Mamas, don’t let your babies grow up to be cowboys
Don’t let ‘em pick guitars or drive them old trucks
Let ‘em be doctors and lawyers and such
Mamas don’t let your babies grow up to be cowboys
‘Cause they’ll never stay home and they’re always alone
Even with someone they love
Willie Nelson & Robert Redford – The Electric Horseman (Pollack, 1979)
Um “grupo de marginalizados, de pessoas obsoletas a fazer algo obsoleto nos EUA”, diz-nos Clint Eastwood em The Eastwood Factor (Richard Schickel, 2010) na apresentação da família de Bronco Billy (1980), um dos projectos mais pessoais do cineasta, atravessado por tons de fábula, “lindo e inocente”, em que “um vendedor de sapatos persegue o seu sonho de ser um Tom Mix moderno”, referência da educação sentimental do jovem Eastwood, que já tínhamos encontrado em Honkytonk Man (A Última Canção, 1982), nas acções de Whit, o adolescente e filho do cineasta, Kyle Eastwood. Um espectáculo de circo em que se celebram as memórias e as tradições do Oeste americano, outrora popular, que o filme encontra perante bancadas despovoadas e aplausos vagarosos. A deambular entre as montanhas rochosas e as extensas pradarias do Oeste, de vilarejo em vilarejo, um mundo perfeito de viagens em velhos camiões e contentores pelas várias américas, um bando de condenados que encontrou naquela companhia uma possibilidade de redenção, de crença na restituição do humano, número de ilusionismo liderado por Eastwood, por Bronco Billy McCoy, o gatilho mais rápido do oeste, que crescera num quarto minúsculo em New Jersey, até encontrar as paisagens da América na sala de Cinema e que vendeu sapatos até aos 31 anos. A ilusão do espectáculo, em digressão pelo coração da América, é também uma purga da cidade, associada ao vicio e à corrupção do humano.

Um negócio em ruínas, sem pecúlio para pagar salários, um bando de decrépitos ainda animados pelo show business, uma família unida na corda de Bronco Billy, na obsessão de agregar várias peças do filme da História da América, onde em breve nascerá uma criança de um casal índio que se escapara de uma reserva. Este mundo à beira do fim é assunto reiterado e Eastwood parecia querer encerrá-lo em The Mule (Correio de Droga, 2018), mas felizmente anuncia-se para breve a estreia de Cry Macho, em que o cineasta contrariou os seus noventa e um anos e voltou a colocar-se dos dois lados da câmara. Earl Stone, outlaw de 80 anos, correio de droga para debelar dívidas da horticultura, confessará o arrependimento por ter depreciado a família, em favor do cuidado pelas suas plantações de lírios: “Family is the most important thing. Don’t do what I did. I put work in front of family”.
O protagonista de The Mule é, então, um dos mais ricos exemplares de um compêndio da sua galeria de protagonistas envolvidos em narrativas que derivam num conflito para a personagem, um obstáculo para a superação do protagonista que vemos a mudar ao longo do percurso, a walking contradiction. Um road movie como A Perfect Word (Um Mundo Perfeito, 1993), e se o mundo perfeito titulado no filme protagonizado pelo outlaw Costner é em parte decifrado pela ironia, em The Mule ganha laivos de autenticidade: a paisagem testemunha uma América a extinguir-se, tragada pela velocidade, pela substituição de Andy Garcia por um gang sem código, sem honra e sem memória, e com Earl Stone animado por alguém identificar o seu porte com a silhueta clássica de Jimmy Stewart.
Eastwood está sempre disponível para ser maltratado, violentado fisicamente, um masoquismo que ele exibe com intencionalidade desde a primeira a primeira realização.
Antoinette Lily, miss Lily (Sondra Locke), pergunta a Eastwood – “are you for real?”, ao que Bronco responde – “I’m what I want to be”. Um pouco antes, ela lacrimejara e ele sugerira-lhe que deixasse a cerveja soltar-lhe as lágrimas. Lilly diz que não, que é o fumo do bar que lhe entra pelos olhos. Encena-se a vida e o melodrama como um standard do jazz, com nota máxima para o resgate do cinema clássico, um campo e contracampo em que uma mulher mimada e fria acaba a render-se aos braços do cowboy, a fantasia de Eastwood a patrocinar a comovente transformação do personagem de Locke.
Bronco Billy situa-se a meio da viagem conjugal de Eastwood e Locke, um dentro e fora do ecrã de 13 anos e vários filmes, dos quais dois nos voltam à memória: Every Which Way But Loose (Um Indomável Rebelde, 1978), o maior êxito comercial de Eastwood com a realização entregue a James Fargo, um dos seus homens de mão, um buddy movie em que o parceiro de Philo Beddoe é o orangotango Clyde, com Locke a interpretar Lynn Halsey-Taylor, uma aspirante a cantora, trapaceira disponível para enganar o crédulo Philo; The Gauntlet (Barreira de Fogo, 1977), material de acção conforme as premissas do padrinho Don Siegel, um detective mal afamado de Phoenix tem a incumbência de trazer Sondra Locke, testemunha fulcral de um julgamento, love story entre o bad lieutenant e a prostituta, fábula em que tudo se conquista com violência e sofrimento, contra todos e todas as autoridades, incluindo uma chuva de balas numa longa avenida, via sacra que separa Eastwood e o frágil corpo de Locke do destino.

