Agora que também já há mulheres deputadas no Japão, achei que era bom se existisse, ao menos, uma mulher realizadora.
Kinuyo Tanaka em entrevista à revista Kinema Junpō, em 1953
Os cinéfilos de todo o mundo conhecem Kinuyo Tanaka (1909-1977) como a magnífica e prolífica atriz do cinema clássico japonês (contando com mais de 250 filmes ao longo de cinco décadas), mas muitos ignoram que a musa do mestre Kenji Mizoguchi e companheira de Heinosuke Gosho realizou, ela própria, seis longas-metragens, tornando-se a primeira cineasta japonesa no período após a Segunda Guerra Mundial (apenas precedida por Tazuko Sakane, cujos documentários e a única longa de ficção, realizada em 1936, estão hoje todos perdidos). Felizmente, a obra de Kinuyo Tanaka não teve o mesmo destino: restaurados pelos quatro estúdios japoneses nos quais trabalhou enquanto realizadora, entre 1953 e 1962 (Nikkatsu, Toho, Shochiku e Kadokawa), e recentemente distribuídos, em França, pela Carlotta Films, os filmes de Tanaka puderam ser vistos em algumas salas de cinema do Hexágono, nas últimas semanas de fevereiro, após uma notável estreia, no Festival Lumière de Lyon, em outubro de 2021.
Enquanto esperamos que a obra de Kinuyo Tanaka chegue a Portugal, proponho-vos uma viagem “a bordo” de quatro dos seus filmes, rumo ao Japão do pós-guerra. A decisão de concentrar este texto sobre apenas quatro das longas-metragens da cineasta (as três primeiras e a quinta a serem realizadas) prende-se com aspetos formais e temáticos da sua filmografia: contrariamente aos quarto e sexto filmes, Ruten no Ouhi (The Wandering Princess, 1960) e Love Under the Crucifix (Ogin sama, 1962), dois frescos históricos em tons sirkianos, os restantes filmes a preto e branco inscrevem-se na corrente moderna do gendaigeki (obras cuja ação decorre no Japão contemporâneo, por oposição ao jidaigeki, filmes em trajes de época). São estes: Koibumi (Love Letter, 1953), Tsuki wa noborinu (The Moon Has Risen, 1955), Chibusa yo eien nare (The Eternal Breasts, 1955) e Onna bakari no yoru (Girls of the Night, 1961). Quatro pérolas raras a descobrir com urgência e a saborear lentamente – como chá verde sobre arroz –, estes filmes espelham o percurso determinado e singular de uma voz autoral feminina que se ergueu num meio artístico e cultural até então dominado por homens.
Mizoguchi recusou sempre apoiá-la, renegando tacitamente todos os seus filmes.
A estrutura patriarcal da indústria cinematográfica japonesa, nos início dos anos 1950, terá constituído um verdadeiro obstáculo ao arranque da carreira de realizadora de Kinuyo Tanaka, então com 42 anos, apesar do seu estatuto de star desde a época do cinema mudo. Enquanto atriz, Tanaka colaborou com alguns dos maiores cineastas japoneses, como Yasujirō Ozu [Daigaku wa detakeredo (I Graduated, But…, 1929), filme mudo hoje praticamente perdido, ou Higanbana (A Flor do Equinócio, 1958), primeiro filme a cores do realizador], Mikio Naruse [Okaasan (Mother, 1952)] e, sobretudo, Kenji Mizoguchi, tendo protagonizado Saikaku ichidai onna (A Vida de O’Haru, 1952), Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) ou Sanshō dayū (O Intendente Sansho, 1954). Dos três cineastas citados, não obstante um certo ceticismo inicial relativamente à passagem da atriz ao “outro lado da câmara”, todos contribuíram eventualmente para a sua formação (nomeadamente Naruse, de quem foi assistente de realização), intervieram em seu favor perante os estúdios (assinando cartas de recomendação e apadrinhando certos projetos) ou colaboraram diretamente enquanto argumentistas (com destaque para Ozu e Keisuke Kinoshita, um dos seus mais fervorosos apoiantes). Só Mizoguchi recusou sempre apoiá-la, renegando tacitamente todos os seus filmes: tenha sido por orgulho ferido pelo facto de os seus sentimentos “menos profissionais” não serem retribuídos, ou por receio de ser ofuscado pelo talento de uma mulher, o que é facto é que a ruptura entre o mestre e a musa foi definitiva. Ainda assim, a marca pessoal deste cineasta bem como as de Naruse e de Ozu sentem-se de maneira evidente no tratamento dado por Tanaka aos dramas íntimos das heroínas dos seus filmes – todas mulheres, prostitutas, princesas ou poetisas, em busca de redenção, de amor ou, simplesmente, de um lugar na sociedade.
