vez, em cinco anos, que está longe do marido. São três os ex-amores que se convocam, em conversa, e são três as separações difíceis e até litigiosas que se aludem. São três os homens que aparecem no filme, sempre à porta (nenhum é convidado a entrar), sempre de costas para a câmara, sempre descompostos por mulheres (primeiro com um sorriso, depois com raiva, por fim com desprezo) e são os três ridículos, cada um à sua maneira. Só que também não. Em A Mulher Que Fugiu também tudo se organiza segundo a unidade, já que cada cena é filmada num único plano, sem cortes, sem contra-campos, tudo em continuidade, tendo apenas o zoom e a panorâmica como mecanismos de condução, em continuidade, do olhar do espectador (que funcionam como pontuação, vírgulas e travessões, respectivamente). E, é importante recordar, só há um, e um só, gato e um, e só um, carro. Mas as coisas também se organizam em quartas, já que são quatro as vezes que entra a música em cena e, portanto, quatro são os andamentos em que se constrói o filme.
Fica, no entanto, por perceber em que se traduz a repetição dentro do cinema de Hong Sang-soo.
Se, por um lado, há essa ideia de um eterno retorno das relações aos mesmos lugares, às mesmas situações e às mesmas emoções, independentemente dos corpos e das pessoas envolvidas – já que o filme nos mostra gestos e sentimentos constantemente reciclados, como num labirinto de espelhos inultrapassável, onde se vive um perene fado mimético (de certo modo, o mesmo processo que descrevia, no início deste texto, em que me sentia capturado pelas vivências/olhares dos outros). Por outro lado, o filme transcende esse formalismo encapsulado ao introduzir o ímpar (o “um” e o “três”) como números estruturantes. Eles são as hipóteses de fuga. É esse ímpar que, finalmente, revela o mistério do título. Isto é, há, afinal, duas mulheres que fugiram. Aquela, de que se fala numa conversa, logo no início, que desapareceu de um dia para o outro, abandonando, sem explicações, o marido e a filha – o escape possível à rotina, à família e à vida pré-programada: a simples evaporação. E depois, há outra mulher que foge, a protagonista, quando decide, no final, voltar para a sala de cinema, recusando o mundo lá fora, para se ficar com um “lá fora” inventado no ecrã (não é, afinal, o cinema a única arte vaporosa). São duas mulheres, uma ímpar, em movimento centrífugo, que se escusa à vida , e outra, par, em movimento centrípeto, que acaba por também se escusar à vida, ainda que doutro modo, participando dela, mas preferindo o fantasma das coisas.
Se Mizoguchi, segundo Moullet, procurava, através da repetição, convocar a “presença do nada” como desígnio do viver, Hong Sang-soo afirma, agora, que esse “nada” não é inescapável, mas que a melhor fuga é aquela que participa da charada da vida com uma indolência solar. Como um gato, que desaparece atrás dos raios de sol. Ou como um cinéfilo, que se esconde por entre os feixes de luz do projector.