É urgente descobrir o cinema de Marco Dutra e Juliana Rojas. Esta dupla de cineastas de São Paulo tem criado, desde a sua curta de estreia, O Lençol Branco (2004), um dos corpus mais singulares do cinema de terror recente. A sua matéria-prima são as ansiedades e angústias da sociedade capitalista e as suas ferramentas pertencem à linguagem do terror. Um terror que se agarra à pele das personagens e à própria pele do filme, como se vê, de uma maneira expressiva, na curta-metragem Um Ramo (2007) e na longa-metragem que lhes deu projecção internacional, graças também à sua passagem em Cannes na secção Un Certain Regard, Trabalhar Cansa (2011). O mais recente filme de Marco Dutra, Quando Eu Era Vivo (2014), poderá ser visto amanhã, dia 13, às 18h30, na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge (bilhetes À pala aqui). O contexto de exibição é o do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa. O contexto da nossa entrevista é a obra, passada e futura, deste jovem cineasta que se propõe exorcizar os fantasmas da classe média brasileira e documentar o permanente estado de crise que aflige as sociedades capitalistas. Para a realização desta entrevista, feita por Skype, foi imprescindível o apoio prestado pelo crítico Marcelo Miranda.
A primeira questão que queria colocar, que tive oportunidade de aflorar na conversa com Kleber Mendonça Filho, prende-se com a estranheza desta ideia de um cinema de terror sócio-político passado no Brasil, país que tem uma imagem, talvez estereotípica, de lugar solarengo, luminoso, caloroso, aberto. O cinema do Marco é muito remetido para os interiores, é quase claustrofóbico, há sempre um cerco qualquer que vai apertando. Como é que situa este contraste? É uma “reacção a”?
Para mim, o horror tem muito a ver com repressão, com o que se reprime e se transforma, por isso, num medo. Quando em criança via um filme de terror, e aquilo me fascinava, parecia que existia algo de perverso e proibido naquele retrato do mundo. Um morto-vivo comendo o cérebro de outra pessoa ou uma mulher grávida do demónio. Parecia-me que aquilo tudo podia talvez acontecer na sociedade. Talvez só não acontecia porque as pessoas não falavam sobre isso. Era uma sensação peculiar que tinha de criança: quando via uma obra fantástica, um filme de terror, parecia que estava a descobrir uma verdade secreta da humanidade, alguma coisa sobre a qual as pessoas não podiam falar. Tem a ver com uma ideia de repressão. Se tinha uma repressão sexual ou um tabu, conseguia extravasar isso na minha relação com os filmes de terror. Isso desde muito jovem.
Quando comecei a crescer e conheci a Juliana na faculdade, e começámos a ficar mais atentos ao que era o Brasil, aos problemas do Brasil – e nós os dois pertencemos à classe média, que no Brasil é uma classe muito conservadora e que, portanto, reprime muita coisa debaixo desse conservadorismo -, começou-nos a parecer que isso era um campo perfeito para o horror. Acho que o Kleber Mendonça concordaria com isso, porque o universo dele também é o da classe média. A impressão que tenho é que há muita coisa reprimida, há muitas camadas de medo. Na vida da minha família na verdade.
É curioso falar disso. Há duas imagens muito fortes em dois filmes seus. Desde logo, no Um Ramo há qualquer coisa de estranho e insondável que brota da pele. E depois temos as paredes e infiltrações no supermercado em Trabalhar Cansa. É um cinema que trabalha muito esta questão da derme.
Há um crítico francês chamado Jean-Louis Comolli, que escreveu um texto que dizia que o horror é como um cadáver que nós queremos que não venha à tona e ele insiste em vir à tona. Tanto no Um Ramo como no Trabalhar Cansa essa ideia aparece.
No Um Ramo uma mulher de classe média, que vive uma vida aparentemente organizada num apartamento em São Paulo, de repente, começa a sofrer uma mutação que ela não consegue controlar e ela não sabe porque acontece. Conversando com a Juliana, concluímos que isto tinha a ver com a ideia de fertilidade. Não víamos necessariamente o ramo como uma coisa má. Os vegetais, os galhos, as folhas não eram maus. O mau era ela tentar cortar. Ela feria-se, sangrava quando tentava arrancar. No final da curta, quando ela está toda cortada, é porque ela está a a raspar, a violentar-se com uma navalha para arrancar o que está a brotar no corpo dela, o que para nós era uma coisa fértil. Ela estava num processo auto-destrutivo.