Na sua primeira realização, Love Letter, Kinuyo Tanaka filma, num estilo neo-realista próprio da época, o reencontro de um casal de apaixonados no Japão do pós-guerra, como fará Naruse dois anos mais tarde em Ukigumo (Floating Clouds, 1955). O filme insere-se na tradição do shomingeki ou shōshimin-eiga, nome dado pela crítica ocidental a este género de obras que retratam a vida quotidiana da classe média. A intriga, adaptação de um romance do escritor Fumio Niwa por Kinoshita, gira em torno de um negócio peculiar que se instala no efusivo bairro de Shibuya, em Tóquio, e que conduz Reikichi (Masayuki Mori), um veterano desempregado, antigamente escritor, ao encontro da comunidade local de prostitutas, que lhe pagam para que escreva pungentes cartas de amor em inglês, que estas remetem aos seus antigos clientes e amantes, soldados americanos repatriados, pedindo-lhes dinheiro.
Uma das mulheres que recorre a estes serviços é Michiko (Yoshiko Kuga), a paixão de juventude que Reikichi perdera de vista, e de quem ele guarda como único memento uma carta de amor, na qual esta lhe anunciava um casamento arranjado pela família contra a sua vontade. Mas o reencontro (numa estação de comboio, maravilhosamente filmado através da janela de uma carruagem) não será pacífico: apesar de viúva, Michiko teve um filho de um soldado americano, o que leva Reikichi a rejeitá-la, relegando-a à categoria vil e desprezável daquelas que durante a guerra vendiam o corpo ao inimigo. É interessante notar que Tanaka desempenha, neste primeiro filme, um pequeno papel de prostituta, aparecendo numa cena de rua em que Michiko é confrontada com os estigmas do seu passado.
The Eternal Breasts é, sem dúvida, o seu filme mais arrasador e ousado de Kinuyo Tanaka, tanto do ponto de vista temático quanto formal.
Através do duplo retrato de um homem endurecido pela realidade do pós-guerra e de uma mulher “pecadora” que faz tudo para voltar a “ser digna” daquele que ama, o dilema romântico no centro de Love Letters ganha contornos de uma reflexão existencial sobre a culpa e os desvios à moral em contexto de guerra: “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, declara a dada altura uma personagem secundária, atribuindo ao Japão a responsabilidade pelas consequências sociais da guerra. Ao olhar crítico sobre a atualidade do seu país, junta-se uma realização delicada que evolui em direção ao melodrama. Este primeira filme de Tanaka não passou despercebido à comunidade internacional, tendo sido exibido em competição no Festival de Cannes de 1954; mas é outro filme japonês, o drama histórico Jigokumon (Amores de Samurai, 1953), de Teinosuke Kinugasa, que recebe o Grand Prix.
Para a sua segunda longa-metragem, Tanaka recupera um argumento de Ozu, que não chegara a ser realizado, intitulado Tsuki wa noborinu/ The Moon Has Risen. Nele encontramos os temas prediletos do autor de Banshun (Primavera Tardia, 1949): variações agridoces em torno das relações intergeneracionais, que espelham um certo declínio dos valores da família e do casamento, face aos desafios e tentações da vida moderna. Desta vez, a atenção não recai sobre a figura paternal (interpretada pelo ator fetiche de Ozu, Chishu Ryu), mas sobre as suas três filhas, que representam diferentes facetas da juventude feminina na sociedade japonesa. A mais nova e independente, Setzuko (Mie Kitahara), é o verdadeiro motor da intriga, agindo como casamenteira entre a irmã do meio e um amigo de infância, mas sendo incapaz de assumir os seus próprios sentimentos pelo vizinho que a ajuda a pôr em prática os seus planos. Por meio de encontros e desencontros, mal-entendidos e conspirações, a intriga de The Moon Has Risen faz suceder uma série de peripécias ligeiras, pontuadas por momentos de poesia ao luar (algo forçada), em referência ao título do filme.
