A citação de Jean de la Fontaine que é a epígrafe de Les bonnes femmes (As Boas Mulheres, 1960) nos informa ser indiferente ser “comido por homem e por lobo”. De fato, se estivermos atento ao gênio particularmente mimético do cinema, podemos pensar que é indiferente ser homem ou lobo, desde que afinal se devore a presa almejada e que se admita que, como na fantasia niilista de Hobbes, haverá sempre também um lobo para o lobo; um lobo pode estar entre nós, entre todos, como deve ser Outro entre os mesmos; sim, esta possibilidade de travesti mimético desde Méliès, onde algumas vezes o Diabo era também o metteur en scène, nos assombra; como Borges, podemos pensar que “Ariadne, o monstro apenas se defendeu”, e que a exceção vilã é antes uma vítima das circunstâncias (de sua pulsão psicopática, tão mais forte do que ela, por exemplo); mas e quando o lobo, como aqui, acerca-se de sua presa com este Método tão francês que o transfigura em iluminista predador, e o torna indefensável? Os lobos, enfatuadamente mascarados, de Méliès e Jannings não seriam antes cordeiros, diante de espécime tão tardia de monstro, em quem a máscara colou na cara e a cara agora é a persona? Sim, o cinema moderno não conhece senão lobos refinados.
O que acontece, afinal, quando este lobo tão eficientemente aprender a se travestir e a imitar os ademanes de um jovem romântico, como adestrar seu raccord de direção do olhar de modo a que a presa lhe seja onipresente, despistado embora o seu trajeto; sim, um lobo que poderia estar à espreita, em seu lugar oficioso de converter o Outro em mira, mas antes prefere estar em todos os lugares e a cada esquina, para encontrar inopinadamente a presa; um lobo cortês? Sim, do amor cortês. Um lobo com Método: amour courtois, sim, uma velha fábula. De lobos e de fábulas, como de fantasmas e de travestis: Les bonnes femmes é um conto de terror que nos fala de todos esses interditos, mas como se gargalhase da máscara, como se fosse mesmo um velho espécime, um tanto empoeirado, deste cinéma du papa que Chabrol, o entomologista, aqui perverte singularmente; sim, de lobos e de fábulas.
Chabrol espera por nós nesta abertura noturna à rua, e afirma-se de pronto a incandescência “rough da-sein” destes filhos que, na descendência do neo-realismo, precisaram descer ao mundo, tomar sol e empanturrar-se de noite para, herdeiros infiéis, subverterem a Pater famílias vivenda da mise en scène; mas será? Aqui já estamos num terceiro momento (sim, os primitivos nos precederam a todos, pois também se refestelavam ao sol, e desde Nadar o plano tableau e sequência eram virtualmente infinitos, para que pudessem aparecer); o momento da nouvelle vague, no entanto – contrariamente à distância naïvement satisfeita do proscênio primitivo ou à Quête anfractuosa da Graça do melhor neo-realismo -, é o instante perverso de suprassunção do documental por uma mise en scène ‘calculada’, e em Les bonnes femmes também uma féerie entomológica, como conto de fadas assombrado e educação sentimental tardia: sim, um triplo Codex hagiográfico; Iago dizia, em sua única réplica reveladora de Othelo, que não era o que parecia; sim, nada nunca é o que parece, sobretudo para artistas modernos; é verdade, a nouvelle vague foi este terceiro momento perverso da suspeição.
Este talvez seja o filme mais pensado da nouvelle vague; sim, um filme de tese.
