São muitos, e acima de tudo, notáveis e impressionantes, os adjectivos e epítetos usados pelos walshianos convocados a escrever sobre o actor francês Alain Delon, falecido em Agosto passado, com 88 anos. Um “actor camaleão”, o “mais belo de sempre”, o “corpo e o desejo”, esta é a soma de uma carreira singular, que atravessou períodos e movimentos fundamentais do cinema (e do cinema francês em particular), com destaque para as décadas de 1960, 1970 e 1980, durante as quais trabalhou com realizadores como Luchino Visconti, Jean-Pierre Melville, René Clément, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Alain Cavalier, entre muitos outros, em papeis inesquecíveis de filmes como Mr Klein (Mr. Klein – Um Homem na Sombra, 1976), Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967), Rocco e i Suoi Fratelli (Rocco e Seus Irmãos, 1960), L’Insoumis (O Indomável, 1964) e Le Circle Rouge (O Círculo Vermelho, 1970). Desde o início da sua carreira, com Plein Soleil (À Luz do Sol, 1960), de René Clément, até à sua colaboração com Jean-Luc Godard em Nouvelle vague (Nova Vaga, 1990), percorremos os diferentes caminhos e permutações de uma brilhante filmografia.

Delon tinha 25 anos quando filmou Plein Soleil (À Luz do Sol, 1960) e pouco antes Rocco e i Suoi Fratelli (Rocco e Seus Irmãos, 1960), de Luchino Visconti, dois filmes onde é difícil imaginar um homem mais belo que este. E quando falamos de beleza, não diminuímos o lugar do actor, pelo contrário, há em Delon uma intricada e inexorável relação entre a beleza física e a representação “espiritual”. Porém, este período não deve ser entendido como o momento apoteótico da beleza de Delon, até porque a beleza deste era verdadeiramente camaleónica, tendo assumido ao longo da vida diferentes contornos e em cada momento, o esplendor de uma face, desse diamante cristalino e magnânimo que era Alain Delon. De Rocco… a Il Gattopardo (O Leopardo, 1963), de Luchino Visconti, Delon é um “homem do Atlântico” (peço de empréstimo este título ao filme da Duras), de olhar-mar e pele-sol; cimélio, tal como o tesouro de uma igreja, entre o culto imaterial e a riqueza terrena; mediterrânico, entre a idílica estátua grega e o violento desejo da carne, tal e qual Galatéia moderna. E mais que Visconti, que o filma com a reverência do apaixonado platónico – um amor proustiano, ciente de que a “posse faz murchar todas as coisas” – é René Clément, quem é realmente capaz de capturar essa dualidade entre incorpóreo/corpóreo. Se é certo que Delon é rei e senhor de Plein Soleil, Clément não deixa de estar na posse plena do filme e da imagem de Delon. Não é por acaso que Clément (plano de uma enorme astúcia) o põe a trocar de roupa e a pentear-se frente a um espelho tripartido de toucador, tal como uma coqueluche, um Narciso de ulterior esplendor e beleza, eternamente jovem, de uma juventude que desconhece as agruras do tempo e a consequência dos actos, até porque, desde Wilde, sabemos que a vileza do espírito nos homens imensamente belos, fica para os retratos esquecidos num qualquer sótão abandonado.
E claro, há ainda outros dois Alain Delon que gostaria de destacar, que são o Delon entre o magnífico L’Insoumis (O Indomável, 1964), de Alain Cavalier e Le Circle Rouge (O Círculo Vermelho, 1970), de Jean-Pierre Melville e o último Delon entre La Prima Notte di Quiette (Outono Escaldante, 1972), de Valerio Zurlini e Mr Klein (Mr. Klein – Um Homem na Sombra, 1976), de Joseph Losey. Enquanto o segundo Delon, assume a beleza dura de um samurai, metálico, impenetrável e insondável; o terceiro Delon, é acossado, vunerável, quase doentio. A segunda face do Delon, revela-se no grande ecrã como o primeiro vento outonal em pleno Verão, que muda o ar de repente, sem aviso prévio, uma estranha maturidade que engrossa as linhas do rosto, um movimento gélido que apaga o lado quase efebo, feminino, que Delon sem dúvida possuía num primeiro momento, indiferente ao género e ao sexo, como se este fosse o superlativo do desejo, a flor azul de Novalis. Se o primeiro Delon é criminosamente belo, o segundo é um belo criminoso, como se o crime deixa-se de ser um capricho, para ser um plano matemático, calculável, científico, preciso, o gozo último de um obsessivo. Este Delon é o Delon de Melville, que de Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967) a Un Flic (Cai a Noite Sobre a Cidade, 1972), habita as sombras, torna-se