O sol nasce e os seus raios atravessam a neblina outonal, acariciando as árvores do jardim de uma família aristocrática. O reverberar dos sinos anuncia a manhã e impele-nos a despertar, a nós e às personagens. A constância das badaladas, uma seguida de uma outra, continuamente, avisa-nos da inexorabilidade da marcha do tempo, que avança sem cessar rumo ao fim de tudo, incluindo do próprio tempo. O tique-taque dos relógios continua quando a câmara se move para o interior da mansão. São esses os objectos que a câmara primeiro observa: relógios de parede adornados de querubins e outros seres celestiais que não consentem aos flagelos que o tempo exerce sobre os mortais.
Moribunda, estendida sob a cama, jaz Agnes (Harriet Andersson). Ainda há momentos a vaguear pelo jardim, a câmara está agora junto a Agnes, num grande-plano sufocante que regista os primeiros raios da aurora a tocarem-lhe no rosto, de um modo semelhante à maneira como antes penteavam as árvores. Os seus olhos permanecem fechados e já o seu rosto se contorce de dor. Agnes abre os olhos por momentos, mas temos a impressão de que não vê. Por isso, fecha-os de novo e o seu semblante contrai-se numa convulsão violenta consequente das dores no ventre. Agnes está prestes a morrer de cancro do útero. O plano dura cerca de um minuto. Do mesmo modo que Agnes não escapa à dor, nós não escapamos a ser dela testemunha.
A forma como experienciamos este grande-plano é definida pela relação do espectador com a filmografia de Harriet Andersson, que interpreta Agnes. Embora a carreira da actriz não se reduza às suas colaborações com Ingmar Bergman, o seu percurso é indissociável do realizador, em particular das obras que produziram juntos em meados da década de 50, um período de afirmação para ambos. Andersson e Bergman trabalharam em cinco ocasiões num espaço de três anos, de 1953 a 1955. Na memória tenho gravada, em particular, a imagem indomável de Monika e Anne, as protagonistas de Sommaren med Monika (Mónica e o Desejo, 1953) e Gycklarnas afton (Noite de Circo, 1953).
Anne e Monika são jovens que norteiam as suas vidas pelos sentidos. Ambas as personagens estão conscientes dos contornos das suas silhuetas, dos movimentos que fazem, da pose em que se encontram – em suma, sabem o poder que os seus corpos exercem sobre os que as rodeiam. Andersson encarna nesses papéis uma juventude pueril e provocadora, a sua presença no ecrã é de uma alegria indomável. Exemplo disso é a sequência de Mónica e o Desejo em que a protagonista se banha nua numa pequena piscina natural nas rochas de um fiorde. O enquadramento de Mónica dentro de água, com a luz argêntea do Verão sueco a cobri-la, funde-se com os planos do oceano a embater nas rochas, como se a adolescente fosse capaz de mover as vagas.
Portanto, o espectador entrevê a vitalidade das personagens que Andersson interpretou nas feições macilentas de Agnes. Nos lábios gretados de Agnes vislumbramos os lábios carnudos de Anne, nos cabelos escorridos e ralos de Agnes imaginamos os cabelos soltos de Monika, na pele exangue de Agnes projectamos o rubor das outras duas. Tendo isto em consideração, concluo que este grande-plano de Agnes figura mais que um rosto. Na realidade, o enquadramento dá-nos a ver uma sobreposição de semblantes, o rosto das personagens a quem Andersson deu vida quando era jovem. Desta forma, nesta tessitura de rostos, entre a cara de Monika, Anne, e Agnes vemos o invisível: o tempo, princípio imprescindível para se ser, mas também um carrasco ao serviço da morte.
Três mulheres dedicam-se a cuidar de Agnes. Karin (Ingrid Thulin), a irmã mais velha, Maria (Liv Ullmann), a mais nova, e Anna (Kari Silwan), a empregada doméstica que auxilia as irmãs e que, como veremos, desempenha um papel maternal. Acabadas de acordar, as três encontram-se na divisão contígua àquela em que Agnes está a repousar. As três mulheres usam longos vestidos brancos que contrastam com a cor carmesim das paredes da mansão e dos veludos que cobrem as almofadas das cadeiras e do divã. De um ponto de vista cromático, o espaço habitado pelas mulheres é intra-uterino, uma ironia, dada a condição de que Agnes padece. Mas se o ambiente nos reporta para esse domicílio primacial, a que se deve a frieza que sentimos entre as irmãs? Ao invés de acolhedor, o espaço afigura-se, logo num primeiro instante, repressivo e acabrunhante.
