Eis-nos chegados e atracados a Richard Fleischer, poeta silencioso das fileiras da RKO, maestro imperturbável mas discreto do grande espectáculo a partir das 20,000 Leagues Under the Sea (Vinte Mil Léguas Submarinas, 1954). Só que rotulá-lo e decifrá-lo, se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil. Resta olhar para os seus filmes com vontade de os ver, e arriscar atirar frases e parágrafos na esperança (ou ilusão) de se chegar a algum lado. É o que aqui se vai tentar fazer.
“Even the romans had centurions to keep the peace. And they were unsupported, unhonored, disliked, just like us. But they held the line, for a while… until Rome was finally overrun by barbarians.” Esta frase aparece a meio do grandioso (do belíssimo, do estratosférico, do…) The New Centurions (Os Centuriões do Século XX, 1972), dando algumas luzes sobre o que por lá se passa, quando Kilvinski (o personagem de George C. Scott), poucos meses depois da reforma, regressa de uma terrivelmente elíptica estadia em casa da filha e da neta e passa um bocado tão preciso com o antigo colega e amigo, Roy Fehler (o fabuloso Stacy Keach), depois de tantas rondas, turnos e patrulhas partilhadas nas ruas de Los Angeles. Só eles, que viram os olhares estilhaçados das vítimas, horrores domésticos, pesadelos durante a noite, acordados, ora sóbrios ora bêbados, é que percebem que se podem mudar todas as leis para melhorar as percentagens e sondagens do crime – que servirão para ganhar eleições e a adulação barata de certo povo e de certas elites -, “but they can’t get rid of evil”. Eles nunca ouviram falar da “Kilvinski’s law”, que pode também levar o nome de “consciência” e implica saber chegar a um quarteirão com ar de favela e perceber que às vezes é quem é respeitável que tem a culpa no cartório. Como saber que não é preciso levar ninguém para a esquadra certa noite, bastando pagar uma garrafa de whisky e leite às putas que enchem a carrinha da polícia e pedem – só uma o pede, de forma belíssima – palmadas no cu para para ela subirem, contando histórias de banhos de leite macabros em Beverly Hills, decapitações de galinhas feitas só pelo receio de não agradar ao cliente… Acabar a noite a tomar o pequeno-almoço num diner qualquer, sabendo que foram o álcool e os cigarros e as palmadas e os favores oferecidos a esta gente que tornaram as ruas seguras por mais um dia… Sem quotas de encarceramentos, sem vistos nas folhas de apreensão, sem adições no registo criminal. Como manda aquele bichinho na cabeça que tanto importuna ao cair do dia, no breu das várias noites possíveis (das noites do caçador às noites na alma) a perguntar que parte fizemos nós nesta coisa redonda a que chamamos mundo.
É o mundo de tanta película que rodou, projectou e disparou, serena à volta das mesmas paisagens. De Electra Glide in Blue (O Polícia da Estrada, 1973), de Fort Apache, the Bronx (1981), de Colors (Los Angeles a Ferro e Fogo, 1988) e do tão próximo de nós – só 6 anos nos separam dele -, We Own the Night (Nós Controlamos a Noite, 2007). As mesmas dúvidas, as mesmas tristezas, os mesmos azares, a mesma solidão, as mesmas viagens ao fundo da alma, as confissões e monólogos regados a whisky que antes nem às paredes se confessavam. Tudo para “hold the line” e “in the line of duty”.
E entre as tantas prodigiosas sequências deste prodigioso filme, falo agora só de uma, deixando de fora a do hospital, quando Fehler é atingido no estômago e dispara as suas confissões ao amigo Kilvinski, que fora até ali pai e é agora irmão; deixando de fora a do tiro involuntário do polícia ainda verde que se desfaz em pranto à frente do decano parceiro de patrulha que lhe diz que teria feito o mesmo na mesma situação; deixando de fora a da perseguição nos túneis que apagam toda a luz e toda a coragem; e que dizer dos encontros lindíssimos de Fehler com a enfermeira e que abrem caminho para o terrível “Can’t happen now, I was beginning to know…” e para o “Santa Maria, madre de Dios, ruega señora, ruega por nosotros. Ahora y en la hora de la nuestra muerte. Amén” do Sergio de Erik Estrada, que é protagonista de outras tantas prodigiosas sequências?
Falo então do plano extraordinário sobre George C. Scott que, pela sua discrição, nem se julga à primeira vista de tanta duração. Conta ele a história de um homem que telefona todos os dias à esquadra de polícia porque está alguém no alpendre. Conta que chegava lá e não via ninguém, mas confortava o homem fingindo que tinha expulsado esse alguém, até ao homem telefonar no dia seguinte e Scott fazer o mesmo que tinha feito no dia anterior. Que será feito desse homem, pergunta ele a Fehler. E a câmara aproxima-se, aproxima-se e sondam-nos os abutres fantasmas dos “dont’s” e das leis da conversa no bar de strip e da filha e da neta de Kilvinski e do polícia reformado que também tem que visitar a esquadra e arranjar um emprego para não ver ninguém no alpendre de sua casa. Volta-se aos grandes monólogos de grandes filmes, num só plano na cara de grandes actores que contam histórias de fins do mundo e nos contaminam só com o seu olhar e com a sua voz… Presos nos olhares e nas vozes, não reparamos em absoluto se há cortes ou se se passa o quê ou o que quer que seja a não ser aquele pesar na voz e aquele arrependimento de se ter testemunhado novos tempos a destronar outros tempos, novos tempos se calhar nem piores nem melhores, mas em que não há lugar…
E, “well, here’s to the New Centurions. Let’s hope they do a better job than the old ones.”