É curioso que, apesar de Azor (2021) decorrer na Argentina no final da década de 70, a sua caracterização é tão genérica – a única referência temporal explícita é a uma vitória num Mundial de Futebol (ou seja, algures depois do verão de 1978) – que poderia decorrer em qualquer outro período de tempo, num outro país dominado por uma ditadura de uma junta militar. Esta não é uma ambiguidade inocente, porque afinal parte da mensagem do filme é que o que vemos podia acontecer ainda em qualquer lado, a qualquer altura: é ao mesmo tempo um retrato de um mundo paralisado no tempo e uma realidade recorrente, perpetuada pela relação poder/dinheiro – a certo ponto se uma das personagens mencionasse bitcoin em vez de Forex, não seria surpreendente. Numa das primeiras sequências do filme, os dois protagonistas, como turistas que acabaram de chegar como que a um “outro mundo”, ficam parados no trânsito, enquanto um grupo de jovens é revistado por militares junto a um muro. Estivéssemos num filme de Michel Franco e talvez esses rapazes fossem ali fuzilados, mas, outro ponto importante, este era um regime que vivia não do medo explícito, mas do que se fazia na obscuridade e Azor vai seguir esse caminho.
Obscuridade é também o domínio das finanças, mundo de onde chega o nosso casal de protagonistas, Yvan e Inès De Wiel, que vão percorrer os caminhos e corredores desta espécie de estado suspenso. Aqui os negócios e jogos de poder são decididos da mesma forma de sempre, onde a realidade é determinada por forças que procuram manter-se na escuridão, em nome da auto-preservação. Este é finalmente um filme que iguala a linguagem obscura e ambígua da alta finança, em que acima de tudo importa não dizer nada de comprometedor ou revelador. Porque sejamos claros onde o filme não o é (porque tem outro objectivo): a missão do nosso protagonista (e da sua mulher que o acompanha, tão decisiva nos jogos de influências e aparências quanto ele) é ajudar os actores do statu quo a escapulir o seu dinheiro para outras paragens, para uma segurança do pós-regime. É um dinheiro sujo, de famílias cúmplices e que lucram com o regime instaurado (portanto, sujo de sangue das suas vítimas desaparecidas), ou pelo menos de origem duvidosa e a fugir aos impostos e ao país, ao ser traficado às escondidas em sacos desportivos e alfândegas corruptas até chegar à Suíça.
O que é realmente notável em Azor não é a denúncia explícita do que mantém o regime no poder, mas sim a forma como constrói uma espécie de fábula que estas personagens parecem contar a si mesmas para se convencerem de que tudo está bem, quando na verdade vivem a desconfiar das sombras, aterrorizadas que um dia o regime possa ir atrás da sua família, como acontece parcialmente num caso em que uma das filhas de um magnata desaparece. De Wiel e a mulher fazem a sua parte do jogo de aparências, tentando controlar os danos causados pelo desaparecimento súbito de um dos sócios de Yvan, que servia de intermediário entre as fortunas locais e as contas na Suíça. A certo ponto do filme Inès explica o significado da palava “Azor” como parte de um código, que significa “ter atenção ao que se diz” e “ser discreto”, algo de essencial para os banqueiros e para quem quer continuar nas boas graças do regime.
De Wiel é uma espécie de agente secreto 007, só que em vez de perseguições e aventuras com modelos, tem de lidar com elites desconfiadas, recepções sociais, cocktails e conversas com viúvas. E a sua missão é a de um criminoso a tentar convencer outros criminosos a confiarem em si.
Azor chega a assemelhar-se a um filme de terror sobre a imutabilidade da corrupção, com as suas várias personagens representadas como uma espécie de “nobreza” de múmias paradas no tempo (não falta a presença do membro do clero), símbolos da manutenção de uma ordem invisível, imunes em relação ao sofrimento nas ruas e das consequências das suas acções (logo no início os protagonistas são recebidos por alguém que diz, sem pausar: “O país estava num estado terrível, a precisar de grandes reformas. A piscina é no primeiro andar”). É assim uma espécie de inversão de Get Out (Foge, 2017), de Jordan Peele: em vez da procura da juventude e vitalidade dos corpos dos mais novos, aqui procura-se perpetuar os mais velhos no poder. Fontana filma sobretudo a beleza falsa desta decadência, e replica a dignidade e solenidade impressionante com que estas personagens se convencem das suas acções, como se filmasse um filme de espionagem, e De Wiel se visse a ele próprio como uma espécie de agente secreto 007, só que em vez de perseguições e aventuras com modelos, tem de lidar com elites desconfiadas, recepções sociais, cocktails e conversas com viúvas. E a sua missão é a de um criminoso a tentar convencer outros criminosos a confiarem em si.
Esta ilusão de estarmos perante uma aventura misteriosa e secreta torna-se mais evidente e menos dissimulada numa sequência fenomenal perto do fim com contornos fantasmagóricos. Tudo parece correr mal para o nosso banqueiro, com os clientes em perigo de fugirem para outro lado (provavelmente por oferecerem comissões mais baixas), quando De Wiel é solicitado para uma derradeira missão misteriosa, uma proposta irrecusável que envolve percorrer um rio ao encontro de um coronel, figura supostamente mais poderosa, com evocação directa de Coração das Trevas e Apocalypse Now (1979) e o seu coronel Kurtz de Marlon Brando. Yvan pode assim finalmente tornar-se o protagonista do seu filme de acção, passar de observador impotente a actor decisivo e salvar a reputação do seu banco, mesmo que para isso tenha de perder a aparência de respeitabilidade e elegância. Fontana, ao navegar na fronteira do que mostra e não mostra, ao mergulhar na linguagem obscura da finança e jogos de poder, entra um jogo perigoso, em que o grau da crítica do que retrata fica a cargo do espectador (e por vezes é demasiado vago ou encantado pela decadência deste mundo fechado), mas cria aqui uma provocação inteligente sobre a representação subjectiva do poder.