Amandier quer dizer amêndoa e Les Amandiers (Les Amandiers – Jovens Para Sempre, 2022), portanto, as amendoeiras, como se estivessem em flor, já exposta mas ainda promessa, antes do fruto, mas já sentido. É uma bela ideia que vai para além do lugar onde o filme – cujo título internacional, Jovens para Sempre, facilita, porque simplifica a relação entre juventude e tempo: Jovens para sempre – se passa, o Théâtre Nanterre-Amandiers, na fronteira de Paris, cintura industrial transformada, como outras zonas, em projeto de descentralização teatral nas décadas de 1960 e 1970 – Montreuil, Aubervilliers, Gennevilliers, Sartrouville, Saint-Denis –, e adotando para o seu nome, uma antiga toponímia, a costa das amendoeiras.

Mas como as amendoeiras em flor, este é um filme tocado pela graça da perda de juventude, filmado como se o surgimento das primeiras flores fosse, ao mesmo tempo, o prenúncio de um fim, de uma intensa e fatal perda. Antes da descoberta, a encenação exacerbada dos sentimentos primários, portanto. Antes de se saber, as hipóteses como réplica. Antes do fim, a presciência e a hipótese de manipulação da surpresa. Antes do filme, e sua narrativa, vista por quem não tiver o contexto como um exercício onde o lugar pode ser apenas uma hipótese, mas é central e determinante para ler, e escolher, como ver o que se seguirá.
Sim, houve uma escola num teatro, dirigido por um encenador que era o centro de tudo e, a cada ano, 40 jovens atores tornar-se-iam doze, talvez escolhidos, talvez realmente tornados atores, quem sabe numa peça e não já no fundo do cenário, talvez no palco do Festival de Avignon, talvez num filme. Talvez tudo. Talvez nada. E sim, uma dessas jovens atrizes é a realizadora do filme, Valeria Bruni-Tedeschi que, depois de Actrices (Actrizes, 2007) – onde Um mês no campo, de Tourgueniev era motor de crise existencial –, e Les Trois Soeurs (2015), telefilme que adaptava a peça de Tchekhov – se lança às memórias do seu período na escola que Pierre Romans e Patrice Chéreau dirigiram.
O filme mostra, e demonstra, a erosão explícita da utopia. Ou, se quiséssemos ser factuais, mo(n)stra como o teatro é uma fachada para a biografia, e o fácil que é deixar de ver.
Chéreau chegou a Nanterre-Amandiers em 1982 e por ali andou até 1990. É o ano de L’homme blésse (1983), coescrito por Hervé Guibert, retrato amargo e vampírico, primeiro filme e logo melhor argumento nos Césars; são os anos do encontro fusional com Bernard-Marie Koltés (Combate de negros e cães, 1983; Cais-Oeste, 1986; Solidão nos campos de algodão, 1987; Regresso ao deserto, 1987), de um Hamlet no Festival de Avignon (1988) onde, de um cavalo em palco se via o Napoleão que andou a imaginar durante anos; de outros clássicos, como La Fausse suivante (Marivaux, 1985 – cujos diálogos ouvidos nas audições dos jovens atores no filme) e Platonov (Tchekhov, 1987), onde Valeria Bruni-Tedeschi participou e a partir do qual este Les Amandiers se inspira.
Este contexto é de relevo, porque o que o filme mostra, e demonstra, é a erosão explícita da utopia. Ou, se quiséssemos ser factuais, mo(n)stra como o teatro é uma fachada para a biografia, e o fácil que é deixar de ver.
Diz Pierre Romans (Mischa Lescot): “Para os atores o importante é revelar-se, e deixar-se ir.” E eles bebem essas palavras, embriagados pelas promessas. Disse Caroline de Vivaise, figurinista de muitos dos filmes, peças de teatro e óperas de Chéreau, num livro sobre o seu trabalho, imodestamente chamado J´y arriverai um jour (Actes Sud, 2009), ou seja, um dia conseguirei. “’O que é que te pede, Chéreau?’ Quantas vezes é que me fizeram essa pergunta? ‘O que é que ele te pede, Chéreau?’ Mas Patrice não pede nada! Ou, se pede, não me dou conta. Patrice não pede, suscita. Põe cada um em ebulição e dá-te vontade de te ultrapassares, de teres ideias, de tentar ir até ao limite”.
Na audição, perguntam aos jovens candidatos, entre elas uma das figuras que resumem o percurso de Valeria Bruni-Tedeschi, Stella (Nadia Tereszkiewicz, César de Revelação Feminina, 2023) – a outra será o antagonista Sofiane Bennacer (Étienne) – “Acha que uma atriz deve ser exibicionista para ser atriz?”. E mais: porque querem, afinal, ser atores? As respostas são o que se espera ouvir de quem quer ser ouvido: “Sentia que perdia a minha juventude. Achei que a minha vida não ia significar nada.”; “Porque quero falar com a voz dos outros. Por vezes tenho a sensação de estar à beira do abismo, e que vou cair lá dentro. E as palavras dos outros, quando são boas, são como…, são como…” E a palavra vem desbloqueada de quem pergunta: “Muros?” Sim, as palavras serão como “muros”. Para ela, por essa altura, houve cinema com nome de personagens – Sonia em Hotel de France (Chéreau, 1987), e houve Avignon. Um duplo Kleist, Pentesileia e Catherine de Heibron (ambas encenações de Pierre Romans, 1986), esse Platonov, e Chroniques d’une fin d’après-midi, montagem de textos de Tchekhov, por Romans. Portanto, Les Amandiers vive em suspenso como a arma de Tchékhov, que se surgir no primeiro ato, ao quarto alguém a irá disparar – e nem dez minutos entrados e há já uma arma auto-apontada à cabeça de um dos rapazes. Neste filme sobre atores numa escola-mundo, é um filme sobre o fim da juventude, no mais trágico e mais mágico dos lugares: um teatro, no eco de um outro ginjal (estaríamos mais habituados a ouvir O Cerejal, mas não havia cerejas na Rússia de Tchékhov, como lembraram os tradutores Nina e Filipe Guerra), símbolo de perda e de tragédia, sobretudo pela consciência da erosão do tempo, e do adeus definitivo.
No filme, habitado por personagens que parecem sair das paredes dos livros e dos filmes que haveriam de falar de uma Paris dominada pela féerie sexual e emocional, onde o HIV é uma personagem, mas a pressa em agir é tradução direta de uma urgência à la Carax sobre a Pont Neuf, Valeria Bruni-Tedeschi acompanha cada uma destas histórias como se fosse um imenso puzzle, tal como aprendeu – e vimos – com Chéreau, em particular em La Reine Margot (A Rainha Margot, 1994) e Ceux qui m’aiment prendront le train (Quem me amar irá de comboio, 1998), filmes corais (onde a realizadora foi atriz, alguém no meio de tanto sangue em A Rainha Margot, e figura colada à pele no coro de vítimas autofágicas, Claire em Quem me amar irá de comboio), tratados como se fossem reorganizações das escalas social, política, familiar e moral. É também com esse legado que um filme como este se mede. O jogo de atores opera num mesmo plano de uma prática que em Chéreau parece ser um esforço de superação biográfica.