Não obstante alguns laivos de genialidade do argumento, nomeadamente na forma como é materializada a tensão entre a serenidade do Japão rural e o caos de Tóquio – por exemplo, a ideia do casal de apaixonados, que se correspondem por via de telegramas codificados contendo excertos de poemas de amor do Manyoshu (a mais antiga antologia de poesia waka nipónica) –, no seu todo, esta comédia romântica e familiar acaba por ficar aquém das restantes realizações de Tanaka, parecendo insuficientemente implicada no questionamento do papel reservado à mulher na sociedade japonesa: aqui, é-se apenas filha, irmã, (futura) esposa ou mãe. Também o estilo de realização, aplicando uma sintaxe clássica, contida e apurada – ritmo lento, ausência ou discrição dos movimentos de câmara, enquadramentos à altura de um personagem ajoelhado sobre um tapete (a famosa “câmara-tatami”), planos de detalhe de objetos comuns – explora uma estética do vazio claramente sob o signo de Ozu, mas carece de identidade e, sobretudo, de sensualidade, traço que se acentuará nas realizações subsequentes de Kinuyo Tanaka.
É o caso de The Eternal Breasts, sem dúvida o seu filme mais arrasador e ousado, tanto do ponto de vista temático quanto formal. Desta feita, é uma mulher, Sumie Tanaka (argumentista de vários filmes de Naruse, sem qualquer laço de parentesco com a realizadora) quem assina o argumento, inspirado na história (real) da vida da poetisa Fumiko Nakajō, interpretada por Yumeji Tsukioka. Isolada num meio rural, esta mãe trabalhadora, com dois filhos pequenos a seu cargo, vítima de maus-tratos por parte de um marido infiel, descobre na poesia a única escapatória à dureza da sua vida. Após a obtenção do divórcio, eis que o reconhecimento do seu talento e a publicação de uma primeira coletânea de poemas coincidem com o diagnóstico de um cancro da mama, que acabará por lhe ser fatal, aos 31 anos… Mas não sem antes viver uma nova experiência da sua feminilidade (e sexualidade) com um jornalista, vindo da capital para escrever um artigo sobre a sua doença.
A realização de Tanaka é cirúrgica mas sensível, sem pudor nem panos quentes e, sobretudo, sem qualquer forma de objetificação do corpo feminino: tal e qual uma mulher que apalpa os próprios seios em busca de nódulos, gesto de auto-cuidado necessário, mas ainda tabu, que a cineasta se permite mostrar mais do que uma vez. Essa forma tátil e crua de filmar o corpo da heroína é corolário de um female gaze, o único capaz dar a ver a experiência interior feminina, expondo as suas cicatrizes psicológicas (tão profundas quanto as físicas, que nunca chegamos a ver), bem como as suas pulsões mais íntimas e carnais (como o prazer de um banho de imersão, ou o desejo de partilhar a cama com um homem que também a deseja). Mas o idílio romântico entre a poetisa e o jornalista será breve: também aqui, Eros e Thanatos, pulsão de vida e pulsão de morte, andam de mãos dadas. Perto do fim, Fumiko não é capaz de acreditar que um homem possa sentir outra coisa que repulsa pelo seu corpo esquartejado, e vive esta aproximação como a de um abutre face à sua morte eminente. As cenas finais são puro melodrama, pathos a rebentar pelas costuras de um corpo que percebeu, tarde demais, que nunca é demasiado tarde para se descobrir.