No Trabalhar Cansa há uma coisa que aquele espaço do supermercado diz à proprietária; ele diz-lhe que tem um passado, uma história. Ela tenta pintar, esconder, fazer daquele espaço o espaço de trabalho dela, mas o espaço diz que ele tem algo anterior a ela. Como estávamos a falar de relações do trabalho, do capitalismo, para nós, isso era uma maneira de lidarmos com essa ideia: o mercado físico ou o mercado também simbólico é uma coisa que nos é muito anterior. Ela não vai poder abafar essa história, com a qual a nova proprietária vai ter de enfrentar. A certa altura ela vai explodir. E explode, de facto, em cima dela. A parede cai em cima dela. Nós queríamo-la soterrada no final do Trabalhar Cansa.

O Marco trabalha um certo mal-estar social que é muito contemporâneo, que nos diz muito, por isso, os seus filmes são estranhos mas também não são, isto é, acabam por se revelar muito próximos de nós. Ao mesmo tempo, trabalha esse mal-estar social a partir do corpo. Perguntava se não procura encontrar no corpo os sinais de uma certa erosão provocada pelas exigências da sociedade capitalista. Isto é um programa para o seu cinema, foi pensado ou, como a planta que brota em Um Ramo, foi uma coisa “natural”?
Tenho a sensação que isso foi um processo natural, partindo dos temas e actores com quem estávamos a trabalhar. A construção das personagens nos filmes passa muito pelos temas. A sensação com que fico é que vamos ficando mais conscientes a cada novo filme. Quando estávamos na faculdade e fizemos O Lençol Branco éramos intuitivos. Quando fazemos o terceiro e quarto filmes vemos que os temas insistem em voltar. O filme em que acho que consegui trabalhar essa questão da transformação física um pouco mais conscientemente foi justamente Quando Eu Era Vivo. Nesse filme temos uma personagem que está possuída pela mãe. Sem se transformar de facto na mãe, ele teria de dar sinais na construção da postura de que ele estaria a ser corroído e possuído pela memória. Não queria tornar claro se era um espírito ou uma memória. O mais importante foi começar no corpo – na postura – e contaminar a casa. Começava no actor, no figurino e depois atingia a direcção de arte (da responsabilidade de Luana Demange), a própria fotografia do filme. Não sei se funciona esteticamente, mas foi o que tentámos construir no filme; essa progressão de contágio físico da estética do filme.
Desse ponto de vista, é importante ir trabalhando com um núcleo de actores mais ou menos fixo? A presença da actriz Helena Albergaria é muito forte nestes filmes que temos falado, sobretudo Um Ramo e Trabalhar Cansa.
É muito bom trabalhar com actores que embarcam da mesma forma que você na brincadeira. A nossa relação com a Helena é muito antiga. Eu conheci-a em 2000. Fez um exercício meu chamado Espera (2003), que é uma curta da faculdade que está no YouTube. Dirigi-a aí pela primeira vez. Uma coisa que me impressionou no contacto com ela é que esse exercício exigia uma cena de choro. Era uma cena difícil porque era um plano-sequência muito longo e ela tinha de chorar no final. Para mim, se ela não chorasse no final o plano não cumpriria o sentido que ele tinha de cumprir. E foi muito engraçado, porque só tínhamos uma lata de negativo, então só dava para fazermos dois takes. Nos dois elas chorou exactamente no momento em que ela precisava de chorar. Ela tinha um controlo técnico muito preciso sobre o seu corpo. Não tinha nenhuma necessidade de atingir uma verdade psíquica qualquer ou uma fantasia de que tinha de actuar como se não estivesse a actuar. É o tipo de actriz que eu sonhava um dia ter. Os meus métodos são muito racionais, intelectuais. Isso é bom às vezes, outras vezes não, às vezes é uma deficiência. Mas é como eu trabalho. Para mim era muito prazeroso conversar com a Helena sobre os temas do filme e transformar isso em algo físico, numa lágrima, num gesto com as mãos. No Quando Eu Era Vivo trabalhei com ela o gesto da mão, que é quase uma deformidade. É uma mão como se fosse de bruxa, como se tivesse um poder magnético. Tentámos ver que tipo de gesto com as mãos ela tinha de fazer para possuir o filho e como é que ele [Marat Descartes] ia processar os gestos da Helena. Foi um processo divertido de fazer com os dois, especialmente porque eles já se conheciam. Eles eram o casal de Um Ramo e Trabalhar Cansa. Aqui são mãe e filho.
Há uma continuidade nos filmes que acho que contribui para esse adensar da presença dos actores nos filmes. Quando começo a ver o Quando Eu Era Vivo há uma anterioridade qualquer. Pensou deste modo?