Agnes nunca se sentiu acarinhada na casa de família e isso deve-se à relação que tinha com a mãe, conforme uma analepse expõe. Esta transição do presente para o passado é particularmente bela: um plano-detalhe de uma rosa branca encadeia-se na imagem da mãe, ainda jovem, a andar com um vestido branco pelo jardim da propriedade. Esta é a primeira de quatro analepses que estruturam a intriga – cada uma reporta para o passado ou o imaginário de cada uma das mulheres. O episódio em questão folheia a infância de Agnes, numa altura em que cada uma das irmãs lutava pela atenção da mãe, uma mulher fantasmática, sem nome, também interpretada por Liv Ullmann, o que significa que Maria, a mais nova, é uma dupla da mãe.
Talvez por narcisismo, a mãe prefere a filha que mais se aproxima da sua imagem. Numa cena natalícia, em que a família se une em torno de uma lanterna mágica, Agnes é enquadrada em grande-plano, sozinha, sugerindo, assim, um corte com os que a circundam, em particular com a mãe e Maria, que brincam juntas. Logo, mesmo quando estava viva, a mãe era um mistério para Agnes, uma figura que observava ao longe e em quem adivinhava uma tristeza profunda, decorrente da solidão.
A doença e a dor têm o condão de nos unir e divorciar dos nossos corpos. Ao mesmo tempo que a tortura física nos relembra que também somos o nosso corpo, estando a ele agrilhoado, a dor também torna aguda a consciência de que não temos posse dele, que ele não nos responde, desobedece-nos, lança-nos farpas e injúrias, e segue os seus desígnios, por vezes autodestrutivos.
O segundo retorno ao passado acontece pouco depois de concluída a primeira analepse. Desta feita, o enfoque incide em Maria, em concreto no caso extraconjugal que tem com David (Erland Josephson), o médico que acompanha Agnes e que assevera que esta em breve morrerá. Maria representa o poder do eros, pelo que a analepse por si protagonizada contrasta com a das irmãs, mais movidas por pulsões de morte. O plano fixo, de mais de um minuto de duração, em que David sacia o apetite voraz em primeiro plano e Maria, em segundo plano, com o indicador entre os lábios, o olha e lhe diz que o marido está em viagem e que ele, se assim desejar, pode pernoitar na mansão, é um exemplo de como a forma de proximidade que Maria melhor conhece é a sedução. Porém, como é sabido, a sedução envolve um certo grau de distanciamento e calculismo, pelo que intuímos que Maria, tal como a mãe e Karin, é uma pessoa emocionalmente ausente.
David aponta-lhe algo semelhante. Quando Maria entra no quarto em que está hospedado, é nítido que o médico a esperava. A língua de fogo da lareira reflecte-se nas lentes dos seus óculos – a chama representa menos o desejo de David do que a própria Maria que, flamejante, se insinua sobre o médico. David convida Maria, que está a usar um vestido vermelho, com rendas, transparências, e um decote pronunciado, a aproximar-se de um pequeno espelho de aumento. O médico diz-lhe que embora bela, talvez mais do que nunca, o seu rosto começa a denunciar imperfeições que, no seu entender, espelham a corrupção moral de Maria. O muito grande-plano do rosto de Maria parte do espelho, é nele que a personagem vê os seus defeitos físicos e morais. Se a protagonista conseguisse encarar quem a partir deste espelho a observa, isto é, os espectadores, certamente que encontraria rostos igualmente culpados.
