“I don’t see human behavior anymore in terms of passive and responsive;
I see it only as active.”
Talk (2015), Linda Rosenkrantz
Numa recente conversa com a escritora Rachel Cusk para o Los Angeles Review of Books, Ira Sachs centra as suas preocupações: “Como se cria intimidade? Como é que acedemos ao real? O trabalho parte tanto do eu e da experiência pessoal que o verdadeiro desafio é linguagem. E, para mim, é tudo sobre representação.” O realizador escolhe usar a palavra enactment para descrever o que nos diz. Essa representação passa pelo encenar de uma realidade passada. Cusk tinha, momentos antes, esclarecido que a identidade era um defeito, no sentido de ser uma limitação. E se há algo que une Cusk a Sachs é a abertura ao que não pode ser reunido ou segregado. Ou seja, ao tecido do que é inerentemente humano e não parte da biografia propriamente dita (onde a obra corre o risco de acabar banalizada). A vergonha, a indecisão, a contradição, a incoerência: tudo o que não faz ricochete numa superfície e, tanto no ecrã ou na página, não parece ter conquistado um lugar para existir sem antecedentes. Ao activar estas areias movediças, também as suas personagens se libertam, tornando-se irreconhecíveis, até aos seus próprios olhos. Em prol desse voo de autenticidade, Sachs conta a Cusk que tudo o que o cineasta tenta projectar são as vicissitudes do conto, “um espaço diferente daquele do romance”, onde uma só peça consegue mudar todo o caminho delineado até ali. O que não diz, mas acrescento agora, é como o conto se faz de lareira elegíaca no seu cinema.

Sempre tão delicado e vulnerável, o trabalho de Ira Sachs tem-se sobressaído, ao longo de muitas décadas, por conseguir deixar essa acuidade emocional afundar-se nos seus espectadores sem que estes consigam ver ou prever os indícios ou materiais. E sempre com uma grande cidade a fluir no pano de fundo, com quem conversa – normalmente Nova Iorque, mas também mais recentemente Paris. O brilho é irresistivelmente literário. Parte de Sachs, mas não é só sobre ele. Parece-se mais com quem este quer ser do que com quem é. E não é vaidoso também. Antes procura, quase desenfreadamente, localizar uma verdade.
Peter Hujar’s Day (2025), o seu mais recente filme, só poderia, por isso mesmo, ser uma obra dele. É re-enactment, banhado nos tons tão familiarmente âmbar de um passado nostálgico, de borbulhamento criativo e decadência económica na romantizada cidade que não dorme, durante as décadas de 1970 e 1980. E pelo filme passamos sem que a sua tangibilidade afectiva se materialize, e se torne por isso reconhecível ao espectador. Passa por ele, dança com ele, e nele deixa os seus vestígios, mas nunca o aprisiona com inícios ou finais do contágio, que permanece omnipresente e indetectável. Parte evocação de uma presença contínua (sessão espiritual), parte encenação do passado entregue à realidade do presente, Peter Hujar’s Day é uma transcrição visual a 16mm, granosa e constrastante, da conversa ocorrida em 1974 entre o fotógrafo e a sua amiga, a escritora Linda Rosenkrantz, conhecida por se debruçar na ficção não-ficcional e compenetrada num projecto em desenvolvimento onde recolhia testemunhos dos relatos completos de um dia passado na vida dos amigos. O filme apresenta-se numa primeira fase enquanto objecto de reanimação artística, ou seja, cápsula do tempo. Com a quarta parede a ser evidenciada logo de início (voltaremos à rodagem do filme em tempo real umas quantas vezes), torna-se evidente o seu desejo em ser arquivo.
Banhado nos tons tão familiarmente âmbar de um passado nostálgico, de borbulhamento criativo e decadência económica na romantizada cidade que não dorme, durante as décadas de 1970 e 1980, Peter Hujar’s Day apresenta-se enquanto objecto de reanimação artística.