Não é consciente no sentido de “vou trabalhar sempre com os mesmos actores, porque é um grupo de trabalho com o qual vou trabalhar variações desse papel…”. Não é isso. Não planeamos isso. Quando pensamos no elenco vemos que há alguma coisa em nós que nos conduz para estes actores com quem trabalhamos. Há duas coisas. Uma é o prazer que temos em trabalhar com eles, porque são pessoas muito próximas, que entendem as nossas vontades e que, portanto, se transformam em bons parceiros. A outra coisa, mais inconsciente, é que não é que voltamos sempre ao mesmo actor, mas, sim, que voltamos sempre à questão da perturbação da experiência doméstica da classe média. O motivo pelo qual voltamos para isso sempre é porque essa é a nossa vida, minha e da Juliana. Eu nasci em São Paulo. Ela em Campinas mas mudou-se para São Paulo aos 18 anos. É a nossa fonte. Nós voltamos naturalmente para beber desta água. Então, de certa forma, é sempre o mesmo ambiente: nos três filmes, é um ambiente de classe média em São Paulo de uma família. O Trabalhar Cansa tem o universo do supermercado, mas também tem do apartamento da família de classe média. Tenho quase a sensação de que é sempre a mesma família. Que é a nossa família.

Voltando um pouco às folhinhas verdes de Um Ramo e à questão do mercado, neste caso, do mercado de trabalho. Talvez por vingar muito cá esta ideia do Brasil como a Terra Prometida ou o país do futuro, foi muito inesperado para mim encontrar em Trabalhar Cansa um reflexo tão perfeito do que é a nossa (portuguesa, europeia) realidade quotidiana. Uma realidade em estado de crise permanente e acossada por temas como o desemprego, a frustração, a apatia e a depressão.
Nós ouvímos uma crítica aqui no Brasil, quando saiu Trabalhar Cansa, que perguntava: “Mas porque é que vocês fizeram este filme tão fora de tempo? O Brasil está com uma taxa de desemprego óptima. A economia brasileira está excelente. E esse filme parece um pouco datado, parece um pouco dos anos 90”. Isso surpreendeu-me muito, por vários motivos. Primeiro porque a Europa, evidentemente, estava numa crise absurda naquele momento. Falava-se muito disso, era um assunto muito forte. Mas impressionava-me muito a incapacidade das pessoas de entenderem que a euforia pela qual passava o Brasil naquele momento, 2010-2011, era uma euforia. Era óbvio que daí a dois ou três anos não ia ser a mesma coisa. Como não é agora. A situação está muito mais complicada. Fiquei impressionado com a insensibilidade de se perceber que falar sobre relações de trabalho não é uma coisa do zeitgeist ou do que é notícia no jornal daquela manhã. É uma coisa que é muito complicada de discutir historicamente. O que estávamos a tentar discutir é que se existe uma realidade que não muda há muito tempo no Brasil é a realidade de classes. Os conflitos de classe permanecem e, de alguma forma, movem o capitalismo e movem a sociedade. Isso era uma coisa que estávamos a tentar reflectir no Trabalhar Cansa. Usar o horror, o suspense, o fantástico e o medo para falar disso era uma forma de dizer que a realidade de classes era uma coisa perturbadora. Isso é uma coisa que eu e a Juliana sempre vimos dentro das nossas casas. Por exemplo, na minha casa sempre tive uma empregada. Sempre convivi com a realidade do que é ter uma pessoa na minha casa que é da família e não é da família ao mesmo tempo; mora na minha casa, mas é uma funcionária. Para mim, isso é muito perturbador e interessante para discutir através do género do terror.
Acho que o filme ter sido tão recebido na Europa, em Cannes, depois noutros festivais, talvez tenha a ver com o facto de que isso era um tema muito forte naquela época. Eu pergunto-me: se a Europa não tivesse a passar por essa crise, será que o filme teria sido tão bem recebido? Não sei se é uma pergunta justa, porque num ano um país está em crise económica e no outro já não está. A questão é que é assim que funciona. É uma montanha-russa sempre. No Brasil, nós alternamos momentos de euforia com momentos de depressão. Momentos de euforia com momentos de depressão. Euforia e depressão. Isso é profundamente angustiante, porque é como os governos têm conseguido lidar com a coisa: estica e solta, estica e solta. É uma dinâmica com a qual nos temos habituado e que nos deixa anestesiados.
Há, de facto, uma espécie de imanência monstruosa nas nossas sociedades, que é esse estado permanente de crise. Como no seu filme Trabalhar Cansa, em que as paredes estão a apodrecer e não conseguimos encarar isso, encarar o monstro que nos rodeia. É uma monstruosidade sistémica.