São encontros acidentais, os embates entre os corpos de Locke e Eastwood, mundos em conflito, duas Américas, a réplica da mitologia do Oeste de Bronco e os vícios dos negócios da cidade, entre uma caravana que oferece espectáculos em orfanatos e sanatórios e uma América degenerada pela modernidade, poluída pelo dinheiro, um eco da forma com que John Ford nomeou os retratos dos heróis solitários de que falamos no seu Black Lives Matter Sergeant Rutledge (O Sargento Negro, 1960). A tenda do circo do Oeste é como um set de filmagens, dirigida por um Eastwood intenso, sargento de ferro poucas vezes condescendente, como um realizador de pulso forte numa rodagem acossada por produtores: é ele quem concentra a autoridade, de despedir e de contratar, de resolver problemas sem acatar instruções de ninguém.
No entanto, todos estes processos não estão isentos de ironia, também no exercício de domínio sobre miss Lily, uma guerra dos sexos, o tal dentro e fora, como quando Locke procura alterar as míseras linhas de introdução à roda da fortuna, onde o seu corpo gira à espera de escapar ileso às facas lançadas por Eastwood. Uma tenda que é afinal uma metáfora da Malpaso, a produtora onde Eastwood garantiu o estatuto e a liberdade criativa desde o inicio dos setentas e onde, a exemplo de filmes anteriores, a violência é um modo de transpor desconfianças mútuas, um Eastwood disponível para ser maltratado, violentado fisicamente, um masoquismo que ele exibe com intencionalidade desde a primeira a primeira realização, Play Misty for Me (Destinos nas Trevas, 1971), estendido até The Mule, no rosto ensanguentado de um velho que olha o espectador, um cristo à procura de redenção in mysterious ways.

Sam Bottoms, que interpreta o especialista no laço Leonard James, é um dos membros da família, que a quimera de Eastwood redimiu de uma infância de abusos. Bottoms revela-se uma escolha notável de casting, no olhar politico afinado e afiado, a convocar memórias, do Cinema e dos traumas recentes da América. Numa noite de copos e de uma pequena escaramuça com a polícia, Bottoms acabará detido, e encarcerado por ter escapado à convocatória com destino ao Vietname. Em The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971), Bogdanovich juntava as peças numa América interior na década de 50, em que ao fim de um tempo, que coincide com o fecho da sala de Cinema da cidade, se associa a uma desagregação da comunidade, na separação de um bando de jovens inadaptados, alguns a responderem às convocatórias para a Guerra da Coreia, que para o espectador do início dos anos 70 ligava o interruptor da guerra injustificada, sem fim à vista no Vietname, uma carnificina que chegava aos lares americanos através da televisão.
Se o rosto e o rosnar de Eastwood são sinais do incómodo feroz da humilhação, a ambivalência da persona supera uma eventual quebra de orgulho, e pelo semblante do cowboy passa um doce e libertador vestígio de submissão.
Neste retrato melancólico, Bodganovich empurrava a Nova Hollywood para a filiação, homage ao cinema clássico, no enterro de “Sam The Lion”, o fordiano Ben Johnson, e na morte do pequeno Billy (espécie de mascote da cidade), varrido como poeira pela velocidade e por um carro na estrada, interpretado, então, por Sam, que tinha acompanhado o irmão mais velho – Timothy Bottoms (um dos protagonistas), casting acidental de um rapaz sentado numas escadas, ao qual Bogdanovich perguntou se sabia representar. Quase uma década depois, no ano anterior a Bronco Billy, Sam Button (já com 25 anos) foi Lance B. Johnson, surfista e um dos alienados na lancha que descia ao coração das trevas do Vietname, comanda por Martin Sheen, no Apocalypse Now (1979) de todos os excessos de Coppola.

