Na introdução da primeira parte desta crónica, Peter Bogdanovich falava-nos das personagens de The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952), dos nomes atribuídos a Wayne e O’Hara, que expunham uma deriva sentimental de John Ford, uma paixão por Katharine Hepburn saída da rodagem de Mary of Scotland (Maria Stuart, Rainha da Escócia,1936): ela fez-lhe frente e ele gostou. Ford, de ascendência irlandesa e católico, casado e pai de dois filhos, terá mantido uma relação com Hepburn, desfeita algures em 1941, quando a felina actriz se encontrou com Spencer Tracy, com quem se relacionaria dentro e fora do ecrã, química atiçada em Woman of the Year (A Primeira Dama, 1942) de George Stevens, que perduraria até à morte de Tracy, numa das relações adúlteras mais comentadas em Hollywood. Mas, ainda Ford e Hepburn, para assinalar que à vigência da relação terá correspondido talvez o período mais prolífico do cineasta: de 1939 a 1941, antes de ingressar na Marinha, um número impressionante de oito filmes, onde se incluem Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939), Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939), The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira, 1940) e How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941).
A fechar o primeiro acto de The Quiet Man, em duas linhas de diálogo, Wayne enumera as fundamentações daquele amor: a visão de uma rapariga no campo, com o sol a dar-lhe no cabelo; ela ajoelhada na igreja, como se fosse uma santa; e, finalmente, uma mulher que vem à casa de um homem para a limpar. É como se Ford descrevesse as suas opções no filme, a articulação das cenas e dos planos (a primeira aparição de O’Hara) e a construção dos personagens, o de Mary Kate, uma combinação das mulheres de Ford de que falava Bogdanovich, uma mulher selvagem e dócil, irascível e pura.
É como se Ford descrevesse as suas opções no filme (…), uma combinação das mulheres de Ford de que falava Bogdanovich, uma mulher selvagem e dócil, irascível e pura.
Sean Thornton (Wayne) está de regresso a Innisfree, povoado junto à costa no norte da Irlanda, depois de uma longa estada em Pittsburgh, na Pensilvânia. Na primeira sequência, Ford exercita a memória do espectador e replica o enquadramento de Stagecoach, que assinalara a entrada de Wayne no seu cinema: Sean sobre a carroça em movimento, mas com uma paisagem, que contradiz o deserto americano, pontuada por pequenas habitações diluídas nos amplos prados. No primeiro plano de O’Hara, do ponto de vista de Wayne, há um latejado de várias cores, do prado e das árvores, de vegetação e de flores, da indumentária e do cabelo longo e ruivo de Mary Kate, que enfeitiçam o receptor e desafiam o equilíbrio cromático do enquadramento, um uso notável das combinações da cor e do movimento interno do plano que serão recorrentes durante o filme. Pouco depois, no primeiro encontro com Mary Kate, à saída da Igreja, Sean enche a palma da mão com água benta, que O’Hara usa para se benzer, um privilégio dos noivos, num primeiro desafio da dupla à comunidade: Wayne é alguém que viveu noutro mundo e no regresso às origens testará os usos e os costumes locais. Um projecto pessoal de Ford, homage à herança irlandesa, estabelecido nos anos 20, um guião a que dedicou largos períodos, a partir de uma primeira versão encomendada a Richard Llewellyn (autor de How Green Was My Valley), que o cineasta reescreveu com a ajuda de O’Hara, que o dactilografou no Araner.
Ford arrastou para a sua Irlanda mais dois dos seus habitués: Ward Bond, um dos seus reverendos dados à bonomia e Victor Mclaglen, o bobo, que aqui é o mais velho dos irmãos Danaher, líder de uma casa de vários homens e de uma mulher, a irmã mais nova de quem Mclaglen é uma espécie de tutor, a solteirona Mary Kate, afamada temperamental e caprichosa, denunciada pelo cabelo ruivo. Como Wayne adquiriu o terreno contíguo à propriedade dos Danaher, que há muito McLaglen pretendia anexar, o irmão mais velho vai tornar-se o rival de Wayne e, escoltado na tradição, vai procurar senão impedir, pelo menos retardar o noivado daquele com a irmã. Em contraponto com o canastrão McLaglen, Sean começa por se estabelecer, e ganhar a simpatia da comunidade, como um homem tranquilo, que evita conflitos, sendo que isso oculta um segredo do passado, que Ford guardará para mais tarde e que também não revelaremos aqui, mas que atribuirá progressivamente à conduta de Wayne uma covardia, também aos olhos de O’Hara, e que será um dos motores da intriga.
