1. Entrar na piscina é mergulhar, desde logo, num meio de imagens distorcidas. Não só a imersão tende a ser completa, como se alteram por completo as relações entre nós e o mundo. A água é um outro mundo. Não o nosso mas um receptáculo a partir do qual temos de redefinir a nossa imagem e o espaço. Estratosfera = mundo sub-aquático. De qualquer modo, uma expulsão do meio natural e a sujeição (processo de submersão ou imersão que nos obriga a reconstituirmo-nos como sujeitos) a outra atmosfera e a outras condições de gravidade.
Mudam as imagens – caso do nosso reflexo, modulado, semelhante ao das imagens sintéticas no cinema [vd. o modelo T-1000 em Terminator II (O Exterminador Implacável 2, 1991) de James Cameron] – mas também os acidentes, eles próprios submetidos à ampliação táctil de um permanente efeito de zoom que pontua as paredes do holográfico espaço; por fim, o exterior, irrealizado, e que, sob a invisibilização de uma excessiva luminosidade ou o efeito de gaze de uma estremecida penumbra, parece ter-se tornado uma espécie de ampola ou câmara de vácuo de aquário.
O mais importante, contudo, talvez seja essa sensação de imponderabilização de todas as relações e das imagens (intensíssimas ou desfocadas, deslocadas) no espaço.
Observar uma fotografia – fixá-la, procurar entrar dentro dela – pode ser descrito como uma experiência semelhante à de mergulhar na superfície líquida de uma piscina. O seu espaço (espectral, fantasmático), fechado e rarefeito (esse ecrã de reflexão com que a fotografia nos ir/realiza), é análogo ao do aquário.
Como descrever, então, essa falta de peso que sentimos quando, por acaso, submergimos nesse duplo espaço da piscina e da fotografia? Esse desprendimento de nós próprios que deixa de nos confirmar como centro (eixo do mundo), passando a referir-nos como elementos, moléculas, de um outro todo, contínuo?
Já no caso da sequência das imagens de cinema a sensação é a de sermos engolidos pelo fundo, sem superfície – um espelho em que nos possamos reflectir -, dessa massa líquida. Perdida a linha de horizonte (a bordadura, moldura da fotografia) só nos resta mergulhar, afundarmo-nos, para nessa nova dimensão (substância) encontrarmos as formações, só para nós anómalas, de um outro mundo [pense-se no contacto da nadadora com a criatura anfíbia de The Creature of the Black Lagoon (O Monstro da Lagoa Negra, 1954) de Jack Arnold].
2. Carácter paradoxal do dispositivo de percepção (visualização) do aquário: 1) por um lado, trata-se de um recipiente de vidro (uma espécie de câmara clara) que contém líquido mas em que a “espessura”, realidade material do vidro, tende a desaparecer, a ser absorvida pela massa do fluido (ela como que se dissolve ao passar para o seu interior); 2) corresponde-lhe contudo, enquanto dispositivo óptico (de visibilização: janela/ vitrina), uma visão (pisciforme?, do interior do recipiente?) arrastada (pesada) e floue, a que se encontra associado um princípio de “deformação” (anamorfose); 3) enquanto operador, lugar de formação/ produção de imagens, adequasse-lhe menos uma descontinuidade lateral/ horizontal (sequência de diapositivos, fotogramas) do que uma sobreposição vertical intersticial de imagens. Uma visão outra, de fundo; ecrã da matéria, substância.
Com efeito, em algum cinema recente, nomeadamente no de Christian Petzold [Yella (2007), Undine (2020)], encontramos essa concepção do cinema como aquário: uma matéria primeira, mediúnica e substancial (física) que possui as suas febres e tempestades (convulsões humorais e cataclismos metabólicos) de que emanam e se desprendem as “formas” (figuras) que depois nos assolam e assombram (as dos nossos sonhos, pesadelos ou desejos). Trata-se contudo, nomeadamente em Petzold, de “formas” que, apesar de tudo – e de acordo com um trabalho na matéria que as esculpe na luz afundada, floue, de um mal definido claro-escuro -, ainda conseguem flutuar e vir à superfície.

É desse “fundo” (“2ª realidade”, atmosfera e mundo submarinos (lembremo-nos de “The City in the sea”, o poema de Poe) que Undine (Paula Beer) vem, progressivamente ascende à superfície, metamorfoseando o filme: alagando-o, encharcando-o sempre com a sua dupla realidade e presença (temporal e mítica, viva e defunta). Um “fundo” a que mediúnica e automaticamente ela responde (aos apelos que lhe vêm da morte ou do inconsciente) e de que constituem “figura” (câmera de ressonância simbólica) tanto o lago em que Christoph (Franz Rogowski) mergulha como, depois, o seu “coma” (morte cerebral, o pântano do seu espírito). E isto porque se, como escreve Novalis, “todo o ser amado é o centro do paraíso”, a sua “perda” (ausência) lança-nos definitivamente no “inferno” (daí a justeza da declaração de Undine ao seu amante de que se ele a abandonar, ela terá que o matar).
