O cinema jorra na cena de abertura da filmografia de Lucrecia Martel. Uma dezena de adultos de meia-idade, homens e mulheres, bebem doses generosas de álcool, em copos de vinho saturados com cubos de gelo, junto a uma piscina ladeada por montanhas. Mecha, a anfitriã, recolhe os copos dos convidados enquanto cambaleia devido ao efeito do álcool, até que acaba por tombar, perante a passividade dos confrades, que permanecem sentados em frente à piscina lodosa. Gregório, o marido, também a cambalear, diz-lhe: “levanta-te que vai chover”. A mulher está ferida, golpeada em várias partes do corpo, mas principalmente no peito, por lascas de vidro dos copos. De dentro da habitação, Momi e Verónica, duas adolescentes, correm a acudir a mãe, auxiliadas pela criada, Isabel, uma jovem adulta, com traços ameríndios. Entretanto, desaba um aguaceiro, e só então os adultos são sacudidos da sua letargia e se levantam. Enquanto Gregório seca calmamente o cabelo no interior da casa, as raparigas insistem que a mãe tem de ser acompanhada ao hospital. Mecha, apesar de estar a perder sangue, pede um vestido específico. É, por fim, levada ao hospital, no automóvel conduzido por uma das adolescentes.

Lucrecia Martel estabeleceu os seus primeiros filmes na província de Salta, no nordeste da Argentina, região de onde é originária. O primeiro filme, La Ciénaga (2001), é também o nome de uma cidade, que o título da distribuição portuguesa traduziu literalmente para O Pântano. A sequência de abertura, além de nos apresentar a família, também nos descreve um lugar, uma casa de Verão, em Mandrágora, escapatória da cidade. As montanhas que flanqueiam a casa de férias são pantanosas como a piscina, e os animais afundam-se, de modo similar à família protagonista. Na cidade somos apresentados a outra família, liderada por Tali (prima de Mecha), que vive num pequeno apartamento, espaço acanhado, insuficiente para acomodar os movimentos e as tropelias das crianças, que invejam a piscina junto às montanhas, um tributo àquele objecto que reiteradamente será olhado por vários personagens como espaço privilegiado, um lugar venerado. Aquela piscina, de água estagnada e turva, pautada pela presença de folhas secas à tona, é o centro de todas as pequenas narrativas do filme, dividida entre os turnos dos adultos e as brincadeiras das crianças. Apesar de desejado, aquele espelho de água serve outras representações, como a indicada pela criada Isabel, que diz a uma das adolescentes que aquele lugar está podre, cheio de doenças, como se qualificasse um contexto social: a piscina como imagem de estagnação nos direitos dos indígenas e na decadência daquelas famílias e dos seus hábitos peculiares de socialização.


Como contra-campo da piscina, surgem as camas, que misturam o que a piscina aparta. Antes de partilhar a cama com Isabel, Momi agradece a Deus por ter a indígena por perto, na revelação de uma paixão adolescente, que é também um fascínio pelas origens da jovem mulher. Ainda na cama, agora com a irmã Veronica, Momi revela o receio de Isabel ser despedida pela mãe, que acusara a criada de lhe subtrair as toalhas. Na expressão de uma subalternização das populações de origens ameríndias, das tensões que daí decorrem, a cineasta conferiu-lhes visibilidade, apoiada no auxílio das suas adolescentes, ao soltar os indígenas da mera condição de criados e dessa invisibilidade nas casas dos patrões, para os colocar em bares e noutras zonas urbanas, onde se cruzam com as gerações mais jovens da restante população, numa interacção não isenta de tensões e embates. O lugar simbólico deste cruzamento, o mais bem sucedido, é a barragem, onde se partilha o fluxo dos corpos ao ritmo da água que se solta da represa.