Estreado no Festival de Cinema de Berlim no início deste ano, Peter Hujar’s Day chega até nós agora, oferenda da 29ª edição do Queer Lisboa, e comprova como continua a arrebatar com a sua simplicidade. A tarefa a que Sachs se propõe aparenta facilidade, mas o trabalho para a evocar é hercúlea. Afinal falamos de uma só localização, o apartamento de Linda em Manhattan, onde duas pessoas se encontram durante um dia inteiro, e no qual passarão, determinados a descrever com detalhe o relato das actividades e momentos que, juntos, reúnem as últimas 24 horas da vida de Hujar. Rosenkrantz planeava juntar um livro com o resultado. Uma espécie de tapeçaria de recortes individuais e sui generis, um outro habitar da vida daqueles que eram conhecidos pelo seu génio artístico. De escritores a pintores, fotógrafos e músicos. Mas Linda nunca acabaria por compor o livro, e a gravação daquele dia acabaria perdida. Muito tempo depois, em 2019, uma transcrição viria a ser descoberta por Marcelo Gabriel Yáñes, um estudante, no arquivo do fotógrafo em The Morgan Library & Museum em Nova Iorque, a partir de onde Linda publicaria o livro de 37 páginas, Peter Hujar’s Day, em 2022. Sachs viria a ler o livro logo após a sua publicação e por ele acabaria vislumbrado. Tentaria replicar o sentimento no ecrã que a leitura do seu fluxo de consciência, onde as palavras deixam de transferir significado para ser métrica, tinha provocado.
Com o gravador de cassetes por perto, o que existe é o Peter que Peter quer ser, ou pelo menos que quer imaginar ser. Uma versão vigorosa dele mesmo. Não menos verdadeira.
Peter Hujar’s Day começa então por ser sobre estabelecer visualmente essa noção de lugar que o livro tão brilhantemente consegue conjurar, pontuando o filme com elegância. Preocupações com a divisão e quebra do discurso e como articular a mudança de lugares ocupados pela casa por Linda e Peter são evidentes. Vemo-los ou sentados ou deitados no sofá ou em cadeiras ou no chão, ou no parapeito da janela, de pé debruçados no varão do terraço, deitados na cama. Linda vai acompanhando Peter, por vezes gentilmente acotovelando o discurso para que não perca um rumo. Permanece perto dele para mais rapidamente poder a ele reagir. Este é afinal um filme sobre navegar cinematicamente a planta de um apartamento, não muito diferente do que aconteceria se se tratasse de um palco de um teatro. Mas com a liberdade (ou será prisão?) de finalização que o cinema oferece. Ao longo da conversa, Linda preocupa-se com o bem-estar do amigo, sempre cansado (quase como se suspeitasse como o mundo viria a perder Peter, apenas uma década mais tarde), enquanto este fala e fuma. Aviões sobrevoam, às palavras do fotógrafo é adicionado barulho de berbequins da construção civil, carros que nunca cessam de passar e conversas indefinidas de estranhos que perto dali caminham. Tudo é perceptível mesmo com as janelas fechadas. E nos raros momentos em que o silêncio reina, reina também uma vontade de pertencer a uma realidade maior que eles mesmos, sós na companhia um do outro e de todas as pessoas mencionadas por Peter (de Allen Ginsberg a Susan Sontag ou Fran Lebowitz). O peso da influência da cidade faz vibrar o apartamento.

Dentro da sua estrutura episódica da passagem por um dia de relato, isolam-se as frustrações de um artista que se sustenta na cidade apenas com trabalho comissionado, muito precário e instável. Entre sestas e momentos de produtividade nocturna (“Quando começo a trabalhar, acordo.”), reinam as interacções boémias, muito cómicas, entre pessoas que habitam o mesmo underground criativo, como forma de descrever um modo de estar no mundo. Há demasiado que Peter não entende e também não quer entender. Como nos diz, “Ele diz algo sobre algo mas esqueço-me o que é.” Momentos como este potenciam o filme e elevam-no.
Linda procurava filtrar e destilar então uma ideia de verdade. Mas que verdade é essa? Peter era tido como tímido, conhecido por nem sequer ser muito bem sucedido em fazer auto-promoção do seu trabalho. Mas com o gravador de cassetes por perto a acompanhar a sua voz (nem sempre visto, mas sempre por perto), o que existe é o Peter que Peter quer ser, ou pelo menos que quer imaginar ser. Uma versão vigorosa dele mesmo. Não menos verdadeira. Ao mesmo tempo, os seus muitos comentários recordados do dia anterior – complicado é o trabalho da memória que em muito pouco tempo já refez a verdade – sobre o que alguém disse mas ele não ouviu (“Não estava muito interessado. Podia ter ouvido, mas não me incomodei a fazê-lo.”), ou as várias vezes que admite ter mentido a alguém (até à própria amiga durante o discurso), denotam as imperfeições incorrigíveis da arte da conversa. Curioso é também o facto de que Hujar o faz com o intuito de arranjar um desvio para não ter que explicar a Rosenkrantz quanto ele precisa que lhe liguem, que lhe interrompam a sua linha de pensamento, para conseguir usufruir melhor da sua solidão, assim que conquistada, e aterrar, finalmente, no trabalho. Rebecca Hall, numa interpretação muito sofisticada, leva-nos a acreditar que Linda sabe disto.
