As deliciosas expressões da narratologia dos académicos estadunidenses Kristin Thompson e David Bordwell descrevem Cloverfield (Nome de Código: Cloverfield, 2008) como uma technologically mediated point-of-view restricted narration que é como quem diz um filme contado a partir de uma câmara manejada por um dos personagens que só nos dá a conhecer a acção que o próprio experiencia. No que respeita ao agora estreado spin-off, 10 Cloverfield Lane (2016) de Dan Trachtenberg, poderíamos dizer que o único elemento que se preserva do original seja a tal restricted narration: isto é, o novo filme constrói-se sobre a dúvida metódica da sua protagonista que introduzida num dilema entre o enclausuramento e o apocalipse tenta escapar-se ao primeiro temendo o segundo, e nós, com ela, acompanhamos a resolução sempre agarrados à cadeira.
O trabalho de empatia entre o espectador e a protagonista é talvez o elemento mais trabalhado do filme e resulta essencialmente dum característico pendor televisivo que perpassa todo o projecto: escrito a seis mãos, este é essencialmente um filme de argumentistas que não encontra igual na realização anónima de Trachtenberg e menos ainda na imparável banda sonora de Bear McCreary que insiste em martelar todos os estados emocionais do filme, sempre em consonância escolar com o que nos é mostrado (não por acaso, compositor formado na série Battlestar Galactica e metendo um compasso em tudo o que passa pelo pequeno ecrã na última década). Em particular a abertura do filme tenta apresentar-nos o ambiente e história da personagem principal sem diálogos, apenas compondo uma série de planos que nos indicam a fuga a um relacionamento sem futuro: o resultado é uma emulação em estilo videoclip pop da mestria que é, por exemplo, a abertura de Rear Window (1954).
O que transforma este sucedâneo bem amanhado num objecto de interesse é, sem dúvidas, a interpretação de John Goodman.
Há no entanto na realização uma capacidade rara de construir tensão num ambiente fechado e circunscrito a apenas três personagens. Em boa verdade esse era já o forte de Trachtenberg na curta-metragem que lhe deu reconhecimento (e provavelmente o convite de J.J. Abrams), inspirada no popular vídeo-jogo Portal, Portal: No Escape (2011). Aliás, alguns dos primeiros momentos deste Cloverfield parecem decalcados a papel químico dos 7 minutos dessa curta: a mesma mulher encarcerada sem perceber porquê, o mesmo desejo de fuga, o mesmo trabalho sobre os mínimos da ficção-científica, a mesma resolução chica-esperta. Assim o que transforma este sucedâneo bem amanhado num objecto de interesse é, sem dúvidas, a interpretação do “sempre excelente” John Goodman que tem o dom de corporizar a escrita e realização televisivas num par de cenas em que se substancia o tão badalado character development. Uma cena em particular afirma essa duplicidade do personagem, a cena do Pai Natal: querido/moralista e fofo/perseguidor.
Se é certo que, desde o início, o projecto Cloverfield sempre se fez em modo de políptico – disse Matt Reeves à altura “The fun of this movie was that it might not have been the only movie being made that night, there might be another movie!” -, também o é que este novo tomo apenas se relaciona com o primeiro por necessidades de marketing (não fosse o título original do guião, A Cave, alterado pelos produtores e as ligações resultem essencialmente de alguma caridade interpretativa). E esse é o maior lamento que lanço: sentir que a possibilidade de se fazer um pequeno filme de série B na Hollywood de hoje é sempre capturada pela necessidade de embrulhar o produto num papel muito reluzente, porque, já se sabe, por lá tudo o que brilha é ouro, ou como o põe Bordwell, “here the B in “B-movie” stands for Blockbuster“.
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