Os bares, apenas frequentados por homens, introduzirão as baladas, sons de acordeão e gaita de foles, canções que traçam narrativas e histórias tradicionais, regadas com copos altos de cerveja. Nas conversas sobre Sean, a América é associada a um mundo novo, um progresso materializado também em objectos, como o saco-cama, olhado pelos locais como uma grande invenção e que participará em várias cenas quando se estabelecem essas distâncias para uma modernidade, mas que também faz um raccord, personificado em Wayne, com o western, o cowboy e o outlaw. Este preâmbulo apontará o conflito entre a Irlanda e o mundo novo como o instigador dos avanços e recuos na relação amorosa, com Sean a procurar seguir os preceitos, a pedir a mão de Mary Kate ao irmão e depois a cortejá-la, mas sempre a tentar encurtar etapas: a modernidade traz aceleração, transitoriedade. Nestas tensões há também sintomas da guerra dos sexos, com as mulheres entregues apenas a um quotidiano de afazeres no domicílio: Mary Kate é tanto irmã, como mãe e cozinheira daquela legião de homens. Mas, se O’Hara pretende libertar-se deste espartilho para se juntar a Wayne, exige fazê-lo em concordância com a tradição, e fazer-se acompanhar de um enxoval que está na família há várias gerações, objectos vários, mobiliário e um piano, que têm tanto de utilidade como de memorabilia. Um calendário no namoro, de mediadores, de passeios, de bailes, mundos em paralelo que precisam de tempo, como um conto de fadas, em que Mary Kate fala de cavalos e arados e Sean responde com tractores.
a América é associada a um mundo novo, um progresso materializado também em objectos, como o saco-cama, olhado pelos locais como uma grande invenção e que participará em várias cenas quando se estabelecem essas distâncias para uma modernidade
Uma ode, então, ao folclore irlandês, com apontamentos de um confronto sadio e irónico entre o catolicismo e o protestantismo, com os padres associados ao uso de uma linguagem cifrada, antiga, um confessionário fora da igreja, como quando Mary Kate segreda em irlandês ao padre Ward Bond, que apesar de partilharem a casa, ela não dorme com Sean, pois este negligenciou a necessidade de exigir ao irmão o resgate do seu enxoval. O espectador, a quem não é facultada a tradução do irlandês, só se aperceberá do conteúdo da conversa quando mais uma vez se aludir ao saco-cama como objecto representativo de Sean. Wayne é, como quase sempre em Ford, um personagem silencioso e melancólico, que guarda para si as mágoas e as frustrações, sendo que o único que conhece o seu segredo herdado da América é um vigário letrado em desporto, que tem o curioso nome de Playfair.
O amor é o centro do mundo, conforme as instruções do Sturm und Drang e do Werther de Goethe, mas é também “essa força interior, a mais sagrada e divina do mundo, que confunde toda a ordem do mundo”. O Cinema de Ford estará à altura desse grande amor, dessa obstinação que questiona os equilíbrios do mundo, e encontra na desmesura da natureza uma correspondência e um vínculo, como na sequência em que um temporal desenha o encontro dos amantes, um amor que desafia os elementos, que os propaga sob a forma de luzes e de sons. É também esse ímpeto, essa torrente de elementos, que encontramos na magnifica cena da casa: as portas batem, por entre clarões vemos os ramos das árvores que castigam as janelas, é como se a casa fosse uma embarcação em movimento, guinada pelo vento e pelas memórias, uma potente instalação dentro do filme, em que imagens e sons, campo e fora de campo, ameaçam invadir a plateia. Tal sugestão oferece-nos um paralelo com The Wind (O Vento, 1928) de Victor Sjöström, e a viagem inicial de Lillian Gish, em que o vento varria a areia contra as janelas do comboio, como uma teia que cercava a protagonista, um vocabulário assente numa saturação de efeitos de luz e de sombras. A um canto da casa, Mary Kate está oculta pela escuridão. Ela tenta fugir, abre a porta e o vento redobra, mas Sean puxa-a para junto do seu corpo, ele beija-a, ela esbofeteia-o. Já não é uma arte, nem uma técnica, o Cinema, como murmurava Jean-Luc Godard nas suas Histoire(s) du cinéma (1989-1999), é um mistério, uma bruxaria. Ford há-de replicar o capital simbólico da casa, da casa que se constrói por amor, em The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962), ainda Wayne a cultivar um jardim no deserto para Vera Miles, que acabará por destruir, depois de abdicar do heroísmo a favor do futuro senador Jimmy Stewart, a quem também cedeu o amor da doce Hallie.
Uma boa luta é um dos métodos preferidos de Ford (acompanhado por Hawks) para os homens litigarem, para resolverem as suas discordâncias. Em The Quiet Man, a participação expande-se a toda a comunidade, incluído mulheres e padres, como num feliz desfecho de um conto popular, pontuado por alçapões morais: uma comunidade conservadora, com tópicos de uma estrutura medieval, acolhe um homem, testemunho de um lento progresso e ao fundo há máquinas que chegam aos campos.