Deste modo, se nos dois filmes o “meio” – simultaneamente medium (formal) e habitat (ecológico) – é o mesmo, em Yella o elemento aquático (no seu cinzento metálico) é mais denso e pesado, introduzindo nas imagens uma sugestão de “horizontalidade” que é sublinhada pelo uso da música (uma versão da Sonata nocturna de Beethoven).
Se Undine vem (originariamente) da “água” (do mito: morte) – universo fundador, primeiro, a que no fim retorna -, a Yella (Nina Hoss) falta a “encarnação” do personagem – tudo se passa no plano do “imaginário”, do que poderia ser [um pouco como em Carnival of Souls (O Circo das Almas, 1962) de Herk Harvey] um “sonho” (idílio: delírio) da vida na morte. A sua falta de “substância”, aliás, é ainda reforçada pelo motivo, bem romântico, do “duplo suicídio” (ainda que forçado) de Yella e do seu ex-marido, Ben (basta termos presente o de Heinrich von Kleist e Henriette Vogel, em 1811 – data de publicação de Ondine de La Motte-Fouquet).

Em certa medida, Yella é um personagem que ainda não passou – como, dir-se-ia, o cinema de então de Petzold – por uma metamorfose (evolução/ involução?) completa (toda a acção no “mundo exterior” situa-se assim mais no plano do “romanesco” do que no do “drama” [ou “tragédia”]) e que ainda não assumiu a dimensão mítica que pode fazer dela uma sereia.
3. A “experiência” (percepção) do cinema encontra-se relacionada com uma situação de “imersão” numa atmosfera de (quase) “afogamento” num aquário (um micro clima sensorial e imaginário) que Bu san (Adeus, Dragon Inn, 2003) de Tsai Ming-Liang dá a ver e de que põe exemplarmente em cena a “figuração”.
Num dos poucos diálogos do filme (“mudo” mas não “surdo” já que é fértil em sonoridades), alguém afirma que aquele cinema se encontra “assombrado”, povoado por fantasmas. E estes tanto podem ser as imagens projectadas no ecrã, [de Dragon Inn (Estalagem do Dragão, 1967) de King Hu] – afinal também elas “fantasmas” dos espectadores -, como estes, eles próprios “fantasmas” (por elas “sonhados”) do ecrã: as imagens e acções dos personagens no ecrã corporizam e personificam a nossa “fala” (voz) pelo que nós, os espectadores, somos os suportes ventríloquos dessa experiência de ocupação e de usurpação de identidade pelos fantasmas (os nossos e os dos outros) da matéria (mundo) do cinema (Schefer). Mesmo os “sons” se revestiriam do estatuto de “fantasmas”, tanto das imagens como do lugar (a sala de cinema) por onde eles circulam. Com efeito, decantadas as imagens (e a acção) nos sons – ou os espectadores nas suas sombras – aquilo que se tem do filme (na experiência da sua visão) é fundamentalmente tempo, a essencialização (abstracto-concreta) do cinema como “duração”, espessura do tecido das impressões aí sentidas (e do seu imaginário).

Mas não só, já que também o filme de King Hu, que passa na última sessão daquele cinema – ou o próprio género do Wuxia em que ele se integrava – pode ser encarado como o “sonho” ou a “fantasmagoria” de um modo de usar (=viver) o cinema que passa pela participação deambulatória do espectador e pela sensorialidade (polimorfa) do seu modo de ocupar esse espaço (estendendo a arquitectura da sala pelos mundos do filme). “Au commencement est la demeure” (“no início encontra-se o lugar”), escreve Henri Michaux em Une Voie pour l‘ insubordination (fazendo ecoar o Cocteau de “La Maison hantée” em La Difficulté d’être): com efeito, é ela que conserva as marcas (mnésicas) daqueles que por ali passaram e aí, por algum tempo, permaneceram como resíduos, vestígios de cotão nas paredes. Encontramo-nos, deste modo, no âmbito de uma verdadeira hantologie (Derrida), uma ontologia (negativa) do “fantasma” ou, talvez melhor, da sua “ausência”: o primeiro estado, realidade, seria assim o da ausência“ mas de uma “ausência” não “morta” mas “viva”, expectante, que se forma (desenvolve) do augúrio (expectativa) de uma vinda.
