A Berlim do final da II Guerra Mundial é feita de escombros e é para esses escombros que Die Ehe der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun, 1979), de Rainer Werner Fassbinder, nos leva nos seus momentos iniciais, numa cena quase cómica, um casamento que teima em acontecer debaixo de bombardeamentos, num edifício em ruínas, o oficial que celebra o casamento a tentar fugir e os noivos no seu encalço para extraírem dele a necessária assinatura do assento de casamento. Em contraponto ao lado cómico do episódio, o amor desesperado dos noivos, numa felicidade possível que não dura mais do que um dia pela metade e uma noite por inteiro. Nesse desespero do amor, é um cenário em tudo semelhante ao de A Time to Love and a Time to Die (Tempo para Amar e Tempo para Morrer, 1958), o filme em que Douglas Sirk – um dos grandes mestres de Fassbinder – adaptava o livro de Erich Maria Remarque sobre a paixão que desabrocha entre dois jovens num tempo hostil ao amor.

Die Ehe der Maria Braun corre para um terreno bem diferente do filme de Sirk, não nos permitindo conhecer nada do amor do casal Braun e levando-nos desde logo para o final da guerra (um pouco como se fosse dada a hipótese ao casal de A Time to Love and a Time to Die para sobreviver ao conflito, mas sem que sejam dados a conhecer pormenores sobre a história de amor que antecede o casamento). E é justamente porque nada conhecemos desse amor e, em particular, de Hermann Braun (Klaus Löwitsch), que nos sentimos sempre tentados a julgar ridícula ou, pelo menos, a duvidar da abnegação de Maria (Hanna Schygulla).
Surpreendentemente, Hermann corresponde ao amor de Maria. O amor dele é do mesmo calibre e ele nunca duvida de Maria, de tal forma que ela se sente sempre à vontade para lhe confessar os seus planos, referindo os homens com quem vai dormindo pelo caminho. Hermann sabe que isso não tem verdadeira importância. É um absoluto romantismo sórdido onde não há lugar para ciúme ou dúvida, mesmo tratando-se de um casamento que assenta apenas numa noite inteira e metade de um dia – o tempo que foi dado aos recém-casados para passarem juntos, numa cidade já feita de escombros, antes de Hermann ser reenviado para a frente de batalha.
Os escombros são de tal forma a imagem da Alemanha no imediato pós-guerra, que acabariam mesmo por originar um género fílmico, os chamados Trümmerfilme. Die Ehe der Maria Braun recupera esta paisagem desoladora, feita de nada, inteiramente povoada de mulheres, no trabalho interminável de remoção manual de todos estes restos de uma cidade. Maria Braun terá de reinventar-se, tirar o seu corpo da ruína. E o homem que lhe vende a primeira peça dessa nova imagem, um vestido preto, é o próprio Fassbinder, na pele de um agente do mercado negro. É ele quem permite a invenção desta personagem que é a nova Maria Braun, é ele o facilitador do regresso de Maria à condição de mulher, na sua luta pela sobrevivência possível numa Berlim destroçada. Mas Maria continua, nos seus passeios, a regressar aos escombros, como se alimentasse uma nostalgia da ruína (o que pode levar-nos a pender para uma das respostas quanto ao final do filme).
Regressando à paisagem dessa Berlim feita de escombros, em Phoenix (2014), Christian Petzold irá ensaiar uma transformação feminina com outros contornos, a transformação de Nelly (Nina Hoss), não numa outra mulher, mas em si própria. E pela mão do homem que melhor deveria conhecê-la – o seu próprio marido –, que chega mesmo a encenar cada pormenor do seu regresso d’entre les morts [para citar o título do livro que deu origem a Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), referência incontornável do filme de Petzold)] – a roupa, a maquilhagem, o cabelo, os gestos, as palavras e os silêncios.
Maria procura tornar-se uma pessoa diferente também para que o marido possa encontrar uma mulher cativante no seu regresso. É esta a revolução operada pela mulher alemã, disposta mais do que ninguém a fazer o verdadeiro corte com o passado, reclamando a sua autonomia e o seu corpo.
À medida que Maria Braun vai evoluindo na sua recriação, a sua devoção inabalável por Hermann vai-se tornando cada vez mais estranha, porque soa a algo de antiquado, não se coadunando com o seu perfil de mulher moderna e determinada. Maria é dona do seu corpo e usa-o como mulher livre, o que não fere a sua fidelidade inabalável ao marido. Numa Alemanha derrotada, as únicas moedas de troca que valem são o corpo de uma mulher e cigarros. Esta é uma sociedade em que há uma enorme desproporção no número de mulheres existentes para cada homem, e os homens que voltam da guerra, de onde cinco milhões não voltaram, revelam-se magros, doentes, homens quebrados, à procura do seu lugar (veja-se a cena em que os homens se lançam sobre uma beata como pombos desesperados que atacam as migalhas no chão).
No final da guerra, mais de seis milhões de soldados alemães encontravam-se ainda em campos de prisioneiros de guerra, pelo que o seu regresso foi moroso e doloroso. Maria e a mãe vão ouvindo os números e nomes anunciados na rádio, de sobreviventes de que houve notícias, a quem saiu na lotaria estarem simplesmente vivos. É apenas a isso que podem aspirar, porque o país para onde regressam é feito de entulho.
Maria procura tornar-se uma pessoa diferente também para que o marido possa encontrar uma mulher cativante no seu regresso, e não alguém como Betti (Elisabeth Trissenaar) que não tem nada para oferecer ao marido que regressou, apenas dotes de dona de casa e horizontes limitados. É esta a revolução operada pela mulher alemã, disposta mais do que ninguém a fazer o verdadeiro corte com o passado, reclamando a sua autonomia e o seu corpo, procurando o relacionamento com os GI americanos estacionados em várias cidades alemãs, afinal, quase os únicos homens existentes (o que levou ao muito pouco dignificante epíteto de Veronika Dankeschön, nome dado às Fräuleins alemãs, procurando alertar os GI para os perigos de doenças venéreas – V.D.). Essa vontade de reinvenção e libertação surge até mesmo na mãe de Maria, que a dado momento decide voltar a tornar-se mulher.

