Kirill Serebrennikov é, antes de tudo, encenador. De teatro, algumas óperas e, por isso, dentro dos seus filmes. É daí que lhe vem o gosto por uma inverosimilhança que passa por metáfora e que, dada a sua condição de pária social e político, transforma cada uma das leituras sobre os seus filmes num exercício de reação à Rússia que o persegue. Petrоvy v grippe (A Febre de Petrov, 2021) não o é menos e, por uma vez, talvez mesmo a mais atenta, mesmo que afetada, revisão de uma Rússia anarquista, onde o que cada um faz por si, fá-lo na ansiedade em colocar ordem ao ambicioso caos que é a promessa de um destino maior.
A adaptação do romance de Alexey Salnikov, The Petrovs In and Around the Flu (2016), faz-se pela transformação direta das palavras em imagens, num exercício bastante infantil e didático, que parece ser cáustico, mas é só o desmembramento, por puro sadismo, de um cadáver já em decomposição. Serebrennikov mostra tudo o que acredita estar esconder e leva-nos pela mão, como se fosse uma Amelie Poulain em versão matrioska com, passe a preguiçosa evidência, uma grande constipação. Mas o problema – a haver um num filme que se faz mais grave do que é –, é que entramos e saímos por portas, frases e diálogos interligados, como se percorrêssemos uma casa de espelhos que deformam, ampliam, revertem e devolvem imagens que não sabemos se imaginadas ou duras exposições do mais profundo e convicto pensamento. E atravessamos o filme num estado de alienação, ainda assim de mão dadas com as personagens, escolhendo acreditar no que se está a ver porque, precisamente, é menos perigoso do que o real que pretensamente representa.
Em filmes anteriores – sobretudo em (M)uchenik (The Student, 2016) e Leto (2018) – essa alienação era sintoma de uma impossibilidade física e real, certamente ancorada numa agressiva desistência decorrente de leituras sobre as promessas de “como continuamos a viver”, frase que surge quase no final de A Febre de Petrov, para justificar uma vontade que foi atropelada pelo peso da própria expetativa. Será, é, certamente difícil e impotente uma resistência fatal e a todo o custo e, por mim mesmo, a simpatia que um filme como este nos pode causar, reside na possibilidade de através das personagens pensarmos nos atores enquanto corpos reais que existem naquele caos e dele são vítimas. Mas o modo como o realizador as usa, abandona-as a uma relação afásica e deslocada. Nem discurso, nem corpo, nem consequência, como se a desculpa da alteração pelo estado febril legitimasse um filme perdido dentro de si mesmo. É pena.
A adaptação do romance de Alexey Salnikov faz-se pela transformação direta das palavras em imagens, num exercício bastante infantil e didático, que parece ser cáustico, mas é só o desmembramento, por puro sadismo, de um cadáver já em decomposição.
É pena porque, precisamente, o teatro de Kirill Serebrennikov quis sempre perguntar mais do que dizer e, numa clara vontade de chamar a si a adequação local e referencial do pós-dramatismo, sabia usar a seu favor o princípio de descrença e verosimilhança, convocando os espetadores para a escrita de um lugar, para a criação artística como reduto provavelmente último para uma resistência combativa e utópica, mas sabiamente conhecedora dos limites da própria criação. Espetáculos como The Idiots (2015), a partir das ideias de Dostoievski no romance O Idiota casadas com os princípios amargos e suplicantes do movimento Dogma 95 tal como aplicadas no filme de Lars von Trier, no qual se baseava, ou Dead Souls (2016), inspirado no texto de Gogol As Almas Mortas, era a ideia de um grande e panteísta retrato russo, mastigado pela falência das promessas e denúncia da falsa superioridade moral, que estruturava uma pesquisa sobre as capacidades de transformação individuais, apesar da miséria moral a que eram votados quem nele ainda acreditavam. Eram encenações de denúncia, e que lhe custaram o país e, provavelmente, insuflaram o desejo de se tornar o porta-estandarte de uma rejeição intensamente política. A espaços, essa ideia ainda está presente no filme imediatamente posterior a este, Zhena Chaikovskogo (Tchaikovsky’s Wife, 2022), e onde a falência desse grande mistério que é a alma russa, surgia através da exposição de um feminismo maltratado e ridicularizado, mas mesmo assim livre, porque assente num desejo de superação e libertação de um jugo referencial.
Em A Febre de Petrov, é como se Kirill Serebrennikov precisasse de fugir e, não tendo onde se esconder – o que, e naturalmente, não é nada de somenos face ao exílio a que se forçou na Alemanha, depois de perseguições amplamente injustas e politicamente motivadas – inventasse um mundo habitado por personagens, ambientado em cenários e dissolvido em sucessivas falências que, sendo disso consciente, parece tornar-se ele próprio não resignado mas combativo, mas jocoso e desistente. Poderia ser a última gargalhada de um condenado, mas parece ser só risível.
Haverá uma outra hipótese para a redenção de A Febre de Petrov, e decorre do contexto de apresentação. Tendo estreado em competição no Festival de Cannes em 2021, a primeira edição, e mesmo assim adiada, depois do cancelamento decorrente da pandemia de COVID 19, o filme de Serebrennikov ombreou com outras distopias e exercícios de denúncia de opressões várias, como Titane (2021), de Julia Ducournau, que ganhou a Palma de Ouro, Memoria (2021), de Apichatpong Weerasethakul, France (2021), de Bruno Dumont, Ha’berech (O Joelho de Ahed, 2021), de Nadav Lapid, e Compartment No. 6 (2021), de Juho Kuosmanen, e Annette (2021), de Leos Carax, títulos atravessados por um mal-estar social, para o qual o coletivo parecia não ter solução, confiando cada um na gestão do arbítrio e da sageza. Era uma seleção de resposta ao confinamento ou, na presciente relação que a criação artística tem com o real, a materialização e a denúncia de algo já há muito identificado e que, por causa da pandemia, transformada em ar(te) do tempo?
O que quer que seja, este A Febre de Petrov faz fraca figura, não pela legítima interrogação sobre como sobreviver, mas pelo emaranhado de hipóteses em que parece se ter enredado, numa metáfora estafada da boneca cheia de segredos e espelhos.
★★☆☆☆