Compreende-se assim que os dois homens mais velhos (talvez o Mário Jorge e eu) que se encontram e conversam no final da sessão, bem poderiam ser a “sombra”, os fantasmas vivos desse filme e dessa ideia de cinema de que, por um dia, talvez tenham feito parte. “Já ninguém se lembra de nós”, diz um deles, na verdade Miao Tien, actor tanto de Dragon Inn como em Xiá Nu (A Touch of Zen, 1971) de King Hu, dois clássicos do wuxia.
O próprio edifício do cinema, com o anúncio (pintado) do filme bem perceptível na bruma do crepúsculo, parece ali instalar-se como o “precipitado” de um sonho (pesadelo?) ou a “fantasmagoria” de uma Taipé mergulhada (e engolida) na chuva de mais uma tempestade tropical. O filme – ou o que resta dele -, como também é dito no final de Yo dai zong shic (O Grande Mestre, 2013) de Wong Kar-Wai, talvez não passe, afinal, do “espectro” (sonoro-imagético) da velha canção que corre sob o genérico, afundando-o na noite do real (mundo).
4. Antes de mais realçar a exemplaridade da sequência inicial de Kishibi no Tabi (Rumo à Outra Margem, 2015) de Kiyoshi Kurosawa, com o aparecimento do “fantasma” de Yusuke (Tadanobu Asano): como costume, ele já está no lugar (real) e tem apenas de ser activado (convocado), ou por um acontecimento particular a que ele se encontra ligado – aqui, a preparação de bolos shiratama que exigem um tipo particular de farinha – ou pela “forma”, a sua (re)actualização que a eleva a um 2.º grau em função do uso de um determinado processo, de um modo geral já conotado: aqui, a lijeira panorâmica para a esquerda – a câmara, movendo-se, divide o real, deslocando a matéria no sentido do “fantasma” (extrai dele um seu semelhável, simulacro) – até se vir fixar na zona escura (sombria) do espaço, a cozinha [uma sequência afinal muito próxima do campo/ contra-campo anamnésico, revelador, da “mulher-fantasma” de negro de Kairo (Pulse, 2001)].
Num primeiro momento, activados o espaço (lugar) e o “fantasma”, este ainda não se torna visível embora a sua presença (manifestação) afecte a tonalidade (metabolismo) do plano (nele tem-se o ponto de vista do “espaço” – e, nele, o do “fantasma” – sobre a mulher, Mizuki [Eri Fukatsu]); segue-se um novo plano, agora da mulher que olha para trás, para o lugar em que se encontra o “fantasma” (do marido, desaparecido há 3 anos) que se torna enfim perceptível na sombra do fundo; marca de que não houve “salto” (descontinuidade) entre os dois planos, o “real” e o do “fantasma”, a reacção da mulher que se limita a dizer: ”Bem-vindo a casa”, dando assim o seu aval à naturalidade, assente no registo “realista” das situações e imagens, do “regresso” do fantasma. Não é assim de estranhar que este se sente à mesa para começar a comer os bolos que a mulher lhe costumava fazer (esse ritual, aliás, que se repete mais adiante, funciona como uma forma de “convocação”).

Claro que se não há corte, nítida distinção entre os dois mundos (estados do real) – na primeira viagem de comboio temos planos frontais de Yusuke e Mizuki, sentados no banco, lado a lado –, no seu percurso iniciático (trata-se aqui não tanto de “descobrir” algo como de “re-conhecer” o que já se viveu, intuiu ou sonhou) o par cruza-se com outros “mortos”(-vivos) que permanecem e se deslocam nesse espaço intermediário (medium), que é o do real e o do filme – um lugar onde têm vidas próprias até descobrirem que estão “mortos” ou que é tempo de regressar ao lugar de onde partiam. O filme, com efeito, é da ordem da substância do mundo, participando dessa realidade intermediária já que tudo, de alguma forma, é fantasma. Não se trata de um “sonho” (como Mizuki julga de início) mas de uma experiência de duração sensível, sensibilização do tempo, afinal a matéria (substância) do cinema (como em Goodbye, Dragon Inn de Tsai Ming-Liang).