Eastwood não frustra a convocatória de Bottoms, e transforma a cena em que procura libertar o seu homem do laço junto do xerife, numa das mais ricas do filme, na articulação da linguagem do médium, do uso da sua persona e da ambiguidade que a mesma transporta. Bronco combina o encontro com o Xerife Dix (Walter Barnes), e tenta suborná-lo com o que resta das poupanças da companhia itinerante. Numa altercação entre close-ups do rosto de Eastwood e planos de corpo inteiro da figura obesa e repelente do Xerife, este humilha o cowboy do circo, fá-lo afirmar que o homem da lei e da ordem é afinal mais rápido que ele, todos os dias. Como uma boa cena que tem inicio e desenvolvimento, não precisa de um fecho para identificarmos a corrupção de uma região, em que o suborno adquire um tom benigno, quando comparado com aquela figura tão boçal quanto petulante da autoridade. Se o rosto e o rosnar de Eastwood são sinais do incómodo feroz da humilhação, a ambivalência da persona supera uma eventual quebra de orgulho, e pelo semblante do cowboy passa um doce e libertador vestígio de submissão.
Quando a tenda de circo arde, é no elogio de um território vasto, das pradarias e dos antílopes que se avistam, que Eastwood encontra um refúgio, uma catarse. A personagem complexifica-se na relação com a paisagem que adquirira um caracter mítico, preservada pelo Cinema, pelos seus mitos, as suas problemáticas e arquétipos. No ano anterior a Eastwood, uma das parelhas proeminentes da left wing de Hollywood, Redford e Pollack, produziu um cowboy com evidentes tangentes a Bronco Billy: The Electric Horseman (O Cowboy Eléctrico, 1979).
Robert Redford interpreta Sonny Steele, antigo campeão dos rodeos, que o filme encontra como o rosto de pacotes de cereais de pequeno-almoço, em viagens sucessivas num descapotável que como um cavalo moderno atravessa extensas paisagens, que ainda são a memória da América, que contrasta com shoppings, filas de compras, lugares iluminados e atulhados de gente onde a publicidade é a religião da nação do sucesso e da abundância, nas tensões entre tradição e modernidade. Redford procura persuadir os camaradas (onde encontramos Willie Nelson, exemplar do country, da tradição), e persuadir-se, das virtudes daquele circuito, de que os dias de hotéis, limusines e filas de compras são preferíveis a envelhecer em rodeos, em que mais cedo que tarde a pata de um touro iria pisar-lhe a cara, mas o copo de whisky esvaziado diz o contrário. Entretanto, a dificuldade do cowboy em cumprir horários e condutas, origina acertos de produção: colocam outro homem vestido de cowboy eléctrico, iluminado por holofotes, a percorrer o relvado. À interpelação de cowboy, “mas não sou eu”, o publicitário responde “eles não dão pela diferença”; o close-up do rosto de Redford assinala, então, o temor da perda da individualidade e da memória do cowboy, no prólogo da inflexão do itinerário do protagonista.


A próxima paragem do cowboy eléctrico é em Las Vegas, a grande invenção do artifício americano, um falso oásis plantado no deserto, lugar de néons, réplicas, fachadas de cartão, onde tudo se joga. Com a sua indumentária, um fato com um bordo definido por linhas de luzes brancas, montado no Rising Star (a verdadeira estrela, avaliado em 12 milhões de dólares), Redford escapa-se dos bastidores, percorre o palco, a plateia e várias salas do casino até que encontra as ruas de Las Vegas: a princípio, o cowboy é mais um elemento (as suas luzes e as do cavalo) da paisagem de néons, até que ele se desliga, desaparece numa rua escura e ficamos apenas com a percussão dos cascos do cavalo, libertos da tralha de sons da cidade.
Eastwood e o seu bando esticam a fantasia e armados de um cavalo e de um descapotável, tentam parar um comboio, sendo que um pouco antes alguém lembrara que há cem anos que não se assaltam comboios. Eles falham, claro, e não podemos afirmar que o falhanço foi glorioso.
Se podemos relacionar o filme de Sydney Pollack com o que juntou Alan J. Pakula a Redford – All The President´s Men (Os Homens do Presidente, 1976), em que o mundo opaco e corrupto da política encontra um paralelo com os meandros da publicidade e da televisão, que manipula os políticos, as instituições e a justiça, também nos lembramos de Jeremiah Johnson (As Brancas Montanhas da Morte, 1972), prévio encontro de Pollack com Redford em que este se furta à guerra e à América do século XIX para se abrigar na ancestralidade, na paisagem do Utah e no ecrã largo do western americano. A decisão de libertar Rising Star é anunciada por Redford num travelling que o junta ao cavalo, recortados por uma extensa e rochosa paisagem de uma noite americana. Se o cowboy de Eastwood é uma fantasia onde ele encontra a sua identidade, Redford resgatará a individualidade, e os direitos do seu cavalo, na liberdade do anonimato e longe dos vícios da cidade, sendo que tanto um como o outro se juntam no embate da tradição com o novo mundo, na defesa do individuo, da sua intimidade, na denúncia de uma comunidade poluída pelo dinheiro.
Eastwood e o seu bando esticam a fantasia e armados de um cavalo e de um descapotável, tentam parar um comboio, sendo que um pouco antes alguém lembrara que há cem anos que não se assaltam comboios. Eles falham, claro, e não podemos afirmar que o falhanço foi glorioso, pois o cavalo de ferro moderno passou incólume, mas é mais um episódio em que continua a jogar-se, ainda que de modo irónico, a História da América e do seu Cinema, um mundo perfeito e impuro suspenso no património de imagens, legado de cowboys e índios, um mundo a desaparecer na aceleração do nosso tempo. A nova tenda será confecionada pelas mãos dos residentes de um sanatório de alienados, liderados por um médico, fervoroso adepto do velho oeste. O epílogo de Bronco Billy, no movimento em círculo do cowboy e da sua assistente sobre o cavalo, perante uma plateia modesta mas lotada, deixa ver a cobertura preenchida por um sem número de bandeiras da América, elogio a um Cinema humanista e à ambição de um cineasta: costurar as contradições da América.

