La Ciénaga estreou no Festival de Berlim, de onde saiu com o prémio de melhor primeira obra. Foi o princípio de uma larga circulação do filme por festivais e salas de vários países, que culminou com a notícia de que o filme seguinte da cineasta, La niña santa (A Rapariga Santa, 2004), contaria com a produção da El Deseo, dos irmãos Almodóvar. A primeira sequência da segunda longa de Lucrecia Martel abre com o rosto emocionado de uma jovem, bela e cândida, que canta a entrega a Deus, perante a assistência de um bando de adolescentes. Num plano que junta a boca da catequista e o rosto de duas adolescentes (Amalia e Josefina), desponta um apelo, uma convocatória para aquelas raparigas: “O importante é estar atenta ao chamamento de Deus. Ele chama-nos e isso é a vocação, chama-nos para salvar e ser salvo. Este é o único sentido da nossa existência”. Martel assumiu que tanto La Ciénaga como La niña santa foram extrapolados das suas experiências na juventude, onde tivera uma existência bastante religiosa e estabeleceu uma relação especial com Deus. Ainda nesta sequência, o filme dá o mote para a ligação entre catolicismo e sexualidade, ao aproximar-nos das duas adolescentes, quando Josefina descreve a Amalia os beijos trocados pela mentora com um homem mais velho, que terão produzido na jovem mulher uns tremores, que mais pareciam o começo de um ataque epilético.

Pouco depois, encontraremos na rua Jano, um médico de meia idade que está a participar num congresso, no hotel que é gerido por Helena, a mãe de Amalia. Jano junta-se a um aglomerado de pessoas que assiste a um concerto de teremim, um instrumento electrónico, composto por duas antenas de metal, à volta das quais a mão do músico se movimenta sem tocar no instrumento, enquanto maneja, também, o volume emitido. Jano aproxima-se e encosta-se a Amalia, roça-se ao de leve nela, com a sua braguilha. Tal como o teremim, é quase um aliciamento à distância, uma abordagem peculiar em que o sexo oculto de Jano encosta subtilmente em Amalia, por detrás, como se tal como no instrumento eles pudessem concretizar o sexo como um processo a uma distância estabelecida e justa. Ela sente o contacto ténue, reage com alguma estranheza àquela abordagem peculiar, enquanto Martel faz incidir tons de uma luz branca e pura sobre o rosto de Amalia. Pouco depois, Jano afasta-se, enquanto Amália sorri para Josefina.



A trama de La niña santa, integralmente dirimida nos vários lugares do hotel, prosseguirá o jogo entre adultos e adolescentes do filme anterior, em dois eixos contíguos: a tentativa de Amalia redimir Jano, enquanto Helena, a mãe da adolescente, procura seduzir o médico. Helena é ainda uma bela mulher, ainda que muitas vezes à beira de um ataque de nervos, que passa o filme a evitar receber a notícia de que a mulher do ex-marido está grávida de gémeos, numa evidente dificuldade em lidar com a vizinhança do seu período infértil. A piscina, numa representação em oposição à do filme anterior, utiliza as suas águas límpidas, de características termais, para apontar a algo para lá da limpeza, uma purificação, possibilidade metafórica, então, de remoção de comportamentos amorais: asseio do espírito, enquanto se apartam as impurezas do corpo. Enquanto observa às escondidas Jano na piscina, Amalia reza em voz baixa à Virgem Maria. Será a primeira tentativa de redimir o médico tresmalhado e o seu vício. Pouco depois, no elevador, a adolescente observa a nuca de Jano e toca-lhe na mão por um instante; ele repele o contacto, solta-se. Já imbuída da sua missão, Amalia espalhará o perfume de Jano no colarinho da sua camisola, sendo que em várias sequências a veremos na procura dos vestígios desse odor.