Como é dito mais adiante por Yusuke, numa das suas aulas, a propósito do paradoxo (aporia) da existência de uma “partícula” (com “massa zero”) numa onda de luz (movendo-se com a velocidade do ∞), o “zero” nunca é verdadeiramente “zero”: com efeito, como sucede com a imagem-cristal (de Deleuze), nele co-existem, sobrepõem-se sempre 0 e ∞ (algo da ordem do duplo estatuto actual-virtual da imagem de cinema) pelo que o “todo” (a matéria: mundo) existe sempre enquanto “combinação de ‘nadas’”(= zeros). Os “fantasmas”, deste modo, constituem a “substância”/“estrutura” do mundo (real) e as suas “figurações”, dado o carácter espectral da imagem cinematográfica, constituem a sua meta-linguagem, tanto no real como no cinema. Como afirmou Jacques Derrida na sua entrevista (“Le cinéma et les fantômes”) aos Cahiers du Cinéma (n.º 556, 2001), as “ficções”, e os próprios “corpos” dos actores, permitem enxertos de espectralidade, inscrevendo “vestígios de fantasmas numa trama genérica, a película projectada, que é ela própria um fantasma”. Deste modo, o “ser-fantasma” [“rêve de figuration” (Raymond Bellour)] que é o personagem” (ou a “intriga”) vê-se narrativizado/ dramatizado (é essa circunstância que lhe dá visibilidade) pela modulação do (não-)ser das imagens de cinema que o reconduzem (como sucederá aqui a Yusuke) ao seu fundo.
Caso, afinal, do vazio fértil da “tabela de elementos” e da cosmogonia oriental que leva Yusuke, na sua alocução final, ao abordar a difícil questão do início e fim do universo (vida), a concluir que, à escala global, a terra constituiria apenas uma parcela do “todo”, pelo que, encontrando-se o “todo” em constante “expansão” e “mutação”, não há verdadeiramente “fim”, apresentando-se sempre o mundo num momento do seu constante “início” (nó nessa teia universal, os corpos de Yusuke e Mizuki fazem amor nessa mesma noite).
Não é assim de estranhar que, dada esta construção em “esferas” (níveis/ mundos) que participam (interseccional e porosamente) uns dos outros, a água constitua o elemento (simbólico) de referência do filme. Yusuke morre no mar e é junto a uma dupla cascata que se observam as passagens, através do “dark spot” (matéria negra) de uma caverna semi-oculta, entre os dois mundos [é aí, por exemplo, que Mizuki (re)encontra o pai]. Pode-se assim perguntar se Misuki deve esquecer Yusuke (como lhe recomenda o pai), para se libertar dele, ou se Yusuke vem ter com Mizuki para que ela lhe perdoe uma “infidelidade” e ele possa finalizar a sua jornada (ciclo). Coloca-se também aqui a questão de saber se o “fantasma” é autónomo, tem paixões e uma narrativa própria, ou não passa de uma “projecção” e se encontra preso aos conflitos dos vivos? Como Mizuki diz a certa altura ao marido, eles “não são diferentes”, são feitos da mesma matéria (porosa, aberta tanto ao nada como ao ∞).
Um conjunto de “equivalências” (simbólicas) estrutura assim o filme: dado entre matérias tão “fluidas” (líquidas) como a memória, o fantasma e o cinema, compreende-se que o filme acabe na e com a água, a zona costeira onde vai dar o par. Com efeito, se a “água”, na sua dimensão “especular”, como observa Gaston Bachelard, constitui um espaço de “desdobramento” e “reversibilidade” das imagens, ela é também o meio do “esbatimento das diferenças” num fluido contínuo que as absorve, submerge e refaz unitariamente: “a água, agrupando as imagens, dissolvendo as substâncias, ajuda a imaginação na sua tarefa de desobjectivação e de assimilação. Ela traz consigo também uma nova forma de sintaxe: uma ligação contínua das imagens, um movimento suave que [permitindo “demorar-se nelas”] solta a rêverie ligada aos objectos”, tornando-se deste modo uma “espécie de mediador plástico entre a vida e a morte”, escreve (L’Eau et les rêves- Essai sur l’imagination de la matière, 1942).
Assim como Yusuke, na primeira sequência, se “manifesta” (dá a ver: presentifica) no próprio plano, agora ele desaparece saindo dele, bastando para isso mudar de enquadramento. É nesse espaço entre dois planos (o “black spot” da cascata?) que se dá o nó e articulam (engendram) a matéria e o cinema. Não tanto a “montagem” mas a justaposição (associação) concreto-prosaica dos planos (Ozu), convergindo, como num haiku, nesta poética livre das imagens. Se se quiser ainda, mais Godard do que Eisenstein: não um cinema do “choque” (terror) mas da “sugestão” (do unheimliche: “inquietante estranheza”, tal como Freud a pensou).
