Numa pacífica e acolhedora aldeia da Borgonha, cercada por um cenário bucólico, pitoresco e campestre, o início do Outono pinta a paisagem com tons de castanho, vermelho e verde-musgo, as folhas caídas forram os caminhos de terra batida e o silêncio convida à serenidade e à introspeção. Por estes trilhos passeia Michelle, uma reformada viúva, cuja rotina inclui cuidar da horta, manter a limpeza da casa irrepreensível e usufruir da companhia das suas amigas, em especial Marie-Claude, sua confidente desde a juventude. No elo firme do companheirismo que as une, Marie-Claude acompanha Michelle nas suas caminhadas, assim como Michelle se faz presente nas visitas de Marie-Claude à prisão, onde se encontra com Vincent, o filho, responsável por cometer pequenos delitos para sustentar o vício da droga.
Mas não é apenas Marie-Claude que enfrenta adversidades; Michelle também carrega os seus próprios fardos e, num suspiro, vê a sua tranquilidade ser transformada em angústia e a doçura a dar lugar ao desassossego. A aparente simplicidade inerente à sua vida começa por ser perturbada pela chegada da filha, Valérie, que vinda de Paris, ia deixar o pequeno Lucas, filho único de pais em processo iminente de divórcio, sob os cuidados da avó. Ali, o espetador é confrontado com a frieza na voz e a indiferença nos gestos desprovidos de afeto e calor humano de Valérie para com Michelle, revelando uma relação disfuncional e, sobretudo, corrompida. Para tornar a situação ainda mais delicada, o inesperado acontece: Valérie sofre uma intoxicação alimentar causada por cogumelos venenosos que Michelle havia preparado e colhido nos seus passeios com Marie-Claude e, acusando a mãe de a tentar matar, volta para Paris, levando Lucas consigo.
À medida que os momentos se desdobram e a estação se intensifica, a aldeia, que sempre foi vista como um refúgio, revela-se agora como um quadro sombrio de revelações dolorosas, confrontos emocionais e tragédias futuras, onde o drama familiar, o amor e o mistério começam a alinhar-se. Vincent é libertado da prisão e, ao prometer a Marie-Claude que procuraria uma vida digna, começa a trabalhar para Michelle como jardineiro, estabelecendo-se entre ambos um vínculo profundo. Gradualmente, imergimos no passado das duas amigas, e é-nos desvendado que viveram à margem da sociedade enquanto prostitutas, uma realidade que Valérie e Vincent interpretam de forma distinta: enquanto a primeira nunca foi capaz de aceitar a vivência, carregando consigo o peso da vergonha em relação a Michelle, o segundo criou um significativo sentido de proteção para com Marie-Claude. A este propósito, somos conduzidos por diálogos que refletem o trauma, o vazio deixado pela culpa e o processo de aceitação: “Não vês que eles nos destruíram?”, questiona Valérie a Vincent; “Custa-me dizê-lo, mas falhámos mesmo com os nossos filhos”, confessa Marie-Claude a Michelle; e “Fomos as mães que podíamos ter sido”, admite Michelle a Marie-Claude. A este propósito, recupero uma sequência que me ficou gravada na memória: ao caminhar até ao seu jardim, onde o toque cuidado de Vincent deixou tudo bem tratado, Michelle encontra o telemóvel do jovem, que o deixara esquecido pousado sobre a mesa. Ao agarrá-lo, quase por reflexo, é surpreendida pela imagem dele ao lado da mãe, Marie-Claude, como fundo do ecrã. Emocionada pela consciência dos muros indestrutíveis que se erguerem na sua relação com Valérie, deixa as lágrimas caírem, sem, no entanto, deixar de esboçar um leve sorriso, numa aceitação marcada pela sensação de felicidade ao ver que a melhor amiga conquistou o que ela sempre desejou.
O que inicialmente parecia ser exclusivamente uma história sobre a amizade, a lealdade e a cumplicidade entre duas mulheres, seguida de um relacionamento familiar problemático, acaba por se revelar também como um enredo de caráter policial.