A piscina é, então, o lugar central, por onde todos os personagens passam pois, para lá dos adolescentes, também os médicos da conferência se instalam nos bordos do espelho de água para observar Helena, hábil nadadora e mergulhadora. Em todas estas sequências, Jano é o mais púdico dos médicos, mantendo uma conduta regrada, que se soltara na abordagem a Amalia. Tal como em La Ciénaga, as camas surgem no contra-campo da piscina, e voltam os leitos partilhados, pelas adolescentes, pela mãe e pela filha, a que se junta a desoras o tio: a cama permanece como a arena propícia a conflitos e confissões entre os personagens. Também os vários médicos partilham o quarto entre eles, trocam de roupa enquanto combinam as palestras. Mais tarde, um dos colegas de Jano terá de abandonar o hotel devido ao rebuliço nos quartos, temperado pela presença das jovens estagiárias dos médicos.

Se em La Ciénaga havia visões, projectadas pela televisão, de uma Virgem dependurada num depósito de água, que pautavam as pequenas narrativas do quotidiano da casa de Verão, aqui as aulas de coro e catequese estimulam uma obsessão pela redenção do pecado, pela procura de sinais de Deus, que culmina com a história de um milagre, de uma criança salva num acidente de automóvel, protegida e enroscada no corpo morto da mãe, na valeta da estrada. Em visita ao lugar, os adolescentes simulam o evento, num tom sarcástico, que coloca a fé num tom buñueliano, no exercício do direito à sátira e à obscenidade.
O trabalho de som prossegue neste segundo filme, na tradução de Martel para os persistentes aglomerados de pessoas, nos corredores e nos quartos, mas também na cozinha e na conferência dos médicos, numa polifonia em que as crianças, e as suas brincadeiras, também participam. O som intensifica a riqueza do enquadramento, para lá do primeiro plano, com uma sucessão de quadros móveis, dispostos na profundidade do plano e sustentados nas diversas actividades e labores do hotel. A sofisticação do som também dá a ver o fora de campo, numa antecipação dos avanços da narrativa, que se exemplifica com uma queda anunciada por um estrondo e o latido feroz de um cão, de um homem que terá tombado vários pisos até entrar na sala da aula de coro completamente nu e atordoado, mas a salvo, como um milagre.


A paixão da mártir Amalia prossegue numa segunda sequência do concerto do teremim na rua. Quando pressente a aproximação do médico, é Amalia quem se posiciona na frente de Jano, a possibilitar a agressão à sua intimidade, disposta a sacrificar-se por aquele homem. Desta vez, Jano roça-se durante mais tempo, o encosto é mais intenso e duradouro. Amalia volta a tentar juntar a mão à dele, mas o médico espanta-se e sai a correr. Pouco depois, numa curtíssima sequência, Amalia observa Jano a dormir: os dois personagens são enquadrados à vez, mas com partes dos seus rostos e corpos empurrados para fora do quadro, como se o filme registasse algo de insondável naquela relação e nas motivações dos personagens. Depois de Jano proibir Amalia de o seguir, e de uma crise de choro dela apaziguada com a masturbação, suceder-se-á um surto de febre da adolescente, como uma via-sacra peculiar. Mas Amália não cessa os seus esforços de redimir o tresmalhado médico, que mostra a intenção de confessar o seu delito à mãe da rapariga. Martel oculta ao espectador o que a rapariga diz ao ouvido de Jano, para depois observarmos a rapariga a abraçar o homem, como se o confortasse, como se amasse o pecador que há nele. A sequência termina com Amalia a dizer-lhe que ele é um homem bom, para depois o tentar beijar, numa acção repudiada pelo médico.

A resolução de La niña santa far-se-á durante a encenação de um acto médico, no fecho do congresso dos clínicos no hotel. Como sempre, Lucrecia Martel prefere insinuar o destino dos personagens, como encobrira muitas vezes as suas acções e os seus corpos, ao fazer convergir para esta coda do filme o conjunto de encenações que por ali circulam, como sintomas: das dificuldades dos adultos lidarem com as suas frustrações, enquanto procuram gerir as tensões e manter o diálogo em aberto com as gerações mais jovens, mas também na relação dos adolescentes com a sua fé e os seus corpos, atribulados pela urgência do sexo.
