Sob o risco de invadir o território do Luís (caro leitor, repare como em meia frase lhe trago à memória um jogo da infância/adolescência sem necessidade de o referir: não é para todos), que, na sua crónica Civic TV, trata do cinema que passa na televisão, proponho-me escrever sobre cinema que não passa da televisão. “Da televisão” e não necessariamente “de televisão”: embora, desde o início, a reputação do telefilme nunca tenha sido a melhor − baixos valores de produção, actores de segunda, argumentos pobrezinhos, realizadores indiferenciados; num patamar abaixo de outros produtos televisivos −, uma ou outra excepção serviu não só para confirmar a regra, como para demonstrar que era possível fazer algo mais. Basta pensar na primeira longa-metragem de Steven Spielberg, e ainda uma das suas melhores, Duel (Um Assassino pelas Costas, 1971) [respondo desde já ao caríssimo leitor que se prepara para escrever um comentário para me corrigir que, sim, sei perfeitamente que Duel teve posterior exibição nas salas de cinema e isso contradiz o que escrevi poucas linhas atrás, mas peço que compreenda que nuances dessas não alteram o espírito do que ficou escrito e interrompem o natural fluir do texto, como ora se constata], ou nas duas obras que John Carpenter realizou para televisão: a magnífica biografia Elvis (1979) e o hitchcockiano Someone’s Watching Me! (1978) [nestes casos, o prezado leitor faz bem em não tentar apanhar-me em falso, pois sabe que tenho razão].
O estimado leitor (que resolveu saltar para fora dos parêntesis) interroga-se agora por que razão estarei a tentar enfiar o tema do telefilme ou, mais precisamente, de um telefilme (calma, insistente leitor, já lá vou) numa crónica intitulada Em Série, o que vai contra o espírito, a letra e tudo o resto da mesma, se isso não denota que eu não sabia muito bem sobre o que escrever e se encetei este diálogo um tanto mesquinho para disfarçar o facto e fazer o texto parecer mais denso e importante do que será na realidade, vulgo encher chouriço. Confesso que o obstinado leitor me deixa desarmado, pelo que terminarei aqui esta pequena discussão, passarei com a maior brevidade possível à obra que pretendo abordar e inventarei uma desculpa esfarrapada para a inclusão de um telefilme nesta crónica (que o cansativo leitor deverá fingir que faz sentido).
Em Portugal, os telefilmes raramente surgem como objectos isolados: quando os canais privados produziram filmes para televisão, fizeram-no sempre por atacado − a SIC ainda na década de 90, a TVI já neste século −, provando que existência de um programa único não cabe inteiramente na lógica televisiva, no espírito da fidelização do espectador que se faz pela repetição e pela familiaridade (é curioso também que quando as televisões produzem ou ajudam a produzir filmes para cinema, transmitem-nos em seriado). A situação é diferente nos Estados Unidos da América, onde o telefilme, por obra e graça dos canais de cabo pagos, ganhou uma respeitabilidade impensável há vinte anos (como as séries de televisão). Hoje em dia, não se estranha que um realizador cotado trabalhe para a televisão, normalmente num piloto de uma série ou nalgum episódio especial. E, ainda este ano, Steven Soderbergh, ao mesmo tempo que afirmava o desejo de abandonar de vez o cinema, estreava o seu último filme (talvez derradeiro) na HBO − Behind the Candelabra (Por Detrás do Candelabro, 2013) −, por não ter conseguido financiamento dos estúdios, dado que, segundo o próprio, a temática era demasiado gay. É extraordinário como as coisas mudam: toda a gente se lembra de a televisão ser mais puritana do que o cinema. Ou então, a decisão não teve nada a ver com qualquer pudicícia; provavelmente os produtores dos estúdios consideraram o projecto financeiramente incerto e por isso não o financiaram. Para a HBO, com um fiel público pagante, o risco não seria o mesmo.
