Depois da obra-prima Femme Fatale (Mulher Fatal, 2002), em que o corpo de Rebecca Romjin vestia a pele do arquétipo titular e enleava como o Bolero de Ravel num jogo de sedução que o espectador só poderia perder, Brian De Palma apenas voltara a filmar duas vezes – em 2006, The Black Dahlia (A Dália Negra); em 2007, Redacted (Censurado) – sendo que a adaptação do romance de James Ellroy é provavelmente o seu pior filme, nem carne (sem as tripas e a psicose do escritor) nem peixe (sem as delícias visuais do cineasta) [é claro que a obra de De Palma tem outros passos em falso, em que o realizador parece perdido em enredos desnecessariamente bem construídos e inteligíveis, mas nunca uma escorregadela como esta]. Portanto, Passion (Paixão, 2012), o seguimento (i)lógico de Femme Fatale, teria de ser considerado uma benção.
Então, por que razão, quando tem tudo para ser amado (como tão bem enumera o comparsa walshiano Tiago Ribeiro no seu blog) – a banda sonora de softcore de elevador vertente ultra-romântica (triplo elogio) de Pino Donaggio; a loura vulcânica e a morena frígida (e a ruiva inocente, a menos fatal das três mulheres, para que o espectro feminino fique completo); um split screen muito mentiroso, que, em vez de mostrar tudo, esconde o mais importante); a música de Claude Debussy e o bailado de Prélude à l’aprés-midi d’un faune (a substituírem Ravel); o corpo feminino como arma letal; a psicologia de adolescente sobre-excitado, com variados brinquedos sexuais, doces perversões (incluindo uma máscara que permite a uma pessoa fazer amor com ela mesma e, ver-se-á, “suicidar-se”) e provocantes humilhações; as câmaras enviesadas e a iluminação do noir; a confusão entre realidade e sonho (ou entre cinema e pesadelo) -, Passion acaba por merecer a simples admiração?
Mais, por que razão a primeira parte do filme, soap opera de escritório, de ambições desmedidas, punhaladas (figuradas) nas costas e diálogos risíveis e artificiais, a xaropada que os “depalmianos” têm de suportar para alcançarem os prazeres finais, é tão superior à segunda, quando De Palma entra finalmente em full drive com episódios psicóticos, reviravoltas extenuantes e a explicitação dos fantasmas (e fantasias) que o assombram desde, pelo menos, Sisters (1973)? A resposta está claramente na pergunta: é tudo demasiado óbvio. Bom, mas De Palma nunca foi subtil na vida e “demasiado” deve ser o advérbio que melhor o descreve; qual é, pois, o problema? E que era Femme Fatale se não a súmula do melhor De Palma, de Phantom of the Paradise (O Fantasma do Paraíso, 1974) a Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981), passando por Body Double (Testemunha de Um Crime, 1984), de Carlito’s Way (Perseguido Pelo Passado, 1993) a Snake Eyes (Os Olhos da Serpente, 1998)? E por que razão estou a fazer tantas perguntas se sou eu mesmo que respondo? O maior problema de Passion é ser rotineiro: nota-se menos o gozo nas “depalmices” do que a absoluta necessidade delas comparecerem, uma a uma completando a lista previamente estabelecida (curiosamente, isto não responde à quarta pergunta deste parágrafo; aí, o problema é comigo).
E escreva-se de passagem que se De Palma seguisse as tramóias do escritório em regime softcore de luxo até ao fim, Passion ficaria a ganhar com isso, muito por culpa da extraordinária (e odiável) Rachel McAdams, cuja ausência Noomi Rapace, a Lisbeth Salander de Män som hatar kvinnor (Millennium 1: Os Homens que Odeiam as Mulheres, 2009), a versão sueca de The Girl with the Dragon Tatoo (Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres, 2011), não consegue colmatar. É nesse primeiro segmento que De Palma parece sentir-se mais à vontade e em que, paradoxalmente, se sente a sua verdadeira marca sem aquele sabor a requentado. Assim, quando já corre o genérico final, uma sensação apodera-se do espectador: Steven Soderbergh bateu De Palma na casa do adversário – Side Effects (Efeitos Secundários, 2013), com a Lisbeth americana (Rooney Mara), é aquilo que o espectador não se importaria que Passion fosse.