transparente, volátil, sem rasto e no entanto, é pulsante, vivo, autossuficiente, de uma violência calma, tal como uma tempestade no mar. E por fim, não o declínio, mas antes a porosidade, como se o salitre o corroesse, surge o terceiro Delon, o Delon de Zurlini e de Losey, agastado, tal como imaginamos um opiómano de um qualquer romance francês do séc. XIX. Este terceiro momento, devolve Delon ao mundo, para o condenar à mortalidade, às dores da existência, ao lento e inevitável apagamento. Enquanto o segundo Delon detinha o rosto vivo e o olhar dos mortos, baço e ínvio; o terceiro Delon, era já o rosto dos mortos com a última acendalha no olhar. Naquele rosto doentio, quase esverdeado, substituía ainda o calor de alguém que se agarra uma última vez à vida, antes de entregar-se à morte (e não é por acaso que em ambos os filmes, o Delon-actor entrega-se à morte). Se isto poderá servir ao Delon da vida, isso pouco importa, as mutações de que penso e escrevo sobre o Delon, são inseparáveis do actor, vivem e nascem do cinema. Esse será sempre o Delon que desejei e admirei, imensamente, entre a veneração e a vontade de profanação. Mas não é isso a essência do verdadeiro actor? Entre o ecrã de cinema e a nossa mente? O lado de lá, a pulsão que suscita no lado de cá? Não é esse o centro de toda a teoria da “moeda viva” do Klossowski? Delon, foi meu escravo e senhor, entre o filme e o desejo, entre o inteligível da fantasia e volúpia dos sentidos e por isso, será sempre o mais belo de todos, homem e actor.
Bernardo Vaz de Castro

Le clan des Siciliens (O Clã dos Sicilianos, 1969), de Henri Verneuil, começa de forma não muito diferente de Le cercle rouge (O Círculo Vermelho, 1970) e de tantos outros filmes franceses da época – com o fim do encarceramento e a promessa de um recomeço. O recomeço será, tal como no filme de Melville, o regresso ao crime – o derradeiro crime, feito de precisão e magnificência. Mas ao contrário do Delon melvilliano, aqui o espaço que lhe é concedido em todo o filme é inferior ao tempo que nos é concedido para admirarmos o corte impecável dos fatos de Jean Gabin (como é de rigueur para um mafioso italiano, mesmo que disfarçado de vendedor de brinquedos). Se Alain Delon mencionava em entrevistas o prazer que tinha em fazer filmes como este, que o juntavam aos seus potes (Lino Ventura é aqui a terceira ponta do triângulo), mais recentemente referia também a dor de ir perdendo estes seus companheiros do cinema, numa espécie de morte antes da morte.
Mas apesar do parco tempo de ecrã, o efeito Delon realiza-se em Le clan des Siciliens em toda a sua plenitude, bem resumido na cena em que ele paga os serviços da prostituta, comentando ela que ele é um cliente especialmente generoso. A resposta dele diz tudo: «Profites-en. C’est la première fois que je paie pour ça». A sua presença pode ser curta, mas o efeito é devastador, sendo a sua imagem o catalisador da ruína final. Desde logo, quando a mulher de Evans reconhece o rosto dele numa fotografia afixada na parede da esquadra de polícia, apesar de só o ter visto anteriormente, brevemente, sentado no avião de óculos escuros. O poder de um rosto! E, num segundo momento, quado Jeanne consegue finalmente seduzi-lo, estendendo-se num banho de sol à poil, uma traição que merecerá o castigo da família Manalese, levando à descoberta dos autores de um crime que havia sido executado sem mácula. É a beleza de Delon que determina o desfecho da história. Não foi assim na sua vida?
Daniela Rôla

A epígrafe de Le Cercle Rouge (O Círculo Vermelho, 1970), de Jean-Pierre Melville, explica a origem do título do filme. Segundo esta, Sidarta Gautama disse que quando um grupo de pessoas com percursos divergentes se cruza num mesmo dia por força das circunstâncias, então, nessa ocasião, as pessoas reúnem-se dentro de um círculo vermelho. O filme anuncia, assim, um dos seus temas principais: a coincidência. Por coincidência, aconteceu rever Le Cercle Rouge, que fez parte da programação da Cinemateca, dois dias antes da morte de Alain Delon. No dia anterior à sua morte, comentei, em conversa, como o cinema tinha dado a ver poucos actores com um sentido de pose tão aprimorado, um homem que fez entrever na superfície da sua imagem uma profundidade que prescinde de palavras. No dia seguinte, ao acordar, leio a notícia da sua morte. A morte, essa que é a pedra angular do seu cinema. Le Cercle Rouge não é excepção.