Na manhã seguinte, Maria conta ao marido, Joakim (Henning Moritzen), que o médico foi chamado para se certificar de que estava tudo bem com a filha de ambos. Como a noite estava agreste, David foi forçado a jantar e a pernoitar na casa de família, tendo saído cedo, antes de todos terem acordado. Sentado, Joakim ouve-a, impassível. Ao levantar-se, aproxima-se de Maria e da filha que está ao colo da mãe. A posição do pai, da mãe e da filha no centro da composição sugerem, por instantes, proximidade. O plano-médio da família nuclear unida é seguido de um grande-plano de Maria, que é acariciada pelo marido que, com esse gesto de afecto, responde à traição da esposa. Joakim sai da sala e Maria, pouco depois, segue no seu encalço, claramente apreensiva. Maria pressente algo no gesto do marido, talvez uma acusação ou uma despedida. Ao entrar na divisão onde o marido se refugiou, Maria encontra-o com uma adaga espetada no ventre. A chorar convulsivamente, Joakim estende as mãos ensanguentadas a Maria e suplica-lhe para que o ajude. Símbolo de vitalidade, Maria recua e olha, petrificada, para o marido:
Não, diz ela, num murmúrio estarrecido, como se com essa negação erigisse um muro entre si e a violência do acto do marido e a realidade da morte.
De volta ao presente, Karin, que naquele momento está de vigília com Anna, é sobressaltada durante a noite por um barulho que não consegue descrever. Anna diz que tudo o que ouve são os uivos do vento, ao que Karin responde que se trata de uma outra coisa. Neste campo, podemos apenas especular, mas quem sabe se o que Karin ouve são os passos da própria morte, que aguarda pelo amanhecer para trabalhar. A irmã mais velha ausenta-se e, então sim, ouve-se claramente a voz de Agnes, que chama por Anna. Roliça, rosada, na casa dos trinta anos, desprovida da altivez manifesta que mancha o perfil da irmã mais velha e mais nova, identificam-se em Anna signos associados à maternidade. No lusco-fusco, Anna entra na cama onde está a moribunda que, humilhada pela doença, pergunta-lhe se o seu odor é fétido. Anna beija-a, descobre o peito, e encosta Agnes junto a si enquanto a beija novamente e lhe promete ficar a seu lado.
Anna, mãe de uma menina recentemente falecida, e Agnes, filha de uma mãe há muito morta, encontram uma na outra o amor que desejam dar e receber.
O amanhecer traz complicações e as três mulheres unem-se em torno de Agnes. As horas passam, Agnes tem recaídas e melhorias, e as três continuam a seu lado, mesmo de madrugada. Às primeiras horas do dia, a aurora anuncia-se, de súbito, no quarto de Agnes, com a notícia de que um novo dia está prestes a começar. A luz alba reflecte no rosto amarelecido da doente, despertando-a para as dores horríveis que lhe remoem as entranhas. A respiração de Agnes depressa fica ofegante, e os gemidos dão lugar a gritos:
Anna, exclama Agnes em sofrimento.
A empregada acode e envolve-a nos seus braços. Agnes afasta-a, aproxima-se das traves da cama, assim como da câmara, grita novamente, e depois atira-se de novo para o colchão. Entretanto, uma panorâmica ligeira para a direita permite a Maria entrar no quadro em primeiro plano, enquanto Agnes se contorce de dor na cama. Os gritos são agora lancinantes, desesperados, de um horror indiscritível.
Não me podem ajudar, não aguento mais, grita Agnes, não para as irmãs nem para a governanta da mansão, que assistem com terror ao que se passa, mas para quem quer que a possa ouvir, talvez Deus ou, simplesmente, a Morte, para que esta lhe ponha fim ao sofrimento. No apelo de Agnes oiço uma súplica para que o seu corpo seja libertado. Subentendo: livrem-me do meu corpo! A doença e a dor têm o condão de nos unir e divorciar dos nossos corpos. Ao mesmo tempo que a tortura física nos relembra que também somos o nosso corpo, estando a ele agrilhoado, a dor também torna aguda a consciência de que não temos posse dele, que ele não nos responde, desobedece-nos, lança-nos farpas e injúrias, e segue os seus desígnios, por vezes autodestrutivos.