Lang e Hitchcock eram os mestres de Chabrol, mas o segundo só aparece na intervenção providencialmente casual da Graça ao final, quando o criminoso deixa cair sem querer a prova do crime da motocicleta; para Lang, o objeto da arte é, antes do próprio libidinoso do artefato material, o ens trancendus da crítica; Lang já é o conselheiro da nouvelle vague, pois estes jovens, já nem tão jovens assim, são sobretudo sábios, experimentados, mediados jovens, bibliotecários e arquivistas: são críticos, enfim, esses eunucos num harém (Rossen?). E Chabrol segue seu conselho com presteza; não vêem, mais adiante, na cena do zoológico, este campo e contracampo ‘de averiguação’, onde o lobo, mimético übermensch, se identifica agora ao tigre, e cofia os bigodes como ele, em um arreganho de dentes? E esta onipresença do caçador, em qualquer lugar onde Clotide – a presa – esteja, farejando-a? E este peito peludo de símio, este abaulado de pedra na piscina, quando salva a moça para admiração excitada de todos? Não é o herói que todos querem ser? Ou antes aquele que a todos pode comer?… Chabrol tudo já revela, mas perversamente, lote tardio: sim, documento e mise en scène, como registro de caso e embuste fascinatório. Les bonnes femmes começa, como eu ia dizendo, na rua, e o ‘lobo cortês’, flagrado pela câmera na distância de gerais, de médios, à esquerda como no centro da rua, é identificado como o metteur en scène da Cena; espreita, averigua, confere; ele será onipresente durante o filme, como dito, mas já de pronto conhecemos que é o ponto de vista um tanto panóptico de sua Vista a ‘janela’ de tudo o que se pode ver.
Este talvez seja o filme mais pensado da nouvelle vague; sim, um filme de tese. Mas qual o problema? Antes a solução. Eu venho aqui, ao longo dessas páginas, defendendo um tanto histericamente a reabilitação dos ‘esquemas’, dos ‘tipos’, das ‘categorias’, que em uma arte da presença talvez sejam a plataforma de uma reemergência do trágico. Les bonnes femmes é um filme behavorista, como tantos, e seus tipos são objeto de um disegno maníaco, que muitas vezes flerta com a caricatura, painéis não apenas de uma certa pequeno-burguesia parisiense, mas também de uma certa alimária humana, que frequentemente Chabrol coteja ou deduz da alimária animalesca tout court. Revamos este início, onde a tipologia se expõe, com o travelling que segue as meninas ao longo da rua, solicitadas por estes ‘lobos’ um tanto patéticos, desajeitados, pequenos-burgueses patrões e tarados de fim-de-semana (Marcel e Albert). Aos tipos: Bernardette Lafont (Jeanne) é esta gata ariscamente leviana, mascadora de chicletes voluptuosa, e que se identifica ao ‘fantasma da mercadoria’ para cultivar um spleen só seu; Clotilde é um altivo pássaro, esfingicamente gracioso, cujo casmurro da máscara deve ser proporcional à fragilidade da alma; ambas, que já foram codificadas/conferidas socialmente à saída da loja, agora são também identificadas com a pequeno-burguesia laboral parisiense por Albert: “Sim, típicas parisienses!” Sim, típicos: Albert e Marcel são inversamente complementares, pois ao balofo bonachão ‘que paga in cash’ há de sempre corresponder o esbelto falastrão que liquida reputações; veremos mais adiante que o patrão de Jeanne e Clotilde e o noivo de uma de suas amigas completam a fauna com um esmero preciosista digno de ‘álbum’; o noivo será sobretudo esta ‘careta tímida ao espelho’, signo de neurastenia suplementarmente enfatizada pelo corte relâmpago, etc.
Um dos índices mais flagrantes desta absoluta ‘situação’ do filme em certa classe, certo arrondissement parisiense é que Les bonnes femmes teve no Brasil dois a três títulos diferentes, nunca exatamente diagnósticos do espírito do filme. Parece-me que Chabrol releu o cinema du papa de Lara, Cayatte e Roger Leenhardt segundo o metro de Carette, de Paulette Dubost, de Modot ( burlesco mais grave), seus espécimes de atuação mais picarescos-pitorescos, e isto para massacrá-los criticamente: sim, um refoulé do idealismo, que só a tipificação um tanto grosseira dos coadjuvantes de gênio pode propiciar. O filme inteiro vai consistir nesta coleção de tropos somáticos ou rubricas de atuação características; Kuleshov é reapropriado criticamente, com fitos desmistificatórios e- por que não retorcer a língua, para servir ao pensamento?-desencantatórios. Mas é na Cena do carnaval na boate que veremos que a tipificação-behavorista não se restringe ao corpos dos atores; ela é o leitmotif orquestral de todo o filme.
