Cada um sabe e sente o quanto a volúpia e a crueldade são parentes
Leopold von Sacher-Masoch, A Vênus das peles
O desejo de reconhecimento é um desejo de escravo (…); é o escravo que busca nos persuadir a ter dele uma boa opinião; é também o escravo que se ajoelha diante destas opiniões, como se não fosse ele que as tivesse produzido. E, eu o repito, a vaidade é um atavismo.
Friederich Nietzsche, Além do bem e do mal
Gloria mundi (1976) [também conhecido como Tortura] começa com o recitativo de uma lição: a princípio, deveremos memorizar as glosas, ensaiar os métodos, experimentar os Dictums da “arte” de torturar; mas é preciso estar atento ao contexto e ao subtexto, sem os quais nenhum texto chega ao sujeito; em verdade, aprendemos a representar papéis, de que a carne de Galai, atriz e terrorista, será o lugar de uma tríplice enunciação: o autor (o torturador), o ator (aquela que “conta”, em seu próprio corpo, a história delituosa da nação argelina e da Gesta utópica da causa palestina) e a vítima (a espectadora). Ambos comparecem ao corpo de Galai para encenar diante de nós este necessário aprendizado, meta-físico, em que três vozes vão coabitar um corpo com o fito de erigir um conto in extremis em lição: o filme a ser produzido por Hamdias (morto antes de começar o filme diegético Gloria mundi, ou presente no fora de campo do olhar finalmente frontal de Olga Karkatos) e interpretado por Galai é o efeito destes três personagens, que assombram e irradiam significação como o Pai à linguagem; é a superfície ressoante onde se inscrevem as anfractuosidades das pulsões deste teatro trágico, no qual o sadomasdoquismo dita as regras e sabota-as a seu bel prazer, na medida em que ora estamos com o encenador, ora com a atriz ou a espectadora de suas próprias sevícias, mediações de um processo de expiação anti-edipiano, no qual a subjetividade se exterioriza completamente nas agruras da história de um país.
Para o Papatakis de Les abysses (1963), Oi voskoi (The Shepherds of Calamity, 1967) e Gloria mundi, a violência é um meio privilegiado de permitir este acesso do Mesmo ao Outro, seja “o Outro” da questão de classe, o emigrante desolado ou o terrorista utopista: ela o implode, e os filmes são estas urnas de faux-raccord e montagem sincopada onde os estilhaços são recolhidos; a rigor nada permanece indene, total e Uno. Seus filmes descrevem estes processos ambiguamente niilistas, onde a intrusão da Alteridade num meio de establishment, social ou existencial (Fotografia: a questão do exílio) pode transfigurar a vida das pessoas ou dizimá-las, abrindo-as irremissivelmente para um horizonte de entropia ou renovação radicais.
Gloria mundi é, como Les abysses, uma farsa histérica sobre relações de força, lá de classe e aqui de política “tematizada”(estamos diante de um Estado proto-fascista, ou policial). Mas ao contrário do filme de 1961, adaptação das Criadas de Genet, a revolução operada pela alteridade não penetra a copa e a cozinha da subjetividade (a mansão senhorial). É o sujeito, aqui reduzido à imagem de uma marionete somática, que agora se vê invadido pela psicose do Mundo, retesado e modulado por seus sintomas; este grande corpo doente, cujos sintomas Galai se encarrega de manifestar com método (encarnar a sua mise en scène, decompô-lo em gestos hebefrênicos e recompô-lo segundo nortes de paranóia), é o Ocidente; Galai está a serviço incondicional da denúncia deste Mal, deste câncer que abriga em seus intestinos relações cruéis de força que acabam por voltar-se contra ele, tamanha é a sua intensidade daninha; se a alteridade (Palestina como resistentes de Argélia, de Brasil e de Chile, devidamente nomeados em um inventário de surto psicótico que acomete a mulher na soirée burguesa) aqui aparece como nicho de destruição, é porque não sabemos acolhê-la como devido, de modo que os signos e as forças se invertem segundo uma lógica demoníaca, e infestam aquilo que deveriam libertar: o terrorismo é o grande sintoma-sintagma que opera a conversão do corpo histérico num corpus institucional paranóico; de Galai para a soirée burguesa, os encontros furtivos nos submundos de Paris, a mise en scène invisível do morto Hamdias.
