Há nos primeiros momentos de Poulet Aux Prunes (Galinha com Ameixas, 2011) uma indicação clara de uma nova experiência na carreira de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud. Os créditos iniciais em animação (hoje é preciso distinguir, portanto diga-se em 2D) terminam com uma descida ao mundo da imagem real para que o filme comece e para encontrar personagens de carne e osso. Esta “descida”, que não é aos infernos, mostra-nos a decisão de passagem da animação à imagem real [que acontece de Persepolis (Persépolis, 2007) a esta segunda longa-metragem] e que não deixa de revestir uma certa ironia. Se bem nos lembrarmos, o crescimento da pequena criança iraniana Marjane durante a revolução no seu país, exorcismo e biografia de infância da própria Satrapi no primeiro filme da dupla, era um objecto muito mais cerrado, negro (até pelas cores) do que alguma vez esta segunda longa-metragem consegue ser.
Caso estranho pois o ponto de partida é semelhante: a adaptação de uma novela gráfica, neste caso publicada em 2004 e que conta os últimos dias de vida em Teerão de um tio músico de Satrapi. Mas então o que se terá “perdido”? Ou que súbita leveza terá ganho o seu universo? Ainda para mais sendo o filme narrado pelo próprio anjo da morte Azrael? Não há uma resposta, mas há um indicador. Na banda-desenhada o caricatural (no sentido não pejorativo) é a matéria-prima em termos narrativos e de pose mas que se dissolve aos olhos do leitor ante a imobilidade da vinheta que é depois preenchida por ele. Ora, a passagem à imagem real, que não pára, não pode parar, abre a questão de como preencher esse caricatural. Essa necessidade sente-se na forma como o tale do homem a quem se lhe partiu o centro da sua vida (o violino, e com ele a sua alma), Nasser-Ali Khan (presença muito competente de Mathie Amalric) diverge sistematicamente para a backstory deste e de outras personagens, para a imagética kitsch ou para sequências de animação ou de paródia.
Essa heterogeneidade entretém mas raramente opera essa operação de enchimento que o filme necessita. Uma excepção talvez seja a sequência perfeitamente bunuelina (até pelos enormes seios) em que Nasser, prostrado numa cama enorme, num quarto negríssimo, é visitado pelo anjo da morte. Aqui, essa deformação onírica comunica com esses processos de densificação do drama. No mais das outras vezes a expressividade do universo de Satrapi (mas também do argumento de Paronnaud) ao chocar com a realidade torna-se num comum exercício de lirismo (às vezes descontrolado) que envolve o drama de violinos partidos e amores desencontrados (Nasser não ama Faringuisse, a esposa, representada por Maria de Medeiros), com toda a carga do homem que desiste de viver e para quem a galinha com ameixas é um sinal de ligação à vida. Ainda que se diga que tudo isto é uma alegoria política de separação face à saída de um país, neste caso o Irão (a amada de Nasser chama-se Irâne).
Se este lugar de lirismo parece já estar ocupado por Jean-Pierre Jeunet e a leveza que ocorreu desde Le fabuleux destin d’Amélie Poulain (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, 2001), diga-se que não há só coração neste Poulet aux Prunes. A utilização do explícito, do décor sumptuoso, do insólito no enquadramento encontram os seus momentos de triunfo à la carte: a neve, nesse plano que acompanha o floco a cair do céu até à boca do filho de Nasser; o fumo do cigarro que ganha vida e sai pela janela da casa da mãe do protagonista numa “fuga da alma”, anunciando a sua morte; a nuvem que transporta o homem que foge da morte na sequência de animação introduzida pela história de Azrael (a melhor sequência do filme). Outras vezes ainda é esse lirismo que sai estilhaçado ante a capacidade que o filme tem de parodiar: as lágrimas de crocodilo do comerciante, a marca de cigarros “Lazare” na mesa de cabeceira de Nasser, ou, evidentemente, a sequência de paródia às sitcoms norte-americanas.
No final de contas, se esses pedaços trazem algum interesse ao filme, o nomeado a Leão de Ouro em Veneza o ano passado, nunca consegue esconder a presença invasiva da banda-sonora de Olivier Bernet, o pouco desenvolvimento de personagens secundárias ou um certo desfasamento entre aquilo que é o drama do protagonista e essa vontade do plano e da imagem de Christophe Beaucarne de mimarem o traço e as composições da banda-desenhada. O resultado é um meio termo estranho como a sensação de comer um prato muito vistoso mas de sabor algo artificial.