Homem doce de voz profunda, Tobe Hooper é a exacta antítese do seu cinema, que faz do frenesim horrífico e da brutalidade audio/visual algumas das suas imagens de marca. Ou, pelo menos, esses são os lugares-comuns que servem a quem viu superficialmente a sua obra, começando pela sua obra-prima: The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974). Como em Leatherface, o verdadeiro Leatherface (para lá das máscaras), encontramos em Hooper uma hesitação tímida na sua maneira de ser, que o faz falar pouco e receosamente. Diz que não é como os seus monstros, mas que estes são, apesar de tudo, personagens sensíveis. Sensibilidade é o que não falta a esta lenda viva do cinema de terror, o homem que tantas infâncias e adolescências assombrou. Desde logo, as minhas, como tive oportunidade de lhe transmitir antes mesmo de começarmos a nossa conversa à pala do MOTELx 2013.
Durante muito tempo, o seu primeiro filme, Eggshells (1969), foi dado como perdido para sempre. Acredito que o facto de ter sido redescoberto e restaurado após mais de quarenta anos terá sido para si algo de muito importante.
É um pouco como uma cápsula do tempo. Penso que é o único verdadeiro filme hippie. Não é como Easy Rider (1969). É um filme hippie, um filme sobre o que se estava a passar na altura. Penso que a maior parte das imagens é the real thing, a verdadeira contra-cultura… Essas imagens são como um estilo, como um fato que se pode usar. Tinha um subtítulo, Time and Space Film Fantasy. Eu adorei fazer o filme, filmei-o durante meses e montei-o entre 8 a 9 meses e foi fixe fazer a minha primeira longa. No final do dia, tínhamos as grandes latas [com o filme]. Era recompensador ter isso: película numa lata. As latas pesavam sete quilos. Eu adoro o filme porque tem imensos truques de cinema.
São quase avant-garde esses efeitos.
Para o tempo, novos efeitos… A American Cinematographer fez uma crítica e falou do valor cinematográfico do filme. Mas teve menos que 50 exibições, perto das universidades. Então… “tenho de fazer outras coisas para me mostrar”. Foi então que decidi fazer filmes do género de horror. E eu adoro o género do horror, de qualquer maneira. Chain Saw foi gerado mal consegui arranjar dinheiro.
Em certa maneira, Eggshells tem alguns planos que são replicados em The Texas Chain Saw Massacre. Desde logo, há a óbvia obsessão pelas casas malditas e depois, nelas, pelos corredores e as escadas, que são quase uma marca do seu cinema. Quando faz um filme, pensa na coerência do seu universo ou este é um processo automático?
Penso que não podemos fugir ao automatismo da coisa… É assim que pensamos. É como a estação de rádio em que estamos sintonizados naquele momento. O que está a passar na nossa cabeça torna-se parte de nós. É como uma dança da guerra que se desenvolve à nossa volta e as coisas surgem magicamente daí. Demorei alguns filmes para me aperceber que até a meio da rodagem é o filme que me diz do que ele precisa. O filme começa a fazer-se através de mim. Eu sou uma colaboração.
Foi uma vantagem ter feito The Texas Chain Saw Massacre no contexto de produção dos anos 70, nos Estados Unidos?
Olhando para trás, foi perfeito. O timing foi perfeito e isso acontece algumas vezes. Primeiro, queria que se parecesse com um documentário. E, ao fazê-lo, disse: “é uma história verdadeira”. Por esta altura, provavelmente é uma “história verdadeira”. Por muito que diga, as pessoas discutem comigo sobre a sua veracidade. Há um filme não muito bom chamado The Legend of Boggy Creek (1972), sobre o Bigfoot, que diz “isto é uma história verdadeira”.
Hoje existem várias versões modernas de Leatherface. Estive a rever The Texas Chain Saw Massacre e reparei nos traços mais sensíveis que confere à personagem. Ele é retratado como uma espécie de artista plástico e tem um irmão com uma pancada por body art e fotografia. São personagens muito sensíveis, mesmo que de uma maneira estranha. Sendo um artista também, em que medida se revê nos seus vilões, nos seus monstros?
Ah, essa é uma boa questão. Eu compreendo-os. Eu acompanho o desenvolvimento comportamental de uma família grande, fazendo coisas ridículas, deslocando valores morais. Como “olha para o que o teu irmão fez com a porta”, e depois há cadáveres por todo o lado. Essa é uma boa questão, nunca ma fizeram. Penso que não sou um monstro, mas compreendo-os.
Mas vê um artista nos seus monstros?
Sim, todos eles têm longas backstories e subtexto. Não são apenas monstros sendo monstros. Por exemplo, Leatherface é bastante sensível. Após a terceira pessoa que mata naquele dia – e só a mata porque é um intruso – ele vai para a janela e bate na galinha que está na gaiola. Ele está com medo. Ele olha para a janela, senta-se na cadeira… mas “eles” não param de vir à porta.
Leatherface é a personagem que está a ser aterrorizada.
Ele sabe que vai levar uma carga de porrada quando o irmão mais velho chegar a casa.
É curioso porque também em The Funhouse (Acidente no Luna Parque, 1981) e no mais recente Toolbox Murders (O Edifício Lusman, 2004) temos essa situação em que os bons e inocentes são, na realidade, os intrusos, os estranhos que invadem o território. Muitas vezes, vejo-o associar terror com território. Esse é um elemento político do seu cinema?