5. Memoria (Memória, 2021) de Apichatpong Weerasethakul é um filme que trabalha exaustivamente sobre as relações entre som (ordem do aéreo: invisível) e imagem (concreto: visível) – na verdade, podemos mesmo entendê-lo como uma poética, uma descrição (fenomenologia?) dos mecanismos acústicos-perceptivos, inconscientes, da “poesia”.
Como é dito no filme (pelo segundo Hernán), o som constitui uma espécie de disco rígido (hiper-memória) em que se vêm inscrever (como “engramas”), ressoar e repercutir, a “memória” (a banda áudio-visual, vídeo (pense-se em A Invenção de Morel de Bioy Casares) de ditos, actos e sensações de que se constrói (faz) o mundo.
É sobre esses sons que vêm – como tentativas de significação e figuração – imagens, palavras, ficções [“mitos” (vd. da lenda do “Povo Invisível” da Amazónia)], interacções humanas (o esboço de relações entre personagens) ou, num plano mais abstracto, símbolos (figuras) e alegorias [caso da instalação de elementos vivos da natureza no espaço arquitéctonico (Pierre Huyghe?) ou do círculo deixado pelo “disco-voador”].
A abertura do filme é, deste ponto de vista, bem clara quanto ao parti pris cosmogónico e poético de que no princípio é o som (que, ele próprio, antes de se articular como “língua”, era já indissociavelmente verbo): assim, vemos de início um vulto na sombra a acordar com um ruído e a levantar-se; depois , o seu reflexo (de pé, em movimento) num espelho e, por fim, essa figura [Jessica Holland (Tilda Swinton)] a passar por uma porta-janela no luscofusco do dia. Tudo sombras, reflexos, figuras segundas.
O som fantasma (segundo o realizador fruto de um síndroma da cabeça que explode) que assola Jessica [ela descreve-o como o de uma grande bola de cimento a cair num buraco de metal rodeado pelo oceano – e portanto um som matricial, originário, oceânico, no sentido das teses de Thalassa de Sándor Ferenczi [1924)] é, por um lado, o de um “nascimento” [um som genésico tanto no sentido de Lucrécio (“todos nascemos de uma semente caída do céu” e transmitida talvez por um “disco-voador”) como no do segundo Hernán que recorda a sua origem alienígena e consequente implantação no tecido material e orgânico, a sua “carne” da terra] mas também, por outro lado, o da “morte” – constantemente evocada por Jessica Holland que transporta consigo o nome de um personagem de I Walked with a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur e parece existir num “limbo” entre mundos, mal se conectando com os outros seres (personagens) terrenos (todo o passo entre Jessica e o segundo Hernán evoca as relações entre “humanos” e “fantasmas” em Rumo à Outra Margem de Kiyoshi Kurosawa).
Trata-se de um “baixo fundamental” (“uma ideia de som, um som interior, como quando se fala consigo mesmo”) de que os personagens constituem as antenas, tal como, aliás, o cinema: “ela [Jessica] é como um microfone, recolhe sons, cores. É como uma onda que procura sincronizar-se com um outro mundo. Ela é o cinema”, sintetiza o realizador (Cahiers du Cinéma n.º 781, 2021 [14]).
Som (o “fora de campo” absoluto) e imagem [sempre mais “campo” – até pela exploração da “duração” do plano – do que “contra-campo” (relacional)] na verdade nunca se “resolvem” e antes se “sobrepõem”, intersectam ou imiscuem (como a humidade na madeira, dando-lhe densidade, tessitura) numa estrutura geológica (tectónica) folhada e vibrante (ressonante) (vd. o tremor de terra que deixa a descoberto cadáveres de um outro estado do mundo e da vida, matéria). Esse efeito de sensibilização que torna as coisas coisas – lhes comunica uma realidade fenoménica e fenomenológica – é o que pode produzir a música (sempre presente, sob diversas formas, da sintetização de sons à jam session de fusão) ou, claro, o cinema.
Se a “natureza” (floresta da Tailândia ou do Laos) dos filmes anteriores do realizador, saturando a imagem (plástica e sensorialmente) a afirmava como “superfície” [uma densa tapeçaria de sons, sensações e imagens (elementos figurativos)], aqui, sobretudo na parte final do filme [o equivalente, talvez, dos sete minutos finais – esse parti-pris des choses en et par elles-mêmes (Ponge) – de L’ Eclisse (O Eclipse, 1962) de M. Antonioni], presentificando-se como o depósito (a vida?) deixado pelo “disco-voador” que se eleva no espaço (vencendo as leis da gravidade), ela é maciça e vertical, impondo-se como “presença” (phusys).