Por isso o regresso de Hermann, numa altura em que ninguém acreditava que tal ainda fosse possível (mesmo Maria, que apesar de tudo ainda se considera casada), mostra o seu lado patético como homem traumatizado e perdido. Confrontando o amante da mulher, gasta toda a sua força num estalo (significativamente, não ao amante, mas à mulher) e corre sofregamente para fumar um cigarro, tentando recompor-se desse esforço enorme. Maria mata Bill (George Eagles) para provar o seu amor e Hermann confessa o crime pelo mesmo motivo. Por isso o rosto de Maria é triunfal durante o julgamento, porque ela agora sabe ter força para enfrentar todas as adversidades, sorrindo mesmo perante a incompreensão dos americanos pelos refinamentos da língua alemã, que para ela não são meros pormenores – “Den Bill habe ich lieb gehabt. Und ich liebe meinen Mann”. O amor que a une a Hermann é muito diferente do amor que nutria por Bill, o que não significa que um sentimento não seja tão verdadeiro quanto o outro.
Maria Braun consegue alcançar o sucesso justamente triunfando sobre os vencedores da guerra. Com Bill aprende a falar inglês, e será Oswald (Ivan Desny) a permitir-lhe aprender uma profissão e ascender socialmente. Ao conquistar Oswald, um francês, Maria ensaia uma reinvenção da história quanto a vencedores e derrotados.
A passagem da miséria extrema para este estado de euforia económica, do “sobreviver” para o “viver”, foi demasiado violenta, deixando pouco tempo para pensar ou para ser infeliz. A Alemanha renasce pelo milagre económico, um milagre a todo o custo, que não deixou tempo para exorcizar os pecados e os fantasmas da guerra.
A força de Maria reside na sua Vorstellung, a visão daquilo que será o seu futuro ao lado de Hermann. Mas quando todo o presente foi feito dessa visão do futuro, o que fazer do futuro quando ele finalmente chega? E o que fazer de uma Alemanha que viveu tantos anos para atingir o progresso económico que finalmente chegou? O que ficou pelo caminho?
Há, desde logo, uma lucidez inquietante no médico que Maria visita, ele que afirma ter aprendido a esquecer e a acreditar. Apesar do seu discurso alheado, ele aparenta ser a única pessoa sóbria numa sociedade de inebriados – demasiado velho para viver, demasiado cobarde para morrer. E veja-se a forma como ele diz a Maria que, de qualquer forma, se houver algum problema, sempre este será resolvido com uma dose de penicilina. Ao que Maria responde: “o que é a penicilina”?
A passagem da miséria extrema para este estado de euforia económica, do “sobreviver” para o “viver”, foi demasiado violenta, deixando pouco tempo para pensar ou para ser infeliz. A Alemanha renasce pelo milagre económico, um milagre a todo o custo, que não deixou tempo para exorcizar os pecados e os fantasmas da guerra. “As pessoas felizes parecem-nos indecentes quando estamos infelizes.” – afirma Maria. Quando a ferida da guerra ainda é muito recente, ouve-se na rádio a voz de Konrad Adenauer rejeitando o rearmamento, porque a guerra roubou à Alemanha uma geração inteira. Mas é esse mesmo Adenauer que, mais perto do fim do filme, ouvimos novamente na rádio a defender o direito da Alemanha ao rearmamento.
Será necessário recuar a Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel (Mamã Küsters Vai Para o Céu, 1975), filme em estreita relação com Die Ehe der Maria Braun, para vermos como a concretização da Vorstellung leva a um impasse – a figura de Corinna (Ingrid Caven) maquilhando-se na cozinha, numa confusão de objectos, que juntam a cama e a mesa. Ou vestida com o seu tailleur cinzento à la Edith Head, em total desacordo com o seu tempo, talvez uma Maria Braun perdida no caminho para o sucesso.