Quando as pessoas falam, elas interrompem, repetem-se, vacilam. Procuram estabelecer um ritmo e uma articulação, minimamente estruturada, mas acabam sempre, ora por cansaço ora por nervosismo, cambalear. É difícil encontrar refúgios ou arranjar lugares escondidos no discurso falado. O magnífico e desolador Ben Whishaw, mais actor que homem, faz renascer pequenos vislumbres de uma ideia de realidade.
Ao contrário do texto escrito, o que é dito é fruto do momento, sem edição possível. Quando as pessoas falam, elas interrompem, repetem-se, vacilam. Procuram estabelecer um ritmo e uma articulação, minimamente estruturada, mas acabam sempre, ora por cansaço ora por nervosismo, cambalear. Esta é a natureza da conversa. Tal e qual como acontece na disposição física de um pequeno apartamento citadino (o que é existe permanece visível), é difícil encontrar refúgios ou arranjar lugares escondidos no discurso falado. E Peter Hujar’s Day confirma-o rapidamente. Ao envolver-se no fluxo quente do que aconteceu, e do que Peter quer dizer sobre o que aconteceu – assim se define o ritmo, o tom e a entrega das palavras – vemo-lo envolvido até na forma como perde o rasto do arco do seu discurso principal e foge para fazer uma nota sobre. Com o magnífico e desolador Ben Whishaw, mais actor que homem, a fazer renascer pequenos vislumbres de uma ideia de realidade.

Com todos estes elementos a trabalhar em conjunto, somos ainda assim surpreendidos pela intimidade de Sachs. Como é que aqui chegamos? De que é feito este dinamismo? Se a entrevista, ou melhor a conversa, que é isso que as melhores entrevistas são, pode ser considerada um auto-retrato de Peter, então o filme de Sachs é o retrato desse auto-retrato, onde a visão de outros artistas (Sachs e os seus actores) se conflui. São muitas as vozes que falam por cima umas das outras durante o seu discurso (embora só o ouçamos a ele), que é isso que as melhores conversas são também. Estar presente para a exaltação. Palavras que correm e não querem esperar para ser ditas. Tudo em prol de um projecto sobre aquilo que nos move ou faz mover durante a idade adulta. De que é feita a vida artística? Como será que os outros criativos ocupam as suas vidas? Num dos momentos mais térreos da conversa, Peter confessa o sentimento de perda de tempo, falta de gestão dele para que um dia possa ser valorizado do ponto de vista criativo. “Sinto frequentemente que nada realmente acontece durante os meus dias, que os desperdiço. Perdi outro dia. Tudo o que fiz foi passar duas horas com (Allen) Ginsberg.”, ao que Linda responde que é precisamente por essa razão que lhe surgiu a ideia para o projecto. “Quero descobrir como é que as pessoas preenchem os seus dias porque eu sinto que nunca faço grande coisa o dia todo.”
Só expondo as problemáticas no acto de dizer as suas palavras em voz alta, em direcção a alguém, onde farão ricochete e os seus conceitos ver-se-ão modificados, é que tanto Peter como Linda podem começar a entender.
É curioso perguntar de que se faz os dias de um artista, tendo em conta que o artista não é a soma do seu trabalho mas uma predisposição natural e orgânica à forma como ocupa o mundo em que vive. Na era do capitalismo tardio, a labuta pode ser o trabalho realizado, mas o trabalho está a ser realizado antes também, mesmo quando o artista não pensa nele. A obra fermenta em todos os momentos, especialmente durante os nadas do quotidiano, onde o que acontece é só refeito. O trabalho artístico decorre interiormente, e é resultado de impulsos e estímulos. Mais espiritual do que artesanal. Peter Hujar’s Day explora isso também. Na exposição de Sachs sobre a exposição de Whishaw na pele de Peter, que se debruça sobre si mesmo perante o olhar atento e carinhoso de Linda, o trabalho, naturalmente individualista, é feito com vista a tentar compreender e dar um sentido a todas as coisas durante o acto da vocalização. Só expondo as problemáticas no acto de dizer as suas palavras em voz alta, em direcção a alguém, onde farão ricochete e os seus conceitos ver-se-ão modificados, é que tanto Peter como Linda podem começar a entender. É nesse movimento que a clareza pode germinar em direcção ao que permanece desconhecido.
