Por defeito ou por hábito, os dois filmes de que me fui lembrando enquanto via Illusions perdues (Ilusões Perdidas, 2021) de Xavier Giannoli foram The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1993) de Martin Scorsese, e Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958) de Vincente Minnelli. A primeira referência parece mais óbvia: o fôlego romanesco e o fresco social presente no novo Giannoli dão o retrato ao pormenor da capital francesa no século XIX, dividida entre Realistas (aristocratas e clero) e Liberais (gente comum), algo que o cinema cada vez ousa menos (grandes produções com marca de autoria); não tivesse existido o J’accuse (J’accuse – O Oficial e o Espião, 2019) de Roman Polanski, teria dificuldade em referir outro exemplo em anos recentes. E gosto de escrever no calor das emoções e das reacções, sem recurso a mais informação do que aquela que vem de mim ou da ficha do filme no IMDb.

Quanto ao título de Minnelli a comunicação é mais subterrânea, e liga-se ao triângulo amoroso que existe em ambos os casos: o Lucien Chardon (Benjamin Voisin) de Balzac podia ser o Dave Hirsh (Frank Sinatra) que chega a uma cidade com a carreira de escritor por cumprir, e que se irá dividir entre duas mulheres, a de maior grau de sofisticação para quem ele olha também com o desejo de fazer parte do meio a que a mesma pertence (Gwen French no Minnelli; Louise de Bargeton interpretada no Giannoli por Cécile de France), e aquela que o ama e que fará tudo por ele, uma mulher de estrato social inferior alvo de preconceito (Ginnie Moorehead no filme de ’58; agora Coralie, papel que coube a Salomé Dewaels). É claro que em se tratando de arquétipos, não quero especular que James Jones se terá de algum modo inspirado em Honoré de Balzac, apenas dou conta de que as convenções praticadas e a estratificação social representam nos dois exemplos obstáculos às ligações amorosas, e que os filmes de Giannoli e Minnelli culminam com o destino trágico do elemento feminino que corresponde ao elo social mais fraco.
(…) o filme em si próprio como o modelo do grande cinema de época, denotando uma amplitude e minúcia de narração a que poucos ou mesmo nenhuns hoje se atrevem.
Xavier Giannoli é reincidente em produções de grande envergadura, o que é pouco habitual tratando-se de um realizador francês. Os seus filmes À l’origine (2009), e L’apparition (A Aparição, 2018) dão disso conta: alguém que se move com desembaraço no interior de uma teia romanesca complexa, quer em termos do número de personagens, como da escala dos acontecimentos. Se Giannoli fosse um cineasta americano por certo seria menos surpreendente a dimensão apresentada por alguns filmes seus. Tendo isto em conta, o salto que representa Illusions perdues é ainda surpreendente. O livro de Balzac ressoa no filme como a obra total que muito provavelmente é. E o filme em si próprio como o modelo do grande cinema de época, denotando uma amplitude e minúcia de narração a que poucos ou mesmo nenhuns hoje se atrevem. Se olhássemos para Illusions perdues como sendo uma partitura orquestral (para lá da música que se escuta no filme: Bach, Rameau, Rossini, Schubert, Vivaldi) – também para demarcá-lo já dos eventuais ataques de que se trata de obra académica –, podemos afirmar que a regência de Giannoli possibilita que escutemos todos os instrumentos que compõem esta Comédia Humana (dando uso a uma classificação cara ao prolífico escritor adaptado). Ter mão em tão enorme fresco, requer à partida um trabalho pormenorizado de adaptação de sentido crítico, passando por uma realização que torne vibrante cada momento, e uma montagem atenta e prolongada, decisiva para que o fluxo dos acontecimentos se mantenha intenso.

Mas o carácter mais pessoal de Illusions perdues diz respeito ao trajecto do realizador Xavier Giannoli, um autor que nunca foi consensual para os críticos de cinema do seu país (com os Cahiers du Cinéma e os Les Inrockuptibles na frente dos mais cépticos), pela heterogeneidade dos assuntos que trata, e por fazer uso de uma linguagem cinematográfica escorreita e sem maneirismos cerebrais, e que parece querer acertar com este filme contas antigas. Xavier Giannoli pode ser ali visto como se tendo dividido pelas figuras do protagonista, Lucien, o jovem que se desloca da província para Paris com sonhos de ascensão social e de triunfo artístico, e que no final verá desfazerem-se todas as suas ilusões; e o seu amigo e primeiramente adversário Nathan d’Anastazio (Xavier Dolan), escritor em começo de consagração que será responsável pela narração da história de Lucien, de quem no final dirá ser o objecto do seu próximo livro. Giannoli só poderia ter realizado Illusions perdues depois de ter perdido as suas.

 
         
         
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
            