O festival começou no sábado com a ante-estreia de Night Moves (2013), o novo filme de Kelly Reichardt, que arrisca colocar a cena principal do filme a meio – uma cena de incrível tensão sem diálogos, como homenagem ao cinema mudo e aos seus olhares, que lembra a sequência do assalto em Du rififi chez les hommes (Rififi, 1955) – efectivamente dividindo o filme em dois, numa manobra que é recompensada. Se a primeira parte parece um thriller de aventuras, um filme de não-acção onde a abordagem minimalista de Reichardt e a economia de planos ajudam a manter a tensão, a segunda parte é um não menos envolvente thriller psicológico, em que o filme entra na cabeça da sua personagem principal, regressando à subjectividade que Reichardt tão bem explorou antes. Num filme com uma linha narrativa mais definida que nas obras anteriores, a informação é mesmo assim escassa, o que provoca que voltemos sempre atrás, para encontrar uma justificação para o que vai acontecendo no presente, para que a cada passo tudo se acumule como inevitável. E à medida que no escuro da noite o espaço vai diminuindo, não raras vezes acabamos por desmentir conclusões dadas como certas.
Terça-feira foi o dia de inauguração da Competição Nacional no festival. First Light (2014) de Mariana Gaivão é um pequeno retrato de intimidade sobre um nascer de dia aos olhos de um rapaz. Filme a preto e branco e sem diálogos, vive dos sons e sombras dentro de uma casa, para criar uma atmosfera hipnotizante em pouco tempo, embalando o espectador na duração precisa de cada plano. De fotografia exemplar, evoca uma melancolia contemplativa e acaba no exterior com um plano que surge como o rugir de um novo dia.
Zeroville (2013) é o segundo filme e produção em nome próprio de Sérgio Ribeiro. Fortemente inspirado por Alphaville (1965) de Jean-Luc Godard, utiliza sequências, imagens e diálogos desse filme para criar uma história à volta desses elementos. A evocação do filme de Godard resulta numa estrutura desorganizada, anárquica e quase caótica, onde fica perdida qualquer intenção de homenagem. Sérgio Ribeiro repete a utilização de imagens crípticas do seu primeiro filme mas, se aí havia pelo menos a alusão aos códigos do cinema, aqui, na colagem ao original como nas sequências em que as personagens permanecem imóveis e mudas enquanto ouvimos diálogos de Alphaville, revela apenas falta de claridade.
Hospedaria (2014) de Pedro Neves é um documentário filmado num antigo albergue no centro do Porto, entretanto abandonando, no qual o realizador tentou registar o que ficou para trás. Através de imagens paradas, como fotografias com som, vemos os objectos abandonados como despojos de outras vidas, lembranças de vidas ausentes. Mas é também um documentário ficcionado, já que Pedro Neves, além de filmar o espaço em branco, acrescenta uma banda sonora de sons quotidianos e guturais, para uma reconstituição imaginada. Na falta de sincronia entre um espaço deserto e os sons que o ocupam, não vemos as pessoas, mas sentimos a sua presença, como fantasmas.
Le Boudin (2014) de Salomé Lamas é um cativante exercício visual, onde também não há sempre sincronia entre o som e as imagens, mas que aqui resulta de uma meditação sobre a identidade e a representação da memória. Filme de apenas dois momentos, que vão alternando entre si, em que no primeiro uma voz gasta conta a sua história sobre um fundo negro e, no segundo, um rapaz sentado numa cadeira conta a história do primeiro homem como a sua, ora em discurso directo, ora como pensamentos filmados sobre o seu rosto fechado. Através deste método simples, as palavras ganham proeminência e as recordações do homem que entrou na Legião Francesa com a idade do rapaz do segundo momento e que mais tarde se tornou parte activa de massacres étnicos como mercenário, ecoam como a voz de um fantasma.
Na secção Panorama Nacional foi possível assistir também a várias obras de realizadores portugueses. Entre eles, Três semanas em Dezembro (2013), de Laura Gonçalves, primeiro filme, é uma pequena curta de animação, mas comovente em pouco tempo. É uma animação de traço simples, que está longe de ser um filme simplista, pela evocação nostálgica de um imaginário detalhado, de um Natal passado em família com pais e avós. Quase sempre monocromático, utiliza gravações de som real dessa festa em família para dar cor ao filme, através das várias personagens que vão preenchendo este filme de memórias agridoces.
A Caça-Revoluções (2013) de Margarida Rego, curta-metragem exibida na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma animação experimental quase abstracta, que manipula fotografias de forma a encontrar uma narrativa dentro das mesmas. Partindo de imagens da manifestação do 1º de Maio em 1974, vários movimentos sobre fotografias ilustram gestos que procuram pistas sobre o passado de um país a partir de um momento específico. Entre gravações de som e música, um monólogo interior em voice-over sobre as imagens paradas domina o filme, dirigindo a atenção do espectador, sem espaço para procurar a sua própria interpretação. Mas é o texto, ao reduzir a história ao encontro entre duas pessoas, como analogia para o combate entre o passado e o presente, que personaliza a acção e atribui-lhe uma visão distinta, que procura nos fragmentos do passado novas ideias de cinema.