Agnes morre instantes mais tarde. A última coisa que faz é olhar para Anna, que cuidou de si durante a doença, e para a luz no jardim lá fora. Por um lado, a noção de que a manhã traz consigo um recomeço e esperança é subvertida quando Agnes é recordada pela luz do amanhecer de que sim, a sua dor continua lá, instalada no ventre, persistentemente a devorá-la por dentro, como se fosse uma árvore a ser carcomida por uma legião de térmitas. Por outro, são os raios da manhã que anunciam a sua morte, a única coisa que, afinal, como acontece com todos nós, a podia libertar do fardo da dor.
A morte de Agnes dá lugar a uma analepse que invade a intimidade de Karin, a irmã mais velha. A primeira cena desenrola-se na sala-de-jantar da mansão, onde Karin está a tomar uma refeição com o marido, Fredrik (Georg Årlin), um diplomata. Os seus olhares não se cruzam e tudo o que se ouve é o ruído dos talheres a tocar na loiça, o som repulsivo do bolo alimentar a valsar com os dentes e a língua, e claro, o tique-taque permanente dos relógios de parede, que apontam para a finitude. A composição salienta uma dinâmica de confrontação, porquanto os planos dos esposos são frontais. As primeiras palavras que saem da boca de Fredrik são ditas em tom de acusação:
Por que sorris, diz ele, como se tal fosse uma profanação.
Karin nega estar a sorrir como quem se defende de uma reprimenda e o silêncio volta a cobrir a mesa-de-jantar como uma neblina que impede os esposos de se verem. O vazio conjugal é interrompido por um estrépito repentino – Karin tomba e parte o copo de vinho que tinha diante de si, o que lhe causa um embaraço evidente. Agora é o marido que lhe lança um sorriso velado, escarninho, um ligeiro esgar no canto esquerdo da boca.
Terminada a refeição, já na antecâmara do quarto de dormir, Karin tira o anel de casamento e despe o vestido negro com o auxílio de Anna. O olhar da empregada doméstica, que a observa através do espelho, irrita Karin de tal maneira que esta esbofeteia-a. Porém, ao contrário de David, que contempla Maria através do espelho de aumento para pôr em evidência os defeitos dela, o olhar de Anna não é julgador. Mais provável é que Anna veja em Karin o mesmo que observou em Agnes: falta de afecto. Uma vez sozinha e preparada para entrar no quarto de dormir, Karin murmura para si própria, são tudo mentiras, tudo não passa de mentiras, e pega num estilhaço pertencente ao copo que partiu, e mutila o seu sexo, num aparente misto de dor e regozijo sexual.
Karin entra no quarto, aposento em que o marido a esperava, muito possivelmente porque iria exigir que ambos fizessem sexo. Deitada sobre os lençóis brancos, a mulher mete as mãos no sexo ensanguentado e esfrega-as, de seguida, no rosto sorridente, para pavor do marido que a observa incrédulo. A analepse termina, como todas as outras, com um fade-out que descarta a tradicional cor negra para fazer a transição entre planos, e opta, por sua vez, por um separador cor-de-sangue.
De novo uma evocação do sangue. O sangue ensopado nas paredes da mansão, o sangue das paredes do útero, o sangue que brota do golpe feito pela adaga, o vinho cor-de-sangue derramado na mesa de jantar, o sangue dos fade-to-reds, o sangue do sexo.
No presente, no seguimento da morte da irmã, Maria tenta reaproximar-se de Karin. Por que razão não nos tocamos, não conseguimos conversar, pergunta Maria à irmã, apelando para que ambas se possam reconfortar e conhecer-se melhor. As palavras de Maria têm um efeito imediato sobre a postura recta da irmã, que quebra ligeiramente. Às palavras juntam-se as carícias e os beijos, e com cada beijo e carícia o muro que Karin ergueu para se escudar do mundo começa a ficar mais frágil, com menos tijolos. Vulnerável ao toque de Maria, que, recorde-se, é igual à mãe, Karin entra em pânico:
Não me toques, não te aproximes, diz ela, Não sejas afectuosa comigo, reitera de novo e, antes de ser beijada na boca pela irmã, grita, com horror, Não, e começa a chorar. À hora de jantar, numa sequência que replica a refeição que partilha com o marido, Karin pede desculpa pelo seu comportamento e desvia o tópico de conversa para o futuro de Anna, afinal, ela dedicou-se de corpo e alma à falecida e merece ser recompensada. O curso da conversa volta a fazer numa mudança brusca quando Karin refere que a relação de Agnes e Anna era de uma proximidade excessiva. A menção à intimidade das duas mulheres gera uma bola de neve discursiva que termina com Karin a dizer a Maria que a odeia profundamente, que o que lhe resta é a raiva e rancor que se alimentam de si. Mau-grado o solilóquio intempestivo, não tarda até que Karin rogue pelo perdão da irmã-mãe e estas comecem, uma vez mais, a trocar carícias.