Mutter Küsters’ Fahrt zum Himmel (Mamã Küsters Vai Para o Céu, 1975)

Depois de anos de separação de Hermann, é chegado finalmente o dia de concretização do futuro. Maria atravessa toda a cena final inebriada, como inebriada estava a Alemanha nesta época, o milagre económico concretizado e o milagre de Berna a soar alto no rádio (a final do Mundial de futebol em que a RFA venceria heroicamente a Hungria). A explosão que põe fim ao milagre concretizado de Maria é um ensaio de outras explosões que abalariam a sociedade alemã nas décadas seguintes (e que igualmente integram a obra de Fassbinder) – as acções do grupo Baader-Meinhof. Também aqui há uma ideia de trilogia BRD na filmografia de Fassbinder, que ultrapassa o tríptico Lola / Veronika Voss / Maria Braun. Trata-se de uma BRD tripartida, entre Berlin Alexanderplatz (1980) como prelúdio da chegada ao poder do regime nacional-socialista, a Alemanha que tenta sair das ruínas em Die Ehe der Maria Braun, e a Alemanha em chamas de filmes como Die dritte Generation (A Terceira Geração, 1979) ou Deutscland im Herbst (Alemanha no Outono, 1978).

Posto isto, como classificar o gesto final de Maria – acidente ou acto deliberado? Os cigarros fumados sofregamente no filme estão sempre associados a momentos de desorientação – a mãe que cede uma jóia em troca de dois maços de tabaco, Hermann que volta da guerra para surpreender Maria nos braços do amante. Também neste momento Maria surge como perdida na sua própria casa, agindo freneticamente, assustada com a perspectiva de ser forçada, finalmente, a conhecer o homem que ama.
O caminho de Maria Braun e da Alemanha confundem-se, numa luta dificílima, num desafio à sua determinação, e que parece desaguar, finalmente, no sucesso – a concretização de um milagre. Maria e Hermann Braun juntos finalmente, companheiros, iguais na sua fortuna. Por isso é o final desarmante – a implosão deste milagre será também a implosão do milagre alemão. Tudo submerso na banalidade e futilidade de um relato de futebol. Como profecia que se concretiza, do entulho vim e ao entulho voltarei.