Panorama (2013) de Francisco Ferreira é uma curta-metragem realizada no âmbito do projecto Ruptura Silenciosa, uma mostra de filmes que procura ligar a arquitectura ao cinema. Fora do formato típico quase documental de filmes sobre arquitectura, procura criar uma narrativa sobre os edifícios que apresenta. Filmado em locais imponentes do Porto como as torres do bairro Aleixo, o edifício do Jornal de Notícias e o Hotel Dom Henrique, revela uma preocupação de Francisco Ferreira em estabelecer as linhas de uma geografia visual, quer dentro do filme, quer dentro dos próprios planos, como nos vários movimentos laterais da câmara. Um retrato melancólico das paisagens e dos sons da cidade, demonstra um olhar seguro e metódico na construção de planos elaborados, mas que no final é desarmado pela conclusão, uma punchline que esvazia a complexidade que vem antes.
Em As Rosas Brancas (2013) de Diogo Costa Amarante, os primeiros segundos são sintomáticos do resto do filme, com a sua cacofonia de imagens e sons díspares. Entre sequências de números de dança em que a velocidade da imagem e do som é manipulada e planos de paisagens rurais debaixo de um manto de neve, a sucessão de planos é como que uma tentativa de um filme sensorial, mas sem a poesia. Se consegue criar imagens que contêm valor intrínseco único, capazes de impressionar, não parece saber o que fazer com essas imagens, sem uma ideia consistente para resolver o enigma de uma narrativa dispersa.
Bicicleta (2014) de Luís Vieira Campos, com argumento de Valter Hugo Mãe, é uma adaptação do clássico do neorealismo italiano Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948) ao cenário de uma das torres do bairro do Aleixo no Porto, que começa com o som de violinos sobre imagens a preto e branco, ou seja, não esconde o dramatismo a que vem. Há aqui também um António, que precisa de uma bicicleta para manter um emprego, que surge como resposta milagrosa à situação de pobreza precária de uma família, e uma tentativa de penhorar um bem valioso para conseguir a tal bicicleta, mas as semelhanças acabam aqui. Se é interessante considerar o cenário de degradação do prédio como uma quase-ruína, como análoga à situação de pobreza extrema vivida em Itália no pós-guerra, a preocupação de um retrato de pendor realista desaparece aos poucos. O lado quase documental do filme, ao mostrar os cenários e limitações da vida neste prédio, como uma comunidade fechada sobre si própria, onde todos se conhecem e tudo se descobre, é desmontado pelo argumento investido em mistificar a história dos seus habitantes. A preocupação em retratar os habitantes na honra da sua pobreza acaba por criar fábulas a partir das personagens, através das suas acções e especialmente do seu diálogo, muitas vezes mediante um lirismo e analogias que soam artificiais. Longe do retrato ambíguo e dos dilemas morais do original italiano, os momentos mais interessantes parecem acontecer fora de campo, quer com os habitantes que são apenas figurantes, quer com a história da bicicleta que, no melhor plano do filme, uma repetição de um plano inicial, desaparece, aludindo a uma história que passa ao lado da conclusão do filme.
Boa Noite, Cinderela (2014) de Carlos Conceição, exibido em competição na Semana da Crítica de Cannes, é outro filme que parece acreditar mais no valor intrínseco das imagens para contar uma história, com a diferença que aqui existe mesmo uma narrativa. O filme, que começa com uma citação de Karl Marx sobre a noção de possessão, é uma re-imaginação da história de Cinderela adaptado a uma corte portuguesa, mas é o próprio filme que parece decidido a possuir um imaginário clássico para o subverter, tal é o fetiche pelo fetiche retratado no filme. Há mais uma vez imagens que, isoladas de tudo o resto, têm valor, especialmente pela utilização da luz no cenário do Palácio da Pena e os seus bosques, só que são imagens que acabam por revelar-se como um oásis num deserto. Desde cedo que o filme caminha para tornar-se uma simples preparação para a resolução de uma piada, pouco subtil na forma como desenvolve a sua história, quer na repetição de planos, quer nos diálogos de simbolismo exagerado.
Finalmente, Coro dos Amantes (2014) de Tiago Guedes é, tal como o seu início, um filme vibrante, surpreendente a cada passo. A partir de uma peça de teatro do mesmo autor, conta-nos três momentos interligados na vida de um casal, ao mesmo tempo que divide o ecrã num split-screen, artifício que serve aqui para intensificar a tensão dramática. As vozes das duas personagens, que surgem fragmentadas dentro da sua parte do ecrã, ora como falas, ora como parte de um monólogo interior, ancoradas num texto assombroso, acompanham o espectador numa montanha russa emocional e inesquecível.