Se a cama facilita a miscigenação das adolescentes e das criadas, uma curta deslocação a Buenos Aires, observa a partilha do leito por José, o filho mais velho de Mecha e Gregório, que agora divide o domicílio com uma antiga amante do pai. Nestas situações, numa ética que se repetirá durante o filme, Martel prefere insinuar o sexo, assim como encobrir os corpos, ao invés de exibir declaradamente uma coisa e outra. Dias depois, a mãe partilhará a infelicidade de um peito estragado pela queda junto à piscina, na cama com o filho José que, entretanto, chegara a Mandrágora para saber da mãe e escapar do controlo da companheira. Nesse mesmo dia, José há-de cobiçar a irmã adolescente, deitado na cama dela, enquanto a apelida de “Momi suja” e o plano se detém no corpo dela, parcialmente devolvido pelo espelho do quarto. Também há banheiras e duches que se partilham, e a chuva que não pára de cair.

Depois da presença na primeira sequência, Gregório, o personagem do pai, chega-nos em várias cenas apenas pelos comentários de outros adultos, que o descrevem como adúltero, ou pela troça das crianças, que comentam que o decrépito macho pinta o cabelo. Quando reaparece, vemos Gregório a percorrer a casa, apartado, uma caricatura do chefe de família, ignorado por uns e desrespeitado pelos restantes. Finalmente, Mecha há-de expulsá-lo da cama de casal e empurrá-lo para que durma no quarto dos fundos, com a premissa adicional de que deve deixar de pintar o cabelo, pois a tinta estraga os lençóis. Em família, Mecha comenta que a piscina está imunda, porque nada funciona, nem a bomba de água, nem os filtros. Apesar de emitida com um ponto de vista díspar, a matriarca faz eco da criada Isabel, ao apontar o bloqueio e a disfuncionalidade daquele contexto social e familiar.

Em algo que há-de pontuar o seu filme seguinte, La Niña Santa (A Rapariga Santa, 2004), a possibilidade do sagrado e do milagre é introduzido, de um modo sarcástico, através de uma série de reportagens televisivas sobre a aparição de uma Virgem, iluminada no cimo de um reservatório de água. Estas reportagens, sobre a aparição e os seus testemunhos, ligam os vários lugares do filme, quase sempre compartimentos com as televisões apontadas às camas, que os personagens partilham. Há um terceiro vértice, menos preponderante, mas igualmente significativo e que completa a geometria de La Ciénaga, com rapazes que brincam às caçadas, com cães e caçadeiras na montanha contígua à casa de férias, também no despontar da sexualidade, que se explicita quando uma das raparigas adolescentes pisa o território da caçada e é observada por um dos rapazes, com um ponto de vista semelhante ao que assistíramos no bovino capturado pelos rapazes, com o auxílio do terreno pantanoso.

Lucrecia Martel também nos convida a observar o som, que está dentro e fora dos quadros. Se o som adensa os enquadramentos, através dos depoimentos das reportagens televisivas ou da música diegética, o quadro estica-se nos sons da montanha, no coaxar dos sapos, nos zumbidos de insectos ou rumores que identificamos como nocturnos. A exiguidade dos apartamentos é acentuada pelos barulhos do trânsito das crianças e dos seus jogos; a dificuldade de comunicação é intensificada pelo toque de telefones que ninguém atende ou pelo latido insistente dos cães. Cedo nos apercebemos que Martel estava interessada em boicotar uma ideia declarada de narrativa, permitindo-se o esboçar de um mosaico, que explicitasse um retrato daquela comunidade. Mecha e a prima Tali falam reiteradamente de uma viagem à Bolívia no fim de semana, para comprarem o material escolar das crianças (é mais barato, dizem elas aos familiares), como uma escapatória, ainda que fugaz, daquele quotidiano. Antes de as personagens se aperceberem da impossibilidade dessa viagem, já o som de Martel tinha insinuado esse desenlace, em duas curtas sequências, em diálogos entre Tali e o marido. Na primeira, a conversa num gabinete fora perturbada pelas vizinhanças de um armazém industrial, de ruídos e faíscas de luz branca que se elevavam acima da conversa entre os cônjuges. Dias depois, o marido de Tali esquivara-se, não respondera a Tali, que lhe perguntara pelos documentos necessários para o carro atravessar a fronteira; enquanto o homem continuava mudo, a lavar as pernas do filho na casa de banho, um estoiro chegava do compartimento contíguo: algo rebentara, na refutação possível daquela mulher.