De título completo Broken Blossoms or the Yellow Man and the Girl (O Lírio Quebrado, 1919), o filme de D. W. Griffith passado na zona londrina de Limehouse é, possivelmente, dos filmes mais tristes alguma vez levados ao grande ecrã. Tão imensamente triste que quase um século depois de ter sido feito continua a comover e a chocar. Pelo retrato bruto da violência doméstica e pela delicadeza de uma história de amizade-amor entre dois outsiders: um comerciante chinês longe do seu país e uma jovem inglesa maltratada na sua própria casa. Para rever na Cinemateca, dia 27, no âmbito do ciclo “D. W. Griffith – No Centenário de The Birth of a Nation”.
Não há muitos espaços na Londres de Broken Blossoms (recriada em estúdio), que quase parece uma pequena peça de câmara depois dos gigantescos Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) e Intolerance (Intolerância, 1916), obras incontornáveis de Griffith. Um quarto exíguo onde os tormentos de Lucy (Lillian Gish) ocorrem, um ringue de boxe onde o seu pai pratica uma variante do que lhe faz em casa, a loja do sereno homem da China, Cheng Huan (Richard Barthelmess), um pouco da rua. Espaços mais amplos só nas cenas ao início que se passam numa China que parece saída de uma curta de promoção turística de um jornal de actualidades, onde todos sorriem, ao contrário de Londres onde todos parecem agonizar. A atmosfera do filme é pois uma de limitação, de devastação (estava uma guerra mundial ainda em curso e uma das cenas inclui notícias sobre ela) e de medo (veja-se a cena aterradora em que Lucy se protege da fúria do pai dentro de um armário). Embora certos acontecimentos se desenrolem de dia, Broken Blossoms é sobretudo um filme nocturno, como se estivesse envolto nas nuvens cinzentas inglesas e no mundo de sombras do então distrito portuário de Limehouse (onde se situava a Chinatown londrina).
Broken Blossoms é várias vezes considerada a primeira história de amor inter-racial do cinema. De facto, é interessante pensar o quão provocador o filme possa ter parecido à data, em que casamentos mistos eram ilegais nos EUA e em que, no cinema, a imagem prevalecente dos asiáticos, em geral, e dos chineses, em particular, era uma extremamente negativa (a tal fobia do “perigo amarelo” que marcou a cultura popular anglo-saxónica durante décadas). Sim, a figura de Cheng Huan – sabemos o seu nome pela janela da loja já que os intertítulos apenas se referem a ele como “Yellow Man”, ou os ainda piores “Chink” (o filme adapta um conto de Thomas Burke com o sugestivo título “The Chink and the Girl”) ou, na versão “ternurenta” de Lucy, “Chinky” – é interpretada por um ocidental mascarado com o traço dominante de passar o filme de olhos semicerrados para “parecer chinês” (mesmo que Barthelmess seja um óptimo actor). Sim, os clichés sobre a China e os chineses são dominantes no filme, do vício do ópio às vestes elaboradas. E sim, aqui se insiste na pureza não consumada daquele amor, onde até os beijos são caminhos sem destino, nunca selados. No entanto, central à obra é a possibilidade de entendimento daqueles dois seres excluídos do mundo, independentemente das suas origens ou até da sua idade (um elemento um pouco mais desconcertante, pois embora Gish tivesse 23 anos quando Broken Blossoms foi feito a sua Lucy é descrita como uma adolescente). Isto além de outros pequenos elementos curiosos, como o retrato extremamente positivo do Budismo que é feito no filme.
Se a história de amor de Broken Blossoms, de beleza frágil qual delicada peça de porcelana, é um dos elementos que tornam o filme impressionante pela mensagem de tolerância que deixa, o retrato e a condenação da violência, sobretudo da violência contra as mulheres, contribuem para que esta seja uma obra desconcertante de ver ainda hoje, onde, infelizmente, situações análogas às representadas no filme ainda não são coisa do passado. As cenas de violência, física e psicológica, a que Lucy é sujeita no interior da casa onde prevalece um clima de terror eximiamente construído por realizador e actores, perturbam mesmo no século XXI. Mais poderoso é talvez um gesto que simboliza toda a brutalidade a que Lucy está sujeita: o sorriso fingido que tem de mostrar a pedido do pai abusador e que ela força a si própria com os dedos (para o bondoso Cheng Huan o sorriso é espontâneo). Lucy é retratada como uma vítima do pai e um objecto de desejo impossível por parte do vizinho chinês, que a observa à distância e quando a tem, literalmente, na sua cama encara-a com a mesma passividade que a boneca que lhe oferece.
Naquele lugar de escuridão cerrada, Lucy surge como um oásis de luz (e de brancura, a sua figura o óbvio exemplo para quem a queira analisar como imagem de “whiteness”). Lucy permanecerá inocente até ao fim, só a morte sacrificial a poupando ao futuro de exploração masculina anunciada por outras figuras femininas que surgem no filme. E só num outro mundo Cheng a poderá, finalmente, manter perante as injustiças do mundo, impossíveis de remediar por qualquer um deles. Lucy e Cheng, dois seres insignificantes que Griffith eleva neste poema visual triste a figuras maiores de cinema.