A essência da obra de Peter Hujar, o foco no nu e no retrato, completa este triângulo da procura por uma verdade aqui presente, que precisa da harmonia entre vários elementos para se revelar. Uma recente exposição do seu trabalho, Peter Hujar – Eyes Open in the Dark, na galeria de arte Raven Row em Londres enaltecia como “o corpo nu é um golpe físico, a imagem a deixar uma marca como uma ferida ou um hematoma. Ele experienciava o visual somaticamente, hapticamente.”, palavras de John Douglas Millar, seu biógrafo, num dos textos de acompanhamento. Por causa do uso frequente do sépia, e uma aproximação à tensão palpável da morte, quando pensamos em Hujar pensamos no corpo, na sua qualidade cadavérica, arquitectónica, e na linguagem que daí é retirada. “Ao contrário de um conceito, não capta ou abarca, mas ao invés disso entra, e fá-lo através de um suspiro. Penetra, mas sem violência. É uma voz, um tom. Uma escalada frenética pelos nervos. Uma iridescência.”, mais uma vez Millar. Sachs é esse mesmo contador de histórias. O seu cinema entra, através de um suspiro. Não vemos a iridescência, mas ela é sentida.
Uma homenagem sublime a um artista e ao sentimento definidor de uma era.


Há ainda uma última particularidade que faz de Peter Hujar’s Day uma homenagem sublime a um artista e ao sentimento definidor de uma era. Na sua qualidade impressionista, algures entre a adoração pelo diarismo e uma vontade imprescindível em registar a pulsão que cobre o filme, este vê no horizonte do seu plateau uma forma de agarrar o futuro. O mesmo tem vindo a ser confirmado noutros filmes de Sachs. No final dos arcos percorridos, os seus personagens revêem o passado mais uma vez, para assim conseguirem caminhar com mais determinação em direcção a uma linha de tempo e espaço que começará a ser criada dali em diante. Em Passages (2023), as lágrimas de Tomas caem, enquanto o seu corpo não vê como parar de pedalar pelas avenidas de Paris fora. Em Forty Shades of Blue (2005), Laura sai do carro, lágrimas correm desalmadamente pela sua cara, mas esta nunca pára de andar. Também Erik em Keep the Lights On (Deixa as Luzes Acesas, 2012) caminha sozinho pelas ruas de Nova Iorque depois de abraçar Paul pela última vez. Em Little Men (Homenzinhos, 2016), Jake volta a ver Tony numa visita a um museu. Tony não o vê a ele. Deixamos Jake a desenhar sentado no chão do museu, com os seus colegas de escola por perto. Em Love is Strange (Love Is Strange – O Amor é Uma Coisa Estranha, 2014), Joey e uma rapariga percorrem uma rua em Manhattan de skate em direcção a um pôr-do-sol crestante. E em Peter Hujar’s Day (2025), a mesma luz, mas agora interior, abate-se sobre a face de Whishaw enquanto este toca o seu olhar na cara de Hall ao fim de 24 horas de monólogo, cigarro entre os dedos. A gravidade da conclusão abate-se sobre os dois. Lá fora, uma paisagem laranja-arroxeada anuncia o fim daquele dia de Inverno.
Uma história de amor que fala em verso, que é o mesmo que dizer que anseia continuar a amar a vida, pensada em retrospectiva enquanto está a ser experienciada. Existe mais aqui para ser considerado na sala de cinema do que num museu.
Nas lágrimas que não têm como não cair na cara de Hall veremos a colectividade de pensamento, a voracidade do que é uma história de amor que fala em verso, que é o mesmo que dizer que anseia continuar a amar a vida, independentemente das suas adversidades, pensada em retrospectiva enquanto está a ser experienciada. Existe mais aqui para ser considerado na sala de cinema do que num museu. As palavras que ainda ecoam depois de 76 minutos rapidamente se misturam, passando a compôr o polifonismo do cinema onde o fim é só um outro início.