Uma totalidade de que o “disco-voador” (elemento intercessor e original, também ele uma antena sensível entre níveis de real/ mundos) talvez constitua a figura do cinema que, como observa Marcos Uzal na crítica (“Trou story”) do filme nos Cahiers du Cinéma, “parece situar-se na intersecção de todos os mundos – o preciso ponto em que o tempo perfura o espaço” (idem [10]). Nesse ponto em que se encontra Jessica (Tilda Swinton, exemplar na sua função), a sua “figura”.

A palavra agora ao realizador: “Nós entramos na cabeça de Jessica e vemos as montanhas com as suas dobras e fissuras imitando as pregas do cérebro e as curvas das ondas sonoras. Os passos dela enchem e fazem tremer o terreno interior produzindo deslizamentos e tremores de terra” (e da imagem, acrescentamos nós) (ibid.).
6. Here (Aqui, 2024) de Robert Zemeckis em certa medida retoma e refaz, no quadro do cinema narrativo comercial, a experiência de Wavelength (1967) de Michael Snow em que também se fixava um “quadro”, espaço, fazendo depois tudo evoluir dentro da imagem, através do movimento (entrada e saída) das figuras e pela iluminação e o som, e isto à medida que um zoom percorria o espaço da sala até se fixar num ponto na parede.
Aqui, desde início fixa-se um “quadro” (enquadramento) e com ele um ponto de vista (perspectiva) que delimita um espaço: o que é fixado pela câmera mas também tudo o que fica à volta dele e é ou integrado pelo drama (assim visibilizando os “contra-campos” em diversos tempos) ou se encontra fora dele (por detrás da câmera) – ou mesmo aquele, mais amplo, em que a “casa” (o dispositivo do filme) é dado (ou seja, no primeiro caso, o “fora de campo” restrito e no segundo o “alargado”).


Nisso, o filme segue Lacan para quem “só há real quando há representação” e fixado nesse “quadro” o ponto de vista que põe as coisas em cena e em acção. Para ele, com efeito, “vemos” menos do que “somos vistos”, já que “o que me determina no visível é o olhar que se encontra de fóra”: é por ele (a escolha do “ponto de vista”: do enquadramento que “faz quadro”) que “entro na luz” e que “ a luz se encarna e (me) foto-grafa”(me fixa, escreve, como imagem). Esse “olhar”, por um lado, põe- me em cena a mim e (n)o mundo (é a sua função de ecrã que visibiliza) mas também me fractura (divide), obrigando-me a acomodar-me a essa schize, entre mim e a representação: “estado de espelho” enquanto função (e ficção) ortopédica de construção do sujeito, segundo Lacan (Les Quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse, cap. “Qu’est-ce qu’un tableau?”, Seuil 1973 [98/ 99]).
A tese é maximalista já que é nesse plano, por ele, que se cria o próprio mundo: no princípio, por assim dizer, antes da luz e da palavra (linguagem) é (era) o quadro (vd. sequências iniciais sobre a formação da Terra). Se em 2001- A Space Odyssey (2001 – Odisseia no espaço, 1968) de Stanley Kubrick esse é o lugar de uma ficção antropológica ainda centrada no homem, aqui ele fixa um espaço (topus) estruturante de apropriação (agrimensoramento) do espaço, em torno desse ponto de vista, no qual se edifica a “casa” em que se situa tanto a “janela” (que dá para fóra e para dentro) como o habitat, “espaço comum” (lugar de um habitus) por onde passam e vivem várias gerações ao longo do tempo.
Com efeito, o cinema, como a pintura, não é apenas uma “janela” que dá para o exterior e onde se pode vir depor uma “história” (Alberti e, em certa medida, simplificando muito, Bazin): como dizem os “formalistas russos” (Poetika Kino, 1927), mais do que a noção de “plano” é a de kadr (enquadramento) – isto é, a especificidade de angulação do ponto de vista – que define o cinema. Como escreve Yuri Tynianov (“Os fundamentos do cinema”), distinguindo-se da noção mais indiferenciada de “plano”, o “enquadramento” (um fragmento de filme tirado do mesmo ângulo e com a mesma iluminação: “a fracção mínima do fluxo em movimento”) constituiria a verdadeira “célula” (“átomo”) da linguagem cinematográfica; ele assemelhar-se-ia, para Tynianov, ao “pé” (medida prosódica) do verso, fazendo assim das imagens “signos diferenciais” [in François Albéra (ed.), Los formalistas rusos y el cine, Paidós, 1998 (90)]. Como o autor precisa, “a <angulação> [do kadr] transfigura estilisticamente o mundo visível”, dá-se por ela uma ‘transformação’ do objecto que passa do plano referencial para o da “abstracção” (das imagens como signos de um discurso) (idem [84]). É a escolha desse “ponto de vista”, ângulo de tomada de vistas, que, no filme de Zemeckis, cria a imagem e, por (com) ela, visibiliza mundos.