É isso. É uma coisa sistémica. Falamos de tudo isso sem tentarmos fazer nenhum tipo de tese ou de tratado sobre a economia e o capitalismo, porque não somos especialistas, nunca faríamos isso bem. O que tentamos fazer é observar o que conseguimos observar na rua, na vida, na casa das pessoas e nas famílias, que é muito evidente. É só saber observar e levar isso para a dramaturgia.
Falamos de observação, realidade social e política. Em que medida sente uma certa responsabilidade em reflectir tudo isto nos seus filmes e, com isso, uma urgência em responsabilizar a linguagem do terror?
O cinema fantástico em geral tem sempre o potencial de alegoria. A alegoria é como colocar uma lupa sobre um objecto real e tentar colocá-lo de um modo que nós vamos ver uma abstracção e essa abstracção vai fazer mais sentido que a realidade. Por isso é que um filme como Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) nos consegue dizer coisas fenomenais sobre a maternidade ou um filme como The Exorcist (O Exorcista, 1973) nos consegue falar sobre relação mãe e filha e sobre a fé ou um filme como The Village (A Vila, 2004) nos fala sobre a vida em comunidade. Tenho a impressão que o fantástico nos ajuda a entender as questões humanas e sociais mais profundas. Usou o termo responsabilizar… Acho que é uma coisa muito natural, “vem com o território”. Acho quase impossível fazer um bom filme fantástico ignorando isso. Eu tinha 18 anos quando assisti a The Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch, 1999). Fiquei profundamente impressionante, ainda é um filme de que gosto muitíssimo. Não gosto tanto pela ideia de ser um falso documentário, mas por através de uma brincadeira de género eles conseguirem falar da realidade de um país onde pessoas foram enforcadas e queimadas por conta de acusações de bruxaria e loucura. Parece-me que é dos melhores filmes a abordar essa questão americana sem mostrar bruxa alguma, trabalhando só com uma neurose colectiva. Medo, pavor.
Da mesma forma, de um jeito mais sofisticado, Shyamalan consegue [captar] o mesmo tipo de neurose sem mostrar bicho ou criatura alguma. Não sei se gosta.
É um dos meus cineastas favoritos.
Amo Unbreakable (O Protegido, 2000). Numa época em que nos Estados Unidos se produz um filme de super-heróis a cada mês e há a neurose do super-herói, a necessidade do super-poder, do heroísmo, de se ser sobrehumano, nesse filme, ele coloca estas questões de modo muito crítico e relativo. Não há nenhum tipo de elogio ou forma de orgulho com o heroísmo. Interessam-me estes cineastas que se aproximam de maneira crítica do drama. Às vezes é inconsciente, não é uma coisa calculada. Mesmo em Shyamalan acho que não é 100% calculado. Ele é mais sofisticado que as pessoas que fizeram The Blair Witch Project no sentido dessa consciência, mas acho esse filme sofisticadíssimo também. John Carpenter nem preciso referir, não é? Está além. É ultra sofisticado. Um dos meus filmes favoritos é The Fog (O Nevoeiro, 1980). É o cúmulo. Uma cidade que há 100 anos afogou pessoas doentes, não sei como eles afundaram o navio de leprosos. 100 anos depois esse navio regressa.
Volta à tona.
Essa cidade cometeu um crime! E agora essa cidade vai pagar!

No seu último filme, Quando Eu Era Vivo, o seu bisturi vira-se da sociedade para a mente de uma personagem, nas suas nebulosas memórias de infância. É um filme de exorcismos, alguns deles cantados e encantados. É mais psicanalítico e menos carnal que os seus outros filmes. Concorda com isso?
Concordo, porque em Quando Eu Era Vivo a família é quase simbólica. O pai e filho não têm nome. São chamados de júnior e sénior. É quase uma função-pai e uma função-filho. Existe uma questão de colonização, de domínio da mãe sobre o filho, do filho sobre o pai, do irmão sobre o irmão mais novo. Mas é uma colonização – uso com cautela esta palavra, mas acho que se aplica – da psique e não do corpo. É um domínio da mente, da memória, que a mãe exerce sobre o filho. Houve uma tentativa minha de concretizar ao máximo este mundo das memórias através da direcção de arte e dos objectos. Queria que os objectos fossem muito fortes (o quadro, a estátua do cão, a partitura, a caixa de música, etc.). Um desses objectos, que era central, era o VHS, que trazia a memória, fisicamente ou sensorialmente, como textura. Ela vem com mais força nessa fita. É aí que o filme é mais físico, não no corpo das personagens, mas no corpo da memória.