O expressionismo, a féerie de cabaret, o teatro de variedades comparecem nesta Cena, prodigioso abregé de uma certa infância do cinema, que começou teatral e de ‘mafuá’: Chabrol não nos poupa de nada; são saborosamente polpudas grandes angulares, para que o espectador possa sentir o ‘carnívoro equívoco’ de tudo, e também dar seu bote; são travellings luxuriantes pela sala atulhada de convivas bêbados e confetes, celebração da noite alta e da vida vácua; é uma câmera na mão que, ziguezagueante ao sabor dos saltos e danças, antes parece procurar a saída do inferno que penitenciar-se no Purgatório do delirium tremens, e eu creio que chegaram a acelerar a velocidade da projeção para que tudo alucine ainda segundo um metro arquetípico de Origens de. Sim, mas a que Origem estamos nos referindo? A uma inocência, uma naiveté, um em-si primordiais, que serão violados, como conspurcado o teatro lateral ‘coadjuvantes pitorescos’ dos Pais pelo lugar agora central que ocupam na cena do Filho.
A onipresença da máscara e do teatro (um tanto canhestro embora, desvitalizado pelo significante, que aqui paradoxalmente se exprime pela histeria de tudo) do filme apontam para este retorno da cena lateral com um viés caricaturalmente crítico; mas esta não é uma observação de um tardiamente vulgar perfumista, que vê em tudo clins d’oeil paródicos; retifico-me: o ‘tardio’ desencantado de tudo está nesta síntese um tanto nauseante de slapstick ‘de câmara’ turvamente malaisée, onde não sabemos se as moças se alugam ou se divertem; um estupro pode nascer desta hiper-vitalidade centrífuga da Cena. Se Chabrol é aqui excepcionalmente barroco (é seu quarto filme), é menos por estar se tateando do que porque na mais-valia exuberante do barroco a energia, sempre excedente, está eminentemente disponível a ser relida segundo a parte de Deus ou do Diabo; é aliás o trunfo ‘malaisée’ do filme: a festa expressionante, como a tarde divertida na piscina, podem degenerar facilmente em estupro ou assassinato porque, seguindo a linha da releitura teológica da festa em Bataille, ela secreta uma infinitude da parte maldita, do desperdício voluptuosamente ‘delicioso e delituoso”, onde o êxtase da petite mort pode coincidir com o êxtase fatal. O barroco, arte paroxística, comparece no filme pela ambigüidade que o caracteriza de que o fruto na plenitude malsã de sua maturidade é também a iminência da podridão.
É claro que a jouissance ainda é indispensável para Chabrol, que não é o protestante suíço Godard; a cena do carnaval em Les bonnes femmes é um prodígio caramelizado de cinema, mas a reapropriação dos tropos retóricos da jouissance barroca serve, não apenas para propiciar a indeterminação equívoca da cópula “delícia e delito”, mas também como um preâmbulo da desiludida ressaca do dia seguinte, que nos serão servidas generosamente também: uma ‘Lição de’, estilo “Foram colher lã…” é o que nascerá da contraposição destes momentos extáticos e deceptivos, desta noite transfigurada que desagua na manhã acinzentada de ressaca. Mas o privilégio de Les bonnes femmes é antes habitar o entre-deux da festa: é este fondu, venenosamente lento como o trajeto do basilisco, da mão enluvada da striper pelo pano negro da cortina que introduz-nos ao retorno da cena realista; é ele o tool explicativo do processo trabalhado aqui: é a imbricação rastejante, fluidamente ‘mimética’ da noite dionisíaca com o dia desiludido que configura o mascaramento ontológico essencial do filme; quem contempla o plano da ‘luva’, aliás, é o nosso lobo cortês, que jamais abandona a cena; ele é, como Chabrol, um expert em mímesis, ou de travestismo ontológico: o representante na diegese do deus absconditus do diretor, que digere a sua presa como Chabrol devora o cinéma de papa, e da mesma maneira ‘contrabandista-infiltrada’; sim, Les bonnes femmes em seu melhor é este espécime híbrido, sensualmente Lição de, como demonstrativamente saturado de spleen, sobre um Era uma vez destinado à putrefação.
