A edição portuguesa da BCF Editores do melancólico livro de 1981, A Imagem Fantasma, chegou às estantes das livrarias nacionais no quente mês de Agosto, convidando-nos a entrar no universo íntimo e artístico de Hervé Guibert.

Enquanto escritor, Guibert estreou-se com o romance La Mort propagande (1977), juntando-se depois Les Aventures singulières (1982), À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990), Le Protocole compassionnel (1991) e L’Homme au chapeau rouge (1992, publicado postumamente). Como assinalado no prefácio de Amândio Reis, parte da sua obra fora conotada como romance ou como contos, sendo sempre assinalável a conjugação entre o carácter biográfico e o carácter imaginário, que fizeram de Guibert um dos fundadores mais importantes da autoficção.
A partir de um discurso autobiográfico e de um registo ensaístico, em A Imagem Fantasma acompanhamos as observações e reflexões de Guibert, espelhadas em 64 breves ensaios, que revelam a fotografia e a escrita como “mecanismos de preservação”, e a relação que Guibert estabelece com ambas – a atividade enquanto crítico de fotografia no jornal Le Monde, desenvolvida entre 1977 e 1895, haveria de ter a sua influência.
Numa ode à memória, somos circunscritos, em determinados ensaios, aos confins da sua juventude, e em outros, expandimo-nos até ao seu “eu” do presente. Dualidade que nos apresenta, primeiramente, Guibert enquanto artista emergente e, depois, como artista experiente; que nos mostra a sua faceta conhecida ou, por outro lado, as suas particularidades desconhecidas; e, ainda, o que aparenta estar ausente ou, contrariamente, presente. Neste universo íntimo e artístico – também filosófico – acedemos a diversos episódios, vivências e experiências da sua vida que nos demonstram a omnipresença (ou inexistência?) da imagem e a busca incessante pela sua construção, captura e projeção.
Desde a publicidade, a imprensa de moda, a fotografia profissional e a fotografia amadora, os cartazes de cinema e de música, até às fotografias de família, são diversas as referências assinaladas por Guibert no que à técnica de criação de imagens pela exposição luminosa diz respeito. Entre o racional e o emocional, Guibert procura escrever a partir das duas dimensões, sendo que em alguns dos ensaios se sobrepõe a primeira. A este respeito, recorde-se o ensaio “Provas de Contacto”, em que o autor evidencia o carácter real da imagem, percecionando a existência intrínseca de falhas e da imprevisibilidade: “As fotografias que tinha imaginado que seriam as melhores são falhanços, e as que pensei que seriam as menos bem-sucedidas são por vezes bastante boas”; ou lembremo-nos da comparação que estabelece entre o autocarro e a máquina fotográfica.
O autocarro parece-me uma grande máquina fotográfica, um suporte milagroso no qual fixar uma câmara imaginária, um suporte rotativo e dinâmico. A janela, que recorta uma sucessão de exteriores, é uma moldura acabada. A luz vermelha, que faz parar a máquina, é como um clique (…) Há também o facto de o autocarro, de certa forma, pairar sobre qualquer congestionamento. É ao mesmo tempo travelling, grua, panorâmica… Num piscar de olhos, o autocarro capta uma multiplicidade de corpos, rostos, movimentos e atitudes.
É na segunda dimensão que se torna evidente a relevância atribuída por Guibert à emoção, que nos permite assimilar a fotografia enquanto linguagem que cristaliza momentos e, simultaneamente, denuncia a passagem do tempo, evocando, assim, sentimentos e sensações sobre a existência e condição humana. Em A Imagem Fantasma, título do primeiro ensaio, Guibert começa por dizer que “a fotografia é também, em grande medida, uma prática amorosa”. Neste, confessa, num dia de sol, ter decidido fotografar a mãe, que geralmente se recusava a ser captada pela máquina fotográfica, por não se considerar fotogénica. Por insistência de Guibert, foi levada até à sala de estar, onde se sentou numa das poltronas brancas e se deixou ser fotografada. Quando a sessão terminou e partiram para a revelação do rolo, constataram que haviam cometido um erro técnico no seu encaixe, o que significou que a fotografia nunca chegara a existir.
Este texto não terá qualquer ilustração para além de um pedaço de película virgem. E o texto não teria existido se a imagem tivesse sido tirada. A imagem estaria aqui à minha frente, provavelmente emoldurada, perfeita e falsa, irreal, ainda mais do que uma fotografia de juventude: a prova, o delito, de uma prática quase diabólica. Mais do que um truque de mão ou prestidigitação: uma máquina de fazer parar o tempo. Pois este texto é o desespero da imagem e é pior do que uma imagem desfocada ou velada: uma imagem fantasma…

Mas este não-ensaio não seria exclusivo. Recordamos, ainda, “O regresso à imagem amada”, em que Guibert expõe o anseio e o desejo de captar certos fragmentos, como se a sua captação permitisse aliviar as inquietações psíquicas e emocionais: na impossibilidade da presença física, abre-se a brecha da imagem palpável.
Fotografo-te como se estivesse a fazer provisões de ti, na previsão da tua ausência. Essas fotografias são como uma garantia ou uma fiança em relação ao meu desejo. Nem sequer sei se alguma vez as imprimirei, mas se um dia, por amor, a tua ausência se tornar insuportável para mim, pois bem, sei que poderei recorrer àquele pequeno rolo e revelar a tua imagem para, então, te poder acariciar.
Atente-se, também, no ensaio “Conselhos”, em que a afetividade e intimidade de Guibert transborda e estende-se ao exercício de sugestões: “Devia fotografar as pessoas que ama com o mesmo rigor com que fotografa os seus gradeamentos” ou “Tira fotografias apenas às pessoas que te sejam mais familiares: pais, irmãos e irmãs, amante… O antecedente emocional impulsionará a fotografia…”. Para mais, assinala-se, igualmente, a forma terna como descreve as fotografias de família, guardadas em caixas de sapatos, e que deveriam, segundo o próprio, ser identificadas como “pequenas lembranças com importância”.
Por fim, para fechar o texto, recupero La Pudeur ou l’impudeur, documentário realizado por Guibert entre 1990 e 1991, e exibido, postumamente, em 1992. A profundidade, fragilidade e honestidade que se encontram na escrita em A Imagem Fantasma é aquela que, no seu autorretrato de degradação física motivada pela doença (SIDA) que o assolava, refletida nos vídeos caseiros, filmados entre familiares e amigos, invadem o nosso ecrã e nos desafiam a ver as palavras a ganhar imagem e forma. Guibert refletia sobre a fotografia ser, em grande medida, uma prática amorosa. Acrescentar-lhe-ia: “E a literatura anda de mãos dadas.”