Vogel (Gian Maria Volonté), Corey (Alain Delon), e Jansen (Yves Montand) cruzam-se porque estão em fuga: um da lei, outro dos fora-da-lei que se querem vingar de si, e o último tenta escapar aos seus próprios vícios e monstros interiores. Porém, estarem em fuga não é a única coisa que os aproxima. Os três têm um destino em comum: o encontro com a morte. Por capricho do destino, os protagonistas cruzam-se dentro de um círculo vermelho para cumprir um fim partilhado: morrerem. Há filmes que terminam bem com um beijo na boca entre dois amantes, e depois há outros como este, cuja única resolução possível é uma morte violenta. Será a morte a única evasão possível, a fuga total, a retirada da qual é impossível de retroceder? A resposta do filme parece ser afirmativa. Afinal, apesar de abatidos a tiro, o desenlace de Le Cercle Rouge transparece tranquilidade, como se o curso natural das coisas tivesse sido cumprido.
Tiago Ramos

É um papel secundário num filme sofrível, daqueles pastelões internacionais, que reúnem fundos e meios com base numa utopia e que, no caso das adaptações tentadas sobre o romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, nunca chegou a bom porto. Alain Delon é, em Un amour de Swann (A Paixão de Swann, 1984), de Volker Schlöndorff, o barão de Charlus, figura complexa, à qual Proust presta poucos elogios, mas é sombra livre de um romance-fleuve: “Quem poderia detetar que o estilo rápido, ansioso, encantador com que o senhor de Charlus tocava o trecho schumaniano da sonata de Fauré tinha o seu correspondente (não se ousa dizer a causa) em aspectos totalmente físicos, nas defectibilidades nervosas do senhor de Charlus? Mais tarde explicaremos esta expressão ‘defectibilidades nervosas’ e por que razões um grego do tempo de Sócrates ou um romano do tempo de Augusto podiam ser aquilo que se sabe sem deixarem de ser homens absolutamente normais, e não homens-mulheres como vemos hoje em dia.” (Em Busca do Tempo Perdido, volume 4, Sodoma e Gomorra, p.312, trad. Pedro Tamen, ed. Relógio d’Água, 2016). Charlus era homossexual, dandy, libertino, sádico, manipulador, misógino e opressor, e Proust, que se revia nele como quem se esconde do reflexo no espelho, trata-o com o fascínio e repulsa que figuras como Alain Delon, para lá da personalidade cinematográfica representam. “Estou sozinho, sou viúvo, e sobre mim cai a noite”, diz Delon/Charlus, citando Victor Hugo, no Jardin des Tuilleries, depois de abandonar um amante, e para se definir, sem se sujar. E qual dos descritivos acima se aplicava melhor, e fielmente, ao Delon felino de Plein Soleil, La Piscine (A Piscina, 1969) e Il gattopardo, ao Delon bruto de Rocco e i suoi fratelli e L’eclisse (O Eclipse, 1962), ao Delon perturbado de Mr Klein e Le Samouraï? Esse Delon de vinte anos de ecrã por si queimado, e nele o desejo de homens e mulheres, realizadores e atrizes, espetadores e jovens efebos a quem Charlus vai, pela escadaria da Ópera de Paris, prometendo vistas da lua e champanhe no seu apartamento. A tudo Delon empresta essa carga erótica, de frases que nem sequer se concluem, ou só pelo olhar e a promessa de um toque ou de um olhar que aniquila, na primeira sequência em que surge, de um filme que acredita que para ser proustiano, basta a conjugação do verbo.
Na morte, o que Delon foi depois desses vinte anos, de direita radical, de egoísmo emocional, de homofobia latente – ele que foi corpo e desejo de Visconti, que também rondou Proust –, de posições contrárias à liberdade que projetamos em personagens que não existem, sobreveio ao que deu ao cinema: o perigo de nele nos perdemos. O Barão de Charlus era também isso para Proust, e por isso o abismo da descrição. Curiosamente, Un amour de Swann é do mesmo ano de Notre histoire (1984), de Bertrand Blier, pelo qual recebeu o único César para melhor ator, e onde o que Delon fazia de melhor, fazer-nos que precisávamos dele, encontra o que Charlus provocava nas suas presas: o sentimento de termos sido iluminados pela sua atenção. E que, já agora, era o que, no filme de Anthony Minguella também a partir de The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Mr. Ripley, 1999), como Plein Soleil, Tom Ripley ouvia de Marge sobre Dickie Greenleaf: “mas depois ele esquece-nos e fica muito frio.”