No livro citado anteriormente, J´y arriverai un jour, os autores, o teatrólogo Georges Banu e o ator e encenador – atualmente diretor da Comédie Française – Clément Hervieu-Léger perguntam a Chéreau: “No que fazes, a arte e a vida são indissociáveis, submetidas a uma espécie de exigência autobiográfica.” A resposta é sintomática de uma forma de atuar sobre o presente que reconhecemos também no cinema autoficcional de Valeria Bruni-Tedeshi: “Não diria de exigência autobiográfica, mas os meus espetáculos ou os meus filmes são frequentemente da ordem do diário íntimo. Claro! Não sei: talvez porque, às vezes, é importante que nada seja esquecido.”
Cabe nesta descrição um filme que está enamorada pelas suas personagens, que sabe que o que está a mostrar é uma versão narrativa do que aconteceu. E talvez isso explique, por exemplo, a distância criada por Agnés Jaoui, do mesmo grupo, que se recusou a participar na pesquisa e a ver o filme, porque, disse-o algumas vezes em entrevistas, as suas memórias não são da mesma ordem, onde uns viram descoberta, ela viu abuso de poder; e onde uns acreditaram, ela tornou-se cética. “O que possuímos eternamente é aquilo que perdemos”, haverá de dizer Peer Gynt, personagem de Ibsen, viandante errante e anti-herói, passadas mais de sete horas depois do espetáculo ter começado, e isso mesmo lembrará Chéreau a propósito de intimidade, de exposição e de encontro, como que para explicar a encenação que assinou imediatamente antes de assumir funções em Nanterre-Amandiers. Se não é possível continuar a perguntar-se quem é; quem são, somos e foram, como se pode construir a memória?
A razão de Valeria Bruni-Tedeschi está no cerco em que vai encerrando as personagens, esse combate de negros e cães de que falava Koltés; a mesma negociação entre dor e prazer na base de Cais-Oeste, que Chéreau encenou – e sobretudo interpretou – usando as palavras como arma e o corpo, de boa referência pasoliniana, atirado para a luta.
Os atores de Les Amandiers também se atiram para a luta, agarrando-se a estas personagens para lá do reflexo que possam ser, e mostrando, com niilista garra, aquilo a que estão dispostos para vencer.
É um filme impiedoso, porque sabe o que se seguiu. E é um filme que, sabendo-o, tenta a reescrita. Fazê-lo neste contexto, onde a denúncia dos abusos de poder são – e bem – denunciadas, não apenas porque não pode haver qualquer tolerância em nome de uma qualquer vã eficácia cénica, mas porque há palavras para o descrever e definir, torna Les Amandiers num filme ao mesmo tempo, dentro e fora do tempo, do palco e das cautelas da vida. É como um sopro de vento depois da queda das flores, sente-lhe as formas dos ramos, e prepara a colheita. A câmara é esse vento, a memória é essa colheita, o que se vê é a possibilidade de renascer, para lá dos muros.
★★★★☆

 
         
         
    
                 
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
            