Mas há um retorno, há sempre um retorno do recalcado, nos psicodramas bárbaros de Papatakis: voltamos ao rés-do-chão de Galai, a seu corpo auto-seviciado por queimaduras de cigarro, e finalmente, perto do final do filme, este movimento de “aller-retour” se cristaliza no filme dentro do filme, exibido para os convidados. Sequência de um brilho masoquista poucas vezes emulado naquele gênero que é seu lócus privilegiado (o kammerpiel), as torturas infligidas na moça argelina e “acondicionadas” em um filme caseiro para consumo da malta burguesa é uma mise en abîme paradigmática, que revisita e sintetiza com uma secura digna de Stroheim as mise en abîmes privadas de Galai, e estendem o espelho para o Outro como uma granada retórica cuja função é dessacralizar sua posição de espectador e implicá-lo no jogo ironista.
Galai é, como aquela criança que resiste a atravessar a ponte na peça didática de Brecht, aquela que diz não, e se a princípio a sua empreitada niilista se restringe à água-furtada onde se esconde, a trajetória do filme consiste em uma contaminação de todo o corpo de Gloria mundi por esta resistência dialética, que escolhe não o sadismo mas o masoquismo como índice maior do negativo a ser exercitado na “lição” que nos inflige Papatakis: o produtor de cinema, os burgueses enfatuados e trop modernes, ansiosos por happenings radicais para agitar a própria carcaça decadentista são a platéia deste círculo progressivamente mais poroso e mais tenso que conduz a atriz de um kammerpiel desolado para uma épica super-estrutural, onde os aliados de classe e de modos são devastados por esta intrusão inesperada, não da expansão destrutiva terrorista, mas da entropia narcisista da atriz; é o masoquismo de Galai que os desarma, assim como o humor inocente daqueles que nada tem a perder (judeus e palestinos, crianças) desarma aqueles que possuem tudo.
Se Galai instaura uma atmosfera malaisé, é porque sua estratégia é perversa, sua guerrilha histérica, seu plano condenado de antemão: nada está dado a priori, e nada parece reconhecível para seus espectadores, embora tentem estes, sem nenhum resultado, encarcerá-la num papel déjà vu, mas acabam sempre desconcertados por seus intempestivos golpes de cena: esta mulher acabou por criar uma personagem que absolutamente não cabe nas expectativas daqueles contra os quais se volta, grande boneca amaneirada que jamais seria aceita no bunker, na selva guerrilheira, na célula do partido porque não seria compreendida, visto que nela o imaginário é uma potência carnívora muito maior que quaisquer argumentos de classe ou categorias de Teoria crítica. O imaginário é o domínio do corpo, seviciado embora (ou justamente por isso: absolutamente situado no inconsciente, poroso a seus demônios como angelismos), do calembour, do ato falho, e se cristaliza num trabalho do corpo de Olga Karlatos que está entre a charge, a diva decadentista (seus grandes e atabalhoados gestos, seus gritos guturais) e a marionete expressionista, olhos desenhados a nanquim e virulência do gesto convulso.
A grande revolução, para o anárquico Papatakis, é impensável sem este grão de sandice que o imaginário inocula nos surtos coletivos, revolucionários como reacionários, e que transfigura os membros da polis em potenciais bomba-relógio, homo saceres dispostos a tudo para afirmar sua Ideia. Gloria mundi é um grande filme nietzscheano: pela celebração incondicional do mito trágico encarnado na ressaca pós-68, mas também pelo seu pessimismo da vontade, que converte os afetos e as paixões negativas em bólibos de força explosiva, sem contudo nada perder do negativo que lhes deu origem: uma comutação, uma transformação da força segundo novos significantes a ela acoplados (o humor, a histeria), um novo destino para o negativo: provavelmente Papatakis não crê no telos da Revolução como Geschichte do ser, pois Gloria mundi é um filme que nada deixa intacto, suprema estridência do niilismo pulsional. Filme summa da arte de destruir e de caçoar (o que é uma forma elevada ao quadrado de destruir), é, como a obra de Jarry no teatro, o triunfo de uma arte do Opróbrio, que perturba e fascina na mesma maldita medida.