E aqui Heidegger vem sobre Lacan com a sua derivação etimológica que relaciona a noção de Ser com a de “instalação” no espaço (habitação) a partir dos termos Gestell (suporte, andaime, construção) e Stellen (estabelecer, instalar). Com efeito, como escreve no início de “La fin de la philosophie et le tournant”, “a essência do Gestell é a de juntar nele todas as possibilidades da instalação (Stellen)” [Questions IV, Gallimard, 1976 [144]). Por um lado, para ele, a “instalação” – operação de “espaçar” (abrir “espaço” [93]), criar um “lugar” (“espaçar traz a localidade que prepara sempre um lugar [para estar]” [102]) – constitui uma “apropriação” (se “o homem não começa por se instalar em primeiro lugar a si próprio no seu espaço essencial e não assenta aí, ele não será capaz de fazer nada de essencial no interior do destino tal como ele se lhe apresenta”[145]) mas também, e aqui retomamos Lacan, ela produz uma “clareira”, abre à luz (presença) por onde entra, se dá a ver (sentir) o aberto (não só o “contra-campo” mas o fora de todos os “campos”). “A luz pode com efeito visitar a Lichtung, a clareira, naquilo que ela tem de abertura e deixar jogar em si o claro com o obscuro”, observa [127].
No filme de Zemeckis cria-se uma situação espacial pluridimensional, de acordo com o seu dispositivo de cinema semelhante a um cubo de Rubik poliédrico e transparente. Um espaço duplamente presente e ausente, coexistente com outros virtuais (o split screen funciona aqui como uma espécie de mosaico-palimpsesto em que as diferentes camadas se revelam umas às outras), e que, por um lado, se abre (desdobra e refaz) por janelas nas imagens, de acordo com o modelo narrativo da banda-desenhada [o filme, aliás, adapta a novela gráfica homónima de Richard McGuire (2014)], mas que, por outro lado, parece aspirar a uma imagem virtual (poliédrica, caleidoscópica ou vitral) de que é emblema a figura do pássaro que por vezes se vem colar (melhor, sobrepor) à superfície (vidro) da imagem (com um efeito não disfarçado, barroco ou rocócó, de trompe l’oeil).
Mas não só. O filme abre ainda para o fora de campo, também ele complexo e múltiplo. Aliás, essa é uma das suas características mais singulares e perturbantes: o facto de não haver verdadeiramente “contra-campo” – quando ele surge, é imediatamente absorvido, tal é o carácter pleno (e pregnante a todas as aparições que nele surgem) do espaço (esférico, total) assim construído – havendo antes no seu lugar uma constante sugestão de “presença” e “abertura” (porosidade) ao “fora de campo” (o real, simplificando).
Desse ponto de vista é significativa a cena em que, numa situação de visionamento de “filmes caseiros”, se coloca uma tela na sala que imediatamente divide o “campo” e cria nele uma parte por detrás (um “contra-campo” no “campo”): é aí que são projectados os filmes, também eles vistos (como na Fantasmagoria ou no Diorama) numa situação de retroprojecção, por detrás do ecrã [André Bazin, num dos seus primeiros textos, “Le Mythe du cinéma total” (1946), já se referia à apetência dos primeiros criadores por um “cinema total”, mais “realista”, o que, segundo ele, os acabava por reconduzir às “origens” do próprio cinema].
Mas Zemeckis recorre a outros meios para nos tornar conscientes da existência desse “fora de campo”, e fá-lo, por exemplo, recorrendo a um processo muito frequente no “primeiro cinema” [e em particular em Griffith (vd. Musketeers from Pig Alley, 1912)], quando os actores saem abruptamente pela frente do plano (Margaret, aqui, várias vezes), rasgando assim a ficção (convenção) de uma “4ª parede” (invisível, transparente) que fechasse o espaço e fizesse dele um lugar de “pura representação”.
Por fim, no final, com o regresso de Richard (Tom Hanks) e Margaret (Robin Wright), envelhecidos, à “sala comum” [lugar não só de “acção” (drama) mas sobretudo da instalação desse situação original de representação:cinema], quando, sentados no meio da sala, eles olham para o fundo (o “contra-campo” inexistente e logo o “fora de campo”), a câmera, sem corte, dá a volta a eles, sai pela janela, eleva-se e apanha a partir de cima a totalidade do espaço que envolve a casa (e, claro, o próprio dispositivo de cinema).