Tiago Bartolomeu Costa

A sublime e a-teológica arte do Godard tardio foi converter objetos funcionais em ícones de unção mística. O exemplo, sobejamente dado, do copo de leite hitchcokiano em Notorious (Difamação, 1946) (leitmotif estruturador de um dos capítulos de Histórias do cinema), consistiu, para este melancólico sem objeto senão o tempo intransitivo do classicismo passado, em recuperar a divindade dos seres banhados de luz pelo cinematógrafo empreinte de verité baziniano segundo uma lógica, não mais funcional ou orgânica, e sim sagrada; Delon, o ator cool e másculo segundo a submissão a codex de cinema de género e ética rigorosos reaparece em Nouvelle vague (Nova Vaga, 1990) com sua aura tamisada de mitologia para possibilitar ao mais pastoralmente elegíaco dos Godard dos 80/90 esta impossível mas necessária, para propósitos enlutados, conversão do sagrado em profano, da divindade (decaída, porque à mão) em Zellg operatório, que no sentido clássico greco-germânico (foram os alemães do século 19 que inventaram a Grécia moderna, como Godard reinventa o classicismo em Nouvelle vague) sempre nos falou de mundos. Nouvelle vague é, para este enfant terrible da vanguarda dos 60, cineasta modernista por excelência, para quem a representação foi o canto da sereia inominável, a tentativa mais do que bem-aventurada de retomar certos princípios caros ao cinema moderno de Renoir e Rossellini – aquele da locação e luz natural, do plano sequência, e aqui dos travellings inebriantes sobre o jardim-zoológico da mansão -, de reconciliar-se com o bazinismo de que foram objetos privilegiados de estudo; mas para que esta reconciliação seja possível, Godard, leitor do Daney que viu no filme de Wenders e de Nicholas Ray o metro ideal de uma genealogia do fantasma- que sempre teve no corpo encarnado e aurático do ator o médium de passagem, de transmissão e filiação de uma História do cinema- Godard necessita trazer até nós o corpo, carregado de sintomas e de rastros de pregnância hermenêutica, da segunda metade deste cinema excelsamente moderno que foi agora o de Antonioni, de Visconti, de Melville também em uma outra chave, mais de género enfatuado de tradição neo-noir: este é o corpo do star Alain Delon, um corpo imantado de lustre que transmite tudo aquilo contra o que Godard se insurgiu (o mundo, uma vez que para este cineasta que chegou tarde demais foi a linguagem sobre o mundo aí o objeto de sua paixão), que é o circuito de filiação do cinema moderno que agora volta no filme de 1990; não veem nesta foto a unção mística do Cristo de Mantegna ressurrecto, com os dedos para o sumsun corda do Altíssimo, este milagre das mãos vazias cujo sentido último consiste em passar adiante o anel do sagrado, da História do cinema que um dia habitou este corpo hoje em parte macilento e emasculado?
O eixo da câmara nos mostra a contra-plongée do Cristo morto visto por Maria e João, mas o contracampo seguinte no-lo revela de mãos dadas com Domiziana Giordano, algoz e Madalena compungida: é aquilo que falta expressamente na pintura clássica e que cabe ao cinema reinserir para dar conta do trabalho da ressurreição no corpo do mundo, ou seja, o tempo como meio aquoso divinatório da aparição em Emaús. Se o plano é o lugar da efígie (a plongée sobre o Cristo falecido), o contracampo, vetor de presença reapresentada no locus do fotograma, introduz a temporalidade finita, agora vencida pela afirmação incondicional da presença; filme cáustico e desiludido sobre o capitalismo tardio e seu nec plus ultra de manipulação terrível sobre todos os corpos e meios de consumo e representação, Nouvelle vague o é sobretudo na segunda parte, com a volta à cena do Delon vingativo; mas afinal quem vence este tabuleiro ontológico, esta aposta de dados entre o invisível e o visível, o tempo e o plano-ícone, entre o filme de hoje e tudo aquilo que o remete à eternidade da História do cinema?
Apesar de sua inelutável carga crítica (diante de tudo o que nos tornamos nestes tempos desolados em que o dinheiro, hoje virtual, substituiu ao acmé da presença a moeda venal de troca da mediação fiduciária: l’argent…votre sale argent), o Nouvelle vague que chega até nós é o filme que narra a vitória da reconciliação, e com esta a da presença eterna daqueles que, ainda segundo Daney, nos assistiram crescer, como ad libitum e desde sempre o Delon, de Plein soleil e O Leopardo, até aos últimos Melvilles e Zurlini; porque se a Ideia pertence ao cineasta, é o corpo, estagnado ou espetacular, do ator que carrega as feridas narcísicas da exposição a nossos implacáveis olhos de espectadores tardios, agora finalmente em paz com os dons da presença rediviva deste filme de milagres e fantasmas profanos.
Luiz Soares Júnior