O incidente com Valérie enuncia a intenção de Ozon em explorar a escuridão que envolve a morte. O episódio surge como o prenúncio do seu próprio falecimento, que viria a acontecer posteriormente, mas não seria o único: uma delas resulta de um crime ou de um acidente, enquanto as outras ocorrem de causas naturais. Assim, o que inicialmente parecia ser exclusivamente uma história sobre a amizade, a lealdade e a cumplicidade entre duas mulheres, seguida de um relacionamento familiar problemático, acaba por se revelar também como um enredo de caráter policial. A narrativa, imersa em ambiguidades, impede-nos de discernir com clareza o certo e o errado, e o justo e o injusto, deixando, desta forma, espaço para diversas interpretações. A este propósito, recupero outra sequência que me ficou gravada na memória: de uma forma profundamente tocante e carregada de simbolismo, unindo a beleza da natureza com a gravidade da transição entre vida e morte, Michelle passeia com Lucas e Vincent, volvidos quase dez anos, pelos caminhos que sempre percorreram. Michelle começa a percecionar algo além do visível e, nesse momento, surge a visão de Valérie, envolta num vestido negro, que se aproxima da mãe e lhe estende a mão. A câmara ergue-se, captando Michelle de cima, como se fosse o próprio céu a observá-la, destacando a figura vulnerável no centro do cenário bucólico, pitoresco e campestre de Borgonha. O convite de Valérie simboliza um destino inevitável, em que o natural e o sobrenatural, o real e o imaginário (ou a demência e senilidade?) se entrelaçam na finitude.
Os simbolismos presentes ao longo do filme são uma constante, manifestando-se através de elementos como os cogumelos e o Outono, que metaforizam a mortalidade e a toxicidade, o envelhecimento e a transformação. Enquanto os primeiros representam, por um lado, a ambiguidade da vida, podendo ser percecionados paralelamente como alimentos inofensivos ou venenosos, por outro, a toxicidade inerente ao relacionamento entre Michelle e Valérie, o segundo funciona como uma metáfora visual e emocional para a renovação de ciclos, patente nas mudanças psicológicas das personagens e no impacto das suas relações interpessoais.
Enquanto temáticas centrais na filmografia de François Ozon, a complexidade das relações humanas e as dinâmicas familiares (5×2, Five Times Two, 2004), a morte e o luto (Tout s’est bien passé, Correu Tudo Bem, 2021) a realidade e a fantasia (L’Amant double, O Amante Duplo, 2017) e a moralidade e a ética (Grâce à Dieu, Graças a Deus, 2018) encontraram em Quand vient l’automne (Quando Chega o Outono, 2024) um terreno fértil para estabelecer uma paleta de cores suave e uma iluminação natural, por vezes, subtil – conferindo-lhe uma sensação de serenidade e acolhimento – por vezes, sombria – proporcionando uma atmosfera escura e fria, amplificando o drama e o suspense. Ozon recorre frequentemente a close-ups para captar as expressões faciais dos protagonistas, compreendendo pequenos gestos e olhares que revelam ocasionalmente mais do que os próprios diálogos, e possibilitam a entrada no seu universo psicológico. Durante os trilhos pelas paisagens outonais, a câmara acompanha as personagens em planos-sequência gerais, reforçando, por um lado, a continuidade e o realismo, que promovem a imersão do espetador na experiência das personagens, e por outro, estabelece uma conexão entre estas e o cenário ao seu redor, ajudando a construir um ritmo contemplativo, difícil de escapar.
Embora Quand vient l’automne nos ofereça uma reflexão profunda sobre os vínculos familiares, as cicatrizes do passado e a luta pelo perdão, François Ozon consegue equilibrar habilidosamente o peso da narrativa com a leveza na sua abordagem, empregando uma harmonia delicada, em que a sensibilidade, o humor subtil e a honestidade se completam. O resultado é um filme que, no fim, desperta no espetador uma sensação agridoce, convidando-o a espelhar-se nas personagens e, simultaneamente, a olhar para dentro de si e para o mundo ao seu redor, numa reflexão sobre o que nos une e o que nos separa.
★★★★☆