O mesmo se pode escrever de Phil Spector (2013), telefilme escrito e realizado por David Mamet e protagonizado por Al Pacino e Helen Mirren (há não tanto tempo, estes nomes dariam direito a outras tantas nomeações para os Óscares; assim “apenas” deram onze nomeações nos Emmy). [Exacto, obnóxio leitor, finalmente acerco-me do meu tema, obrigado pela atenção.] De resto, observe-se as semelhanças entre os filmes de Soderbergh e Mamet, ambos sobre figuras extravagantes do meio musical − o primeiro sobre o espaventoso Liberace, o segundo sobre o justamente celebrado Spector, que, para lá de ter composto e produzido algumas das melhores canções do século XX, “inventou” uns quantos agrupamentos musicais, mormente femininos (caso das Ronettes) e revolucionou o som da música que se ouvia com o seu teutónico Wall of Sound (que Brian Wilson enlouqueceu a tentar copiar; é verdade que há outras razões apontáveis para a maluquice de Wilson, entre as quais o ser maluco) −, um filão descoberto pela HBO. Mas se Liberace escondia os pecadilhos e a sua homossexualidade era apenas sussurrada, as lendas à volta de Spector são provavelmente piores do que a realidade. Parece líquido que Spector gostava de brandir armas de fogo a despropósito (por exemplo, durante gravações) e tinha por hábito violentar fisica e psicologicamente mulheres (pelo menos, essa é a versão de Ronnie Spector, uma das suas “criações” e ex-mulher); no entanto, Marky Ramone (dos Ramones, obviamente) veio há pouco tempo afirmar que o clima durante a gravação de End of the Century não era propriamente de terror, como sempre se disse (se bem que houvesse pistolas a serem brandidas e isso).
Contudo, Phil Spector está longe de ser uma figura simpática (ao contrário de Liberace): se o mito o persegue, as assustadoras cabeleiras postiças, a reclusão, as inúmeras histórias de violência, nunca o desmentiram. Talvez por isso, quando se soube que uma actriz de terceira (protagonista numa ou outra produção de Roger Corman), de momento a fazer uns biscates num bar qualquer, havia morrido a tiro de pistola na mansão de Spector, o julgamento popular foi sumário: culpado, de pouco valendo ao produtor musical as juras de inocência ou os protestos de que a actriz, no ponto mais baixo da carreira e sem reviravolta à vista, se havia suicidado. Talvez por isso nenhum estúdio, apesar de história tão sumarenta, se arriscasse a produzir um filme baseado nos acontecimentos. Teve de ser a HBO, teve de ser David Mamet, ele mesmo arredado das lides cinematográficas, tanto na realização (nos últimos dez anos, fez dois filmes, nenhum muito bem sucedido comercialmente), como na escrita de argumentos (tendo-se dedicado ao primeiro amor, a escrita e encenação de peças teatrais, e até mesmo à criação de uma série de televisão, The Unit).
O encontro entre Mamet e Spector é interessante, já que tanto um como o outro advogam a necessidade da posse de armas, caso seja urgente o derrube de um governo ilegítimo (como consta na Constituição norte-americana), e resulta numa obra que, se não é amoral, coloca-se numa posição de neutralidade, não apontando o dedo à vítima − seguindo a estratégia da eternamente constipada Linda Baden, a advogada de defesa de Spector (a extraordinariamente inteligente Helen Mirren; e era preciso alguém assim para este filme verdadeiramente intelectual) − ou ao “culpado” (Al Pacino no delirante overacting dos últimos anos, embora com uma percentagem de gritos menor do que o habitual). Apesar da opinião pública contrária (que assume o corpo da filha de Mamet, que atira tinta ao músico), o Spector de Mamet é sempre presumivelmente inocente. Tanto que o realizador foi obrigado a introduzir no início um aviso de que o seu filme não era baseado em factos reais (quando claramente é), tão-só ficção. Como se, numa era de permanente (des)informação mediática, a figura jurídica da presunção da inocência fosse uma efabulação absurda − e Mamet, por momento que não penda para qualquer dos lados (afinal, o filme, todo passado nos “bastidores” de um julgamento, é sobre a culpa e a dúvida, o beyond a reasonable doubt de Lang), foi acusado de ser demasiado simpático para com Spector. Talvez a razão para que Phil Spector (mais uma vez, ao contrário de Behind the Candelabra) nunca chegue a uma sala de cinema seja essa: a imparcialiade de Mamet é demasiado complexa para o grande público que gosta de heróis e vilões e, acima de tudo, de uma moralidade bem delineada. Portanto, de um ponto de vista comercial, não interessa produzir.