E a presença de dois actores mediáticos e contrastantes, Antônio Fagundes e a cantora pop Sandy Leah, foi uma espécie de armadilha psíquica para o espectador-médio?
Não foi muito calculada. Antônio Fagundes era o nosso sonho, adoraríamos que fizesse o papel do sénior. Foi difícil por conta da telenovela e teatro que fazia então. A Sandy… eu queria que a Bruna fosse uma voz. Ela era uma espécie de irmã mais nova no filme que era muito construída pela voz. O enigma no filme do livro [Quando Eu Era Vivo é uma adaptação de A Arte de Produzir Efeito Sem Causa de Lourenço Mutarelli] é um texto. No filme eu quis que fosse uma música, porque queria trabalhar algo mais sensorial do que uma página de papel impressa, algo com que o espectador se pudesse relacionar mais fisicamente. A música, como eu sou músico também, foi o caminho pessoal que encontrei para trazer isso. Queria que o enigma do passado fosse essa música. A personagem da Bruna, que no livro era uma estudante de artes plásticas, torna-se, então, numa estudante de música. Queria que ela usasse a voz, para que, com a sua voz, pudesse ressuscitar a mãe. Aí comecei a flirtar com a ideia da actriz ser uma cantora ou uma cantora-actriz ou uma actriz-cantora. Numa conversa, surgiu o nome da Sandy. Foi imediata a minha conexão, porque ela tem mais ou menos a minha idade, um pouco mais nova, ela é famosa desde muito cedo. Achava que ia ser um tiro no escuro e que ela não ia aceitar. Ela actuou, mas pouco, na vida dela. Mas não neste registo do horror. Pensei que seria muito difícil. Mandámos o argumento e ela respondeu de imediato a dizer que adorava o argumento, que gostava de terror e que estava a pensar quando poderia voltar a actuar. Ela trouxe esta coisa que é a sua voz, que está na minha memória e na memória afectiva de todos os brasileiros. Ela é extremamente popular há muito tempo, desde que tem seis anos de idade, especialmente no Brasil. Ter Sandy no filme foi um luxo e um prazer muito grande.

Sei que anda ocupado com um filme novo neste momento. Uma pergunta um pouco da praxe: qual será o seu caminho no futuro?
Há várias coisas. Estou a terminar agora uma longa que filmei em Dezembro, no Uruguai. Estou curioso por saber como será esta experiência, porque é uma longa filmada em espanhol. Os actores são novos e completamente diferentes. Um deles é Leonardo Sbaraglia, actor em Relatos salvajes (Relatos Selvagens, 2014), um filme argentino. A actriz brasileira que faz de sua mulher é Carolina Dieckmann, com quem nunca tinha trabalhado. É uma actriz da televisão. Eu fui convidado para dirigir este filme com um argumento que já existia. Rodrigo Teixeira, o produtor de Quando Eu Era Vivo, tinha este argumento em mãos e achava que me podia interessar. Eu li e percebi que era uma continuidade destas questões: a violência contida no espaço doméstico. É sobre um casal que testemunha uma violência real dentro de casa e como não consegue lidar com isso, falar sobre isso depois. Está montado, estou a finalizar o som. O filme deve ficar pronto dentro de uns meses. Não tem título ainda.
Depois, tenho um filme novo com a Juliana. Chama-se As Boas Maneiras. E é um filme de lobisomens passado em São Paulo, produzido por Sara Silveira, a mesma produtora de Trabalhar Cansa. É a história da criação de uma criança lobisomem. Vai beber numa outra fonte que tem mais a ver com o conto de fadas, com o Mogli talvez. É uma longa-metragem sobre a educação, sobre a formação de uma criança, mas dentro do universo do horror, da violência. Já temos o argumento e parte do dinheiro, mas só conseguimos filmar em Janeiro de 2016. Eu e a Juliana vamos realizar.
É uma colaboração para continuar, portanto. Falava há pouco tempo com Jennifer Kent sobre o facto de estarem a aparecer cada vez mais, e melhores, realizadoras no universo do horror.
Para mim, é muito interessante isto, porque eu acho que as sensibilidades masculinas e femininas são diferentes. É importante aceitar isso: mulheres e homens não são iguais, enquanto criaturas físicas. Diferente de uma pessoa branca e uma pessoa preta que são iguais, a diferença é superficial. Homens e mulheres têm diferenças mais profundas. Para mim, estar próximo da Juliana e ela de mim é muito bom. É uma colaboração que eu considero muito boa. Queremos manter ao mesmo tempo que podemos fazer outros projectos. Nós voltamos sempre a trabalhar juntos.