Há planos fantasmáticos, como brechas reveladoras de que o plano pode ser apenas o istmo evidente de um fora de campo vertiginoso; ao voltar do primeiro carnaval, Jeanne (Lafont) e seus ‘amigos’, mais do que tocados de bebida, se furtam e se perseguem no pequeno apartamento, como se acoplam em semi-perfil interrogativo à beira do sofá; o espaço nunca será plástico o suficiente para as anfractuosidades nele impressas por um triângulo de ‘perdidos da noite’, então Chabrol elabora o découpage a partir do close do joelho direito de Jeanne acariciado por Albert, para demonstrar a moeda sonante da operação carnavalesca em jogo; decididamente, é o vaudeville que dá a nota de tudo aqui, mas mortuário-reificado pela passividade alcoólica da mulher ‘disponível’. É, porém, num corte assustador para um geral em que ambos os homens se amontoam sobre o corpo da moça, bloqueando-nos a sua visão, que o clima perturbador de vaudeville sub-reptício se cristaliza obscenamente: uma orgia, um estupro coletivo, uma tentativa de assassinato se figuram no éclair deste plano quase-desaparecendo. Este plano súbito e iminentemente desaparecido traduz o tatibitati infantil de Marcel, como a jovialidade um tanto patética de Albert em uma acintosa empreinte ‘coração das trevas’, onde o spleen da festa divertida se expõe em mesa vivissecante.
Há outros révélateurs, porém, nem sempre tão causalistas-inferidos, da perspectiva das profundezas que nos manifestam que Les bonnes femmes é antes de tudo uma crônica clínica sobre o Fantasma (de uma classe, de um imaginário também), e que a sua superfície entomológica divertissement mal oculta, sob os pespontos de seu alinhavado novelesco, as fissuras de um romanesco do interdito, que ao final vai emergir e tudo devastar, pois é não a letra, e sim o espírito do expressionismo o leitmotif do assombro, tudo infiltrando de malaise: este ponto de vista ‘contra-plongée aquática’ do tubarão, por exemplo, quando Clotilde é afogada repetidas vezes e que já nos antecipa o desenlace predatório; os amigos à espera da liberação do quartel, que enquanto conversam miudezas são vigiados por esta sombra ancilosada do enforcado à parede (não por acaso, esta cena é posterior àquela em que a empregada italiana da loja ‘presenteia’ a sonhadora Clotilde com o lenço saturado de sangue do enforcado veneziano); a apresentação em câmera subjetiva de Stéphane Audran na boate, toda em vertigens de entretons galvanizados de luz; toda a sequência do zoológico, compêndio behavorista-expressionista onde homens são cotejados com feras e acabam por aterrorizá-las com seus grunhidos e caretas ‘mascarados’; e uma fresta de porta entreaberta; sim, a alta beirada de uma porta entreaberta, por onde entra um casual comprador na loja. Este plano (súbito como o da figuração do ‘estupro’ de Lafont) se segue a uma deliqüescente Clotilde em conversa com uma das amigas; ela não vê quem chega, pois seu olhar está solicitado, como de hábito, pelo Sumsun corda do fora de quadro, de onde ela espera… sim, Clotilde contempla a infinitude de sua Ideia (a iminência do Príncipe), e não pode ver quem chegou; mas ecce l’opera! A beirada da porta não pode nos revelar quem entra na loja porque está sendo preenchida pela potência fantasmática do ideal de Clotilde; ela é uma fissura para o fora de campo, e portanto um container de Fantasma. Agora, podemos rever com atenção os closes que Chabrol dedicara à atriz; sim, revejam este campo e contracampo ultra-hápticos em que ela se entretém com o rapaz da bicicleta; lembram-se? Ele, com seu bigodinho de raposa e olhos que uma luz mais forte devastaria é filmado com o rough documental de lente plana; mas Clotilde aparece-nos sob o prisma de um sfumato sulpicien, que a idealiza duplamente. Como assim?
