Calem-se! Calem-se! Calem-se! O À pala de Walsh precisa da vossa atenção. Um dos nossos actores favoritos morreu, matou-se, calou-se para sempre. Mas a sua pulsão destrutiva não nos apagará a memória, nem muito menos os filmes e as personagens que ele, com o seu peso, a sua gravitas e carisma, nos deixou. Estamos tristes e zangados: Philip Seymour Hoffman levou-nos Philip Seymour Hoffman. Go fuck yourself, dear Hoffman!
No primeiro plano Seymour Hoffman fode, pouco depois fala do charro que fumou, mais tarde vemo-lo a beber, a fumar incontáveis cigarros, a snifar cocaína, a injectar-se de heroína, a matar e a morrer. Ver Before the Devil Knows You’re Dead (Antes que o Diabo Saiba que Morreste, 2007) não é uma experiência agradável, muito menos é revê-lo à luz destes dias de luto em que cada palavra que Hoffman diz, cada gesto que faz, cada olhar ou berro que lança são ainda mais (se isso é sequer possível) perfurantes que da primeira vez. Acima de tudo o que dói é perceber que talvez fosse mesmo assim, nessa vertigem constante, que o actor se conseguia superar. Entristece percebermos que para nosso deleite o homem se destruía aos poucos, que para ser o melhor actor vivo teve que o deixar de ser.
Há, no entanto, uma finura no Andy de Hoffman, neste filme, que é a todos os modos desarmante, um exercício de espelhos – uma construção de fachadas – onde sentimos sempre esse jogo. Aquele Andy é diferente para cada um dos outros personagens, e não deixa de ser uno. Hoffman constrói aqui um homem que está constantemente em personagem, sem que nos pareça nunca personagem, mas sempre homem. E por isso tanto o vemos doce e risonho, deprimido e revoltado, agressivo e assassino, ou ainda frágil e triste; nesse leque de interpretações que nos fomos habituando a conhecer-lhe – todas num só homem, sem nunca sentirmos um esforço, como se assim lhe fosse natural. Feito extraordinário, para dizer o mínimo. Mas talvez fosse inevitável, se calhar era mesmo assim que tinha que ser, extraordinário. E com Lumet à direcção – no seu derradeiro filme – não podia ser doutra forma.
May you be in heaven half an hour before the devil knows you’re dead.
Ricardo Vieira Lisboa
Nestes dias de luto a tentação mais imediata seria lembrar aqui as personagens que, na minha cabeça, mais próximo estariam do homem que terá sido Philip Seymour Hoffman. A imagem do enfermeiro de Magnolia (Magnólia, 1999) seria a primeira a vir-me ao espírito, mas a tentação de pensar que há “um” verdadeiro Philip Seymour Hoffman não só é desmentida pela sua obra como, tem-se lido nestes dias, pela sua vida. Hoffman era um homem bom, mas a compulsão de um vício reincidente acabou por ditar o seu fim. O actor terá nos últimos tempos prenunciado junto de amigos a sua própria morte. Hoffman acabou vencido pela sua pulsão destrutiva. O pormenor sórdido das 50 doses de heroína, que foram encontradas pela polícia no seu apartamento, sinaliza a presença excessiva do adereço que estava – como sempre esteve… – ali para lhe roubar a vida, 50 vezes se fosse possível.
A via escolhida por Hoffman, a via que acabou por demasiado cedo ter arrancado à vida este grande actor, leva-me, portanto, a escolher “um outro rosto”, bem mais monstruoso. Podemos encontrá-lo em filmes como Happiness (Felicidade, 1998), Mission: Impossible III (Missão Impossível 3, 2006), Before the Devil Knows You’re Dead e, antes de mais ou acima de tudo, Punch-Drunk Love (Embriagado de Amor, 2002). Aqui Hoffman põe o “seu pior fato”, o empresário mafioso do mundo das chamadas eróticas que manda calar o bico à personagem de Adam Sandler. “Shut up! Shut! Shut! Shut! Shut up!” – a ira tem a força e a energia de um corredor de maratona, isto apesar do seu aspecto rechonchudo e kinky. Hoffman era um actor que sabia como explodir e explodir com estilo. Paul Thomas Anderson soube explorar melhor do que ninguém este poço de energia – em certa medida, PTA foi quem mais contribuiu para a invenção deste enorme actor – até porque o seu cinema é isso também: o movimento é constante, travellings cruzados, a música que martela, os actores que não param, tudo rebenta em energia numa simples conversa de telefone. O ritmo e as palavras ou o ritmo das palavras, a expressão do rosto ruborizado de tanto destilar raiva vão conduzindo em Hoffman, como num circuito eléctrico, as palavras dessa memorável, quase épica, chamada telefónica que muito simplesmente termina assim: “YOU’RE DEAD!”.