Entre os dois filmes históricos a cores acima mencionados, Kinuyo Tanaka realiza Girls of the Night, a sua penúltima longa-metragem, novamente em colaboração com Sumie Tanaka, que adapta um romance controverso de Masako Yana. Voltando à temática da prostituição, o filme começa com uma sequência em estilo de reportagem, onde são destacadas as leis anti-prostituição que entraram em vigor no Japão, em 1958, e que vieram decretar o encerramento dos bordéis e a criação de inúmeros reformatórios para a integração das ex-prostitutas na sociedade. Para além de evocar o título de uma das obras de Mizoguchi no qual Tanaka interpretara o papel de prostituta, Yoru no onna tachi (Women of the Night), a intriga do seu filme de 1961 poderia quase ser encarada como uma continuação do precedente: Girls of the Night acompanha os destinos de várias destas raparigas e mulheres da noite que, após se verem subitamente condenadas à ilegalidade, são reunidas na mesma instituição com vista à “correção” dos seus comportamentos desviantes e das suas perversões sexuais.
O filme concentra-se, de seguida, nas tentativas da jovem Kuniko (Chisako Hara) para encontrar um trabalho honesto: tarefa que se revela sisífica, pois a cada vez que o seu passado é descoberto, Kuniko volta a ser vítima de suspeitas infundadas, de assédio sexual por parte dos homens que a rodeiam, de hostilidade das colegas no local de trabalho, até de ataques à sua integridade física. E quando, por fim, parece ter alcançado a paz e o amor com que tanto sonhava, junto de um homem disposto a ir contra tudo e todos para se casarem, será ela própria quem acabará por abdicar dessa felicidade, da qual, à força de tanto lho atirarem à cara, deixou de se sentir digna. O final do filme difere do romance do qual é adaptado, já que, no enredo original Kinuko acabava por regressar às ruas, no filme de Tanaka oferece-se uma conclusão menos pessimista, com a jovem a integrar uma comunidade tradicional de pescadoras Ama.
A discrepância entre a “mensagem” que os filmes acabam por veicular e o estilo eminentemente moderno da realização faz dos filmes de Tanaka obras complexas e desafiantes.
Apesar da sua implicação em expor muitos dos preconceitos relativos à prostituição no pós-guerra e em levar o espectador a refletir sobre a subserviência das mulheres na sociedade japonesa, a posição de Kinuyo Tanaka quanto à necessidade de redenção das suas protagonistas é, no mínimo, ambígua, chegando por vezes a ser mesmo desconfortável. Se os desfechos dos seus filmes corroboram frequentemente um regresso das personagens ao status quo socialmente aceite (à excepção de The Eternal Breasts, mas mesmo aí a morte da heroína é, de certo modo, o preço a pagar pela sua consagração enquanto poetisa), a realização de Tanaka não cessa de oscilar entre uma frontalidade desarmante, quase obscena para a época, e uma forma de poesia do resguardo e da incomunicabilidade, que faz do fora-de-campo uma das grandes forças do seu cinema: afinal de contas, aquilo que nos é velado ou calado pode ser tão ou mais eloquente do que o que é exposto.
Ao mesmo tempo, essa discrepância entre a “mensagem” que os filmes acabam por veicular e o estilo eminentemente moderno da realização faz dos filmes de Tanaka obras complexas e desafiantes, que nos convidam a pensar que formas específicas pode revestir um certo “cinema feminista” à luz das diferenças culturais. Talvez por isso, os vários planos das heroínas que, no momento em que descobrem que o seu amor é retribuído ou confessam os seus pecados, se atiram para o chão, aos pés dos seus amados, me incomodem mais num filme de Tanaka do que me incomodariam cenas semelhantes num filme de Mizoguchi: filmados por uma mulher, esses instantes sublimes de despojo e de entrega ao Outro são “manchados” ao apresentarem a subjugação da mulher como condição para se atingir a catarse. Ainda assim, não deixa de ser apaixonante acompanhar os percursos erráticos de Michiko, Setsuko, Fumiko ou Kinuko, através do olhar único de uma cineasta notável, que não hesita em aliar a sintaxe cinematográfica clássica ao exercício ousado de um female gaze particularmente atento aos corpos e aos desejos femininos – tantas vezes ignorados e censurados na história do cinema mundial.