Sabemos que o sfumato, ‘inventado’ por Da Vinci, contrapôs-se à linha-disegno como aquela mancha de pintura que percorreu um tanto sub-reptícia mas decisivamente uma certa história da pintura como invocação atmosférica ou rêverie, o paisaggio di sogno que algum Pasolini evocou: Rembrandt, Bellini, o Parmigianino do Autoportrait e do Autoportrait em um espelho convexo,Trophime Bigot, até chegar à foz impressionista, onde agora é o inconsciente da paisagem que ele se encarrega de transmitir. O sfumato não idealizou a paisagem ou o portrait, embora os tivesse requisitado para a ‘câmara’ da subjetividade afetiva; ele antes retirou a pintura do território da perspectiva Quatrocenttro, onde o homem metafísico era mâitre à penser e medida de todo o ser, e a solicitou para as margens de um mundo onde o homem agora é um receptáculo mediúnico de tudo o que é, e imprime sobre a tela o desfocado de sua visão vidente, que não mais disseca mas rememora ou imagina. No cinema, porém, por uma destinação genealógica um tanto perversa que legou para o classicismo desta arte tardia um stimmung hagiográfico que a pintura já havia abandonado há muito, este tool impressionante sofreu uma regressão idealista, e endeusou a star de nitrato, convertendo-a neste polpudo steak enlatado de aura que, de Lilian Gish a Romy Schneider, supliciou-as sub species…, segundo a mais eficiente aplicação da noção de fantasma da mercadoria.
Quanto ao sulpícien, vocês devem ter ouvido falar da igreja de Saint-Sulpice em Paris, onde reuniram um verdadeiro bric-à-brac da hagiografia católica mais ‘suspeita’ em matéria de gosto jamais cometida, não? Clotilde Joano é esta Virgem Sumsun corda que a lente fantasmagoriza ‘para não quebrar’: este olhar marulhado de esperança pela promessa da Ideia, como o esgar de sorriso bem-aventurado, sequioso de reconciliação. Como o Marcel de Proust a Albertine, podemos pensar que ela decalca o seu príncipe segundo a sua ideia de nariz, de olhos, de Príncipe, e que a personagem é indissociável deste olhar estrábica e suavemente psicótico, que trabalha e vive para unicamente acumular dividendos que robusteçam seu ideal; do homem que a persegue ela não conhece endereço nem nome, a não ser que corresponde ao seu tipo ‘moreno, hirsuto’… mas não foi assim que Chabrol procedeu ao longo de todo o filme?: dando-nos também ‘tipos de’? O idealismo clássico aqui persiste ainda, mas denunciado por este retorno behavorista como um meio de abjeta mistificação da vida, e portanto de negação da vida: não um indivíduo, mas o Indivíduo ühr. Há o tipo idealizado de Clotilde, que a perde, mas Chabrol também disseminara pelo filme tipos caricaturais, versões decaídas “Ilusões perdidas” que já antecipavam o destino desencantado da moça; sim, a educação sentimental deceptiva era para nós, pois já podíamos, ao longo de Les bonnes femmes, colectar os índices de prova do que se preparava para a moça, e pelo menos antever que ela acabaria grávida de um tipo como Albert, habitante neurastênica de um subúrbio distante.