Sim, penso que é rigoroso dizê-lo. Eu tenho tentado encontrar, no isolamento, um lugar seguro para mim. No Chain Saw original há um medo nele que surge em pesadelos recorrentes, onde não podemos fugir, como se corrêssemos em slow motion. Por muito que Sally fuja ela retornará sempre à teia da aranha.
Falando em The Texas Chainsaw Massacre 2 (Massacre no Texas 2, 1986), este filme, juntamente com Lifeforce (As Forças do Universo, 1985), tem sido objecto de uma reavaliação por parte da crítica e dos cinéfilos em geral. Para muitos, o insucesso de crítica e público destes dois filmes foram a razão do seu declínio nos anos 80. Como explica esta reavaliação que tem sido feita com o passar do tempo? Vê-a como uma espécie de “vingança”?
Essa é uma boa ideia. Eu estou grato. Não a tinha olhado como vingança, mas finalmente eles estão “a acertar”. Quando eu estava a filmar [Lifeforce] chamava-se Space Vampires e era a minha homenagem aos filmes Hammer. E decidi fazer o filme Hammer mais caro de sempre. Como The Curse of Frankenstein (A Máscara de Frankenstein, 1957), Taste the Blood of Dracula (1970)…
Frankenstein Created Woman (Frankenstein Criou uma Mulher, 1967)…
Sim. E eu gosto do romance de Colin Wilson, Space Vampires.
Como é que avalia o sucesso dos seus filmes? Acredita mais na crítica ou no público?
No público… Bem, não quero dizer isso exactamente. Uma larga parte dos críticos foi simpática comigo. Há críticos que fazem uma crítica positiva, vêm ter comigo, depois eu não tenho tempo para eles e eles regressam e fazem uma crítica nova e é má. O mesmo crítico sobre o mesmo filme! Mas é sempre óptimo ter uma crítica boa.
Costuma ler as críticas aos seus filmes?
Se me disserem que é uma boa crítica, eu leio.
Existe então alguém que filtra as críticas? Não pesquisa na Internet à procura de reacções?
Não, vou às projecções e vejo nelas o que funciona e o que não funciona. Depende do tempo e do dia da semana, mas é sempre bom ter uma crítica boa. Mas eu estou mesmo contente que algum trabalho meu esteja a ser compreendido. É diferente de país para país. Descobri que a cultura japonesa entende.
É interessante isso, porque temos em Lisboa Hideo Nakata. Ringu (1998) foi mostrado e Poltergeist (Poltergeist, o Fenómeno, 1982) abriu o festival. Penso que há algumas semelhanças entre os dois, como a ideia de que o mal vem do televisor. Acredita que a televisão continua a ser um poderoso instrumento de horror?
É uma abertura para uma nova energia. É uma janela. As coisas fantasmáticas funcionam no seu melhor quando têm a ver com a ciência, isto é, a ciência tangível. Um exemplo é que, quando fiz Poltergeist, só tinha havido antes dois filmes de fantasmas bem sucedidos, um deles The Haunting (A Casa Maldita, 1963) de Robert Wise. A assombração entra [na casa] através de uma parapsicóloga, através de uma exploração científica sobre o que aquela outra energia possa ser. Houve uma altura em que era estranho para o público acreditar num ovni. A religião sugeria que havia outras energias, mas é difícil convencer se não entrarmos na ciência tangível.
Falávamos atrás de Lifeforce, deste conto de vampiros modernizado. Existe hoje uma espécie de generalizada mania por vampiros. Falámos agora da relação entre Nakata e o seu cinema. Sente-se como uma instituição para muitos dos realizadores da actualidade?
Eu estive no começo e o género deu uma volta. É como estar no sítio certo, na altura certa. Penso que essa é a realidade. Eu estive lá primeiro.
Mas teve o talento e a criatividade para estar lá primeiro.
E amor pelo cinema.
Eu falava atrás das versões modernas de Leatherface. Como se sente quando as suas criaturas são passadas para as mãos de outros realizadores?
Se as tratarem bem… Normalmente, os remakes são feitos muito para lá do tempo, do contexto. Eu não me posso queixar. Mas eu desejava que houvesse um reconhecimento… É tentar reinterpretar e fazer algo que não despreze o contexto que fez com que o original acontecesse. No filme original [Chain Saw], estas pessoas reagem naturalmente ao seu ambiente. Nos remakes… com excepção do último [The Texas Chainsaw 3D], que tem muito mais em comum com a backstory da personagem… Quer dizer, quando o Leatherface tira a máscara e não tem nariz, ele não está a tentar esconder nada. Ele tem uma máscara, isso veio de um médico de família que me contou, quando eu tinha nove ou dez anos, que quando estava na escola de medicina tirou o rosto a um cadáver, secou-o e usou-o numa festa de Halloween. É retorcido que este comportamento seja real.
Em certa medida, não será a máscara mais uma “intervenção artística” de Leatherface? Ele usa-a como que ostentando mais uma “criação sua”.
Sim, como criação sua. Leatherface é um tipo solitário que passa o dia em casa, enquanto a família está fora, pelo menos um dos elementos da família sai de casa. Ele procura uma identidade. À noite, põe uma máscara durante o jantar. A vida é assim: ele está isolado e só sabe o que experienciou. Eu tratei o filme como parte da realidade. Na cena do jantar, o homem mais velho diz à rapariga “o avôzinho é o melhor assassino” quase como se dissesse que ela devia estar orgulhosa. Eu adoro humor irónico.