Luís Mendonça
Philip Seymour Hoffman era “bigger than movies”. Pelo menos, era maior do que os filmes em que entrava. Por pior ou melhor que fosse o filme, fosse o papel pequeno ou grande, a personagem mais acanhada ou expansiva, a presença do actor norte-americano era indesmentível, sendo quase impossível dissociá-la da própria obra. Não era pelo físico corpulento (que quebrava as normas de beleza vigentes e fazia recordar os grandes secundários de outrora), antes pela enorme persona que ninguém conseguiria ignorar – mesmo em papéis secundaríssimos, Seymour Hoffman era sempre o protagonista das cenas em que entrava (portanto, e contrariando a sua fisionomia, era muito mais “star” do que “character actor”). Quem viu 25th Hour (A Última Hora, 2002), lembra-se imediatamente do professor gorducho e desleixado embeiçado por uma aluna adolescente; quem viu Charlie Wilson’s War (Jogos de Poder, 2007), recorda-se sobretudo do tagarela agente da CIA que dominava a situação com dúzia e meia de fucks; quem viu The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Mr. Ripley, 1999), ainda hoje se irrita com a arrogância e a afectação de Freddie Miles, quem viu Almost Famous (Quase Famosos, 2000), apaixonou-se por um crítico (feito complicadíssimo), quem viu Synedoche, New York (Sinédoque, Nova Iorque, 2008), conheceu com ele o sentido da vida… e por aí em diante. Nem a capacidade de interpretar personalidades muito diferentes umas das outras (pegue-se na pequena amostra que deixei atrás e chame-se-lhe camaleónico) desmente essa ideia: o espectador jamais esquecia que tinha pela frente Philip Seymour Hoffman.
No entanto, a dimensão de Seymour Hoffman não pesava nos filmes em que entrava, nunca os afundava (como um Brando ou um Al Pacino), muito pelo contrário. Em 2004, um ano antes de Philip Seymour Hoffman ganhar o Óscar de Melhor Actor pela sua interpretação de Truman Capote (num filme um tanto académico e aborrecido), fez de sidekick de Ben Stiller numa comédia romântica em que este contracenava com Jennifer Aniston. E fez de um filme domingueiro e pachorrento (mas não desengraçado) uma montra para a sua personagem obnóxia e patética, na qual pôde dar largas à grosseria que costuma associar-se a um tipo de humor menos inteligente. Seymour Hoffman nunca se importou se ficava bem ou mal na fotografia (e, talvez por isso, ficasse sempre bem nos filmes), nem de sujar as mãos e manchar a reputação em obras “menores”. Nesse filme, era um antigo actor juvenil, completamente esquecido pelo público, que jamais o reconheceria naquelas banhas, naquela brilhantina no cabelo e nas fatiotas à Miami Vice (a série de televisão) da idade adulta. Quem viu Along Came Polly (Romance Arriscado, 2004), sabe bem que era incapaz de acertar um cesto (apesar de se gabar muito – Let it rain!) e que inventou o verbo to shart (explicação neste vídeo).
João Lameira
Eu tinha feito dezanove anos há uns meses e foi enquanto rapaz empertigado e com vontade de alargar as vistas que fui ao já saudoso Cinema King ver Happiness (Felicidade, 1998) de Todd Solondz. Estranha, mas tão apelativa, era aquela visão de uma felicidade que se tacteava a medo por entre tentativas de suicídio, violações, pedofilia ou chamadas obscenas. No seio da obscenidade e do desespero havia um homem barrigudo, louro, óculos grandões e quadrados que, em pleno emprego, pegava no telefone e “ejaculava” para quem estava do lado de lá da linha, na sua voz rouca e grave: “I know who you are and you are nothing. You think you are fucking something but you are nothing. You are a zero, you are a black hole and I’m gonna fuck you so bad that you’ll be cumming out of your ears.” E desligava o telefone a ventilar, nervosíssimo. E nós sabíamos que isto era um tormento para ele, não para ela.
Esse telefonema àquela mulher que sonhava em saber o que era a violação para efeitos de realismo literário é a primeira memória que tenho de Philip Seymour Hoffman, mesmo antes de Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997) ou The Big Lebowski (O Grande Leboswki, 1998). Não sei bem o porquê (talvez nunca se saiba nestes casos), mas a partir daqui passou a ser um actor que era preciso seguir. Agora que se sabe que morreu aos 46 anos, overdose e seringa no braço, esse rasto de ícone rebelde, torna apetecível fazer essa oposição entre vida e arte. Talvez seja mesmo que só às custas de um tormento constante e aguda capacidade de auto-observação, fosse possível aceder à “grande arte” (seja lá o que isso seja) de se ser outro, sendo ele próprio. Nessa fusão havia momentos de extrema candura em que era o next guy carregadinho de aflições, desses seres humanos ocupados a existir e a lutar entre a dependência e a disciplina, entre a inibição e a liberdade. Essa luta, que é a nossa, Hoffman ilustrava-a como poucos.
Carlos Natálio