Se Clotilde é morta, é porque, mal-educada pelo bovarismo (a educação sentimental viciosa, idealista clássica), não adquiriu os anti-corpos necessários para sobreviver na selva da Cidade. Ela não ‘pôde ver’ porque na pedagogia chabroliana, que certamente ilustra um penchant desiludido desta arte dos filhos menos rebeldes que decadentistas da vague nouvelle – sua forma de serem tardios -, é o espectador que deve tudo aprender/apreender, resguardando-se para a recepção sage a Lição de; Clotilde, como Justine, morrerá antes de poder aprender o preço inominável que pagamos para viver de maneira idealizada – e portanto distantes da vida, sem o treino imunológico que esta demanda -, mas estivemos lá para testemunhar a débâcle, démarche eminentemente moralista que tão bem trabalha em uma arte da presença as narrativas mortuárias dos últimos Balzac e Flaubert, sempre devedoras de um irrecuperável (e culpado) Era uma vez…
O contracampo decisivo deste close hagiográfico sfumato sulpicien é o close de rigor mortis da mulher sufocada pelo lenço ao final; ainda na floresta, antes do crime, Chabrol nos dera esses travellings voltejantes pelo ar, onde se figura o ‘sub species aeternitates’ da esperança de Clotilde, em breve depostas sobre a terra… esta estratégia da ‘educação sentimental perverso deceptiva’ estrutura Les bonnes femmes e de boa parte dos melhores filmes da nouvelle vague: assim, Rohmer lerá o anárquico fauno Boudu de Jean Renoir segundo a paixão triste do abandono e do exílio na cidade luz; Jacques Rozier vai ‘repetir’ a nonchalance irônica de Jean Vigo, mas situando-a no universo desauratizado da televisão, encerrando-se tudo com a partida para a Argélia, em Adieu Philippine (1962); Jacques Rivette vai nos dar em Paris nous appartient (1961) uma Summa onde Lang e Hitchcock se encontram, mas apenas para nos deixar no meio do caminho de uma indeterminação genética, onde tudo pode ser o efeito de um complot objetivo, índex atmosférico refratado da Guerra fria ou paranóia de grupo de diletantes; Godard vai recuperar Homero e Lang, sim, em Le mépris (O Desprezo, 1963), mas para dizer que as presenças reais do classicismo desapareceram com seus deuses, e que agora só nos restam significantes enlutados. Esses ‘eunucos’ desencantados só podiam ver o mundo assim, pois seus travellings vitalistas de ruas antes são travestis para o trabalho da fúnebre stylo. A educação sentimental aqui é a de Clotilde, mas podemos inferir por ela que o idealismo com que o cinema clássico edulcorara a representação da presença humana sofre também a sua purgação catársica, o castigo pela virtù excessivamente suspeita de que só poderia tolerar o corpo humano emasculando-o de vida, sufocando-o sob o peso mortificante de tantas mediações fascinatórias. Chabrol, leitor de Balzac, talvez tenha dado aqui a sua versão das Ilusões Perdidas, mas eu estaria antes inclinado a vê-lo como um Balzac relido pelo Flaubert de Educação Sentimental e corrigido pelo jansenismo ironista de Stendhal.
Chabrol em Les bonnes femmes é um entomologista, e ele vai continuar a sê-lo em seus melhores, de Le boucher (O Carniceiro, 1970) a La cérémonie (A Cerimónia, 1995) e La rupture (A Ruptura, 1970); mas aqui o traço ainda é um tanto enfático demais, talvez porque este misantropo irredimível pela Graça almejada não confie em demasia na inteligência de seu público; assim, temos esta epígrafe de La Fontaine, onde a correlação entre homens e lobos é ‘assinada’ como leitmotif de tudo; a cena do zoológico, onde se reedita o jardim antropológico de Galsworthy e o jeu de massacre da alimária humana