A última analepse não é uma analepse, uma vez que esse dispositivo narrativo subentende uma interrupção cronológica que remeta para o passado. O episódio criado pela mente de Anna não representa tempos idos e não corresponde ao real, embora as protagonistas deste número onírico sejam as irmãs e o espaço a mansão intra-uterina.
Anna vai ao encontro de Maria e Karin que, de pé e imóveis, se encontram em estado catatónico. A empregada toca-lhes levemente na cara e elas reagem com olhares vazios – os seus lábios tremem, com movimentos espasmódicos, mas nada dizem. Um travelling de recuo, em grande-plano, e depois uma panorâmica para a esquerda, empurram Anna da antecâmara para o quarto de dormir onde jaz o cadáver de Agnes que, inexplicavelmente, apesar de olhos fechados, está a chorar. Fora do enquadramento, o cadáver fala-lhe, diz não conseguir abandoná-las, e pede que Anna chame Karin.
Segura-me a mão, conforta-me no vazio que me rodeia, ouve-se a morta suplicar, ao que Karin responde que não se atreve a fazer tal coisa, ela está viva, a irmã morta, tocarem-se significa entreligar duas ordens ontológicas que devem permanecer separadas. Se ao menos eu te amasse, atalha Karin, antes de sair do aposento. Segue-se Maria, que se acerca do corpo da irmã e senta-se na cama onde esta jaz sem, contudo, tocar-lhe. Agnes, sempre fora de plano, apenas uma voz, diz-lhe para ela se aproximar, pois de outro modo não a consegue ouvir. Agarra-me as mãos, pede a falecida, e as suas mãos irrompem o enquadramento e acariciam o rosto de Maria, que treme de medo e repulsa. Quando a morta, que tem uma flor branca no peito, representativa da mãe, finalmente a beija e a envolve nos braços, Maria explode de horror, sacode-se violentamente, sai de rompante da divisão, e procura fugir da mansão como um animal acossado. Maria, símbolo de vitalidade, tenta escapar à mancha da morte, como se o corpo infecto da irmã, já esmaecido e possivelmente fétido, a pudesse contaminar. Tudo não passa de um equívoco, é claro, visto que essa mancha não vem de um agente externo, mas parte sim de dentro.
Face às reacções das irmãs, Anna diz que se ocupará de cuidar da morta e fecha a porta do quarto apesar das censuras e justificações de Karin e de Maria. A sequência termina com um dos planos mais famosos da filmografia de Bergman, uma reinterpretação de Pièta. Anna, com um dos seios descobertos, ocupa a posição da Virgem Maria, e Agnes, após o calvário da doença prolongada, encarna Jesus Cristo. No centro da composição a flor branca evoca o enlace materno sempre desejado e nunca obtido.
Neste passo, a associação cinéfila a Ordet (A Palavra, 1955) é inevitável. No filme de Carl Theodore Dreyer, Inger (Birgitte Federspiel), uma mulher que morreu a dar à luz, é ressuscitada pelo cunhado, Johannes (Preben Lerdorff Rye), um homem até há pouco tempo respeitado pela comunidade, mas que actualmente é tido por louco em virtude de se intitular a reincarnação de Jesus Cristo. Ambas as cenas têm vários aspectos em comum, nomeadamente os planos na primeira pessoa que partem da posição do morto, uma impossibilidade. Porém, existe uma diferença evidente (talvez até de mundividências) entre estas sequências: quando a morta é ressuscitada, Inger é acolhida, de braços abertos, pelo marido e familiares, ao passo que Karin e Maria não reconhecem no corpo animado de Agnes um ser ressuscitado, mas uma espécie de morto-vivo, de cadáver retornado do mundo dos mortos para fazer exigências aos vivos. A súplica que Agnes lhes lança é amem-me e amem-se, e haverá algo mais fácil e difícil?