Saída para fora, o mundo, e não para dentro, como sucede em Wavelength de Michael Snow, onde havia focalização num ponto da parede ao fundo (uma fotografia), o que estava de acordo com uma concepção mais “concentracionária” do espaço (e do cinema) enquanto lugar fechado (onde só poderia ocorrer a “morte” – a de Hollis Frampton, no final do filme). Nisso, Aqui encontra-se mais próximo de La Région Centrale (1971), também de Snow e da sua tentativa de, através de uma câmera móvel no seu eixo (movendo-se “in every direction and on every plane of a sphere”), procurar sugerir a totalidade do espaço envolvente, visando produzir, talvez, algo da ordem da “imagem imensa” de Bachelard (uma imagem-percepção global, esférica, em que a “apropriação do mundo pelo olhar” e o “gozo” que daí se tira, se complementam [Éric Thouvenel, Gaston Bachelard et le problème cinema, Mimésis, 2020 (347/8)]).
Mas essa não é a única saída do filme de Zemeckis para um espaço “outro” de formalização e criação de formas e significações (já não me parece suficiente o termo “representação”).
Como se sabe, Aqui – porque usa os mesmos actores, Tom Hanks e Robin Wright, num filme que tem também a ver com a memória e a passagem do tempo – é dado numa ”situação de espelho” não só em relação a Forrest Gump (1994) como à própria obra do autor, devido à persistência, nela, de uma experimentação e reflexão constantes sobre o uso de “meios digitais” (“cinematic compositing”, efeitos de “morphing”, animação) no quadro de uma concepção híbrida e aberta à heterogeneidade dos processos e meios do cinema.
Em Forrest Gump (1994), Zemeckis introduz personagens históricos do passado no presente, ou vice-versa (por exemplo, quando Gump encontra John Kennedy no tempo deste), recorrendo para o efeito ao processo de “incrustação” (digital compositing), baralhando assim os tempos e criando um efeito de indeterminação que, de facto, impõe como termo de referência o presente (actual) dessa imagem (em processo) transformada.
Por outro lado, se em Death Becomes Her (A morte Fica-vos Tão Bem, 1992) o uso conjugado de imagens criadas por computador e de animação de modelos (“animatronics”) – nomeadamente para dar as transformações dos corpos das duas actrizes (Merryl Streep e Goldie Hawn) e produzir buracos neles (dando assim a ver o seu “sem fundo”, ausência de suporte de referencialidade no real, assim como a sua nova “realidade” de seres de síntese que incorporam em si esses vazios) -, num filme como Who Framed Roger Rabbit? (Quem Tramou Roger Rabbit?, 1988), combinando actores (reais) com um fundo de imagens de animação, Zemeckis introduzia-nos já numa concepção de imagem mutante, metamórfica, em sintonia com a propriedade da plasmiticidade – termo, forjado por Eisenstein (em 1941), para dar conta do trabalho de Walt Disney, em que se combinavam as noções de “plástico” e de “plasma” (as Silly Symphonies, elaboradas com Ub Iwerks, são de 1929-1939).
Nisso, a concepção de imagem (cinema) de Zemeckis aproxima-se da de imagem-potencial do digital (virtual) (um caso numa panóplia mosaico-palimpsesto de combinações possíveis) defendida por Alain Renaud-Alain num importante artigo (“La nouvelle architecture de l’image”) publicado no n.º 562 dos Cahiers du Cinéma (Outubro de 2003).
Referindo-se ao “espaço modular” da imagem numérica – que lhe permite adaptar-se/ modelar o “jogo morfológico do pensamento” -, para Renaud-Alain a imagem (nomeadamente a de cinema) tornar-se-ia “a paragem de um fluxo num caso de figura possível, “ dado “num fluxo electrónico integralmente controlável e manuseável” em todos os seus parâmetros. Assim, para ele, “o ecrã deixa de ser uma superfície para se tornar um interface” [70-73] (sublinhamos).
Concluindo, Aqui é um filme deliberadamente híbrido e aberto ao heterogéneo, um interface de que podemos ver o constante agenciamento dos seus elementos: prova de que isso se trata de um acto formal deliberado por parte do autor é a figura acrescentada do pequeno pássaro [ou Robin Wright, cujo corpo é digitalizado e recriado virtualmente em The Congress (O Congresso, 2013) de Ari Folman] que surge aqui e ali, mantendo sempre a sua diferença compósita (e logo estranheza), na imagem.