No entanto, a composição da Pièta reaproxima as obras. Em Ordet, como estão lembrados, Mikkel (Emil Hass Christensen) beija apaixonadamente a mulher logo após a ressurreição, reclamando a importância da carne em matérias do metafísico. A intimidade física de Anna e Agnes neste plano remete para algo da mesma natureza.
O epílogo representa o assentar do pó depois de Agnes ser devolvida à terra. Karin, Maria, Fredrik e Joakim discutem o futuro da propriedade e de Anna. O acordo a que chegam é que Anna continuará a viver na mansão durante mais um mês, até encontrar um novo empregador, e que poderá guardar um pertence de Agnes à sua escolha, proposta que a governanta rejeita prontamente, afirmando que não deseja nada. Os quatro despedem-se de Anna, mas não sem antes Joakim e Maria oferecerem uma esmola à empregada doméstica pelo afecto que dedicou a Agnes durante doze anos.
Antes de saírem da mansão, Karin acerca-se da irmã mais nova e recorda-a da noite em que se abraçaram e fizeram promessas de que a sua relação iria ser, daqui em diante, diferente, pautada pela sinceridade e carinho, ao invés de rancor e agressividade passiva. A composição fecha-se em grandes-planos dos rostos das irmãs, que sussurram num tom confidente. Contudo, as dinâmicas antigas reemergem, como se o antagonismo fosse a ordem natural das coisas entre as irmãs. Karin pede para que Maria lhe diga em que é que está a pensar, a irmã mais nova chama-lhe à atenção, avisa-a de que não tem o direito de fazer esse tipo de perguntas, o que reabre logo uma fissura na sua relação. Tocaste-me, diz a mais velha num tom indignado, ao que a mais nova responde que não precisa de ser recordada disso. À semelhança do que acontecera com David, Maria aparenta ter-se servido do seu poder erótico para se reaproximar de Karin que, porventura, anseia ter contacto com a imagem da mãe que Maria encarna. Agora que a ternura se apagou, Maria aproveita para esmagar a irmã, humilhá-la por ter baixado a guarda. Vemo-nos, como sempre, no dia de Reis, assevera a mais nova, sugerindo, assim, que tudo voltará a ser como antes, uma fachada escamoteada por deveres sociais. Este confronto, como tantos outros, é filmado por via de grandes-planos. Bergman dá expressão à distância entre as irmãs através da proximidade da câmara com os seus corpos.
Lágrimas e Suspiros termina com Anna a abrir o diário de Agnes, páginas em que, podemos imaginar, estão descritos os momentos que partilharam. Inferimos que este é o objecto que Anna levará da mansão e carregará consigo. É significativo que assim seja. O diário é o recipiente da voz da morta, o veículo do seu fantasma. Além disso, o diário também é um dispositivo narrativo, pelo que a leitura das suas páginas não só invoca a voz da falecida, como espoleta uma última analepse que reporta o espectador para o passado recente, para um passeio que as quatro mulheres deram pelo jardim. A câmara retorna, após um longo período de gestação na mansão uterina, período esse que termina com o parto da morte de Agnes, a câmara retorna, dizia, para um espaço exterior, luminoso, e as mulheres estão vestidas de branco, e estão joviais, verdadeiramente unidas, por um momento. Já doente, Agnes confessa ao diário que as dores, por um segundo, deixaram de atormentá-la e foi dominada por uma alegria imensa – sentiu-se em união com a perfeição, e uma só com as irmãs e Anna. Por fim, dá-se o regresso ao ventre, à plenitude, a sensação é efémera, escapa-se-nos, mas basta.
E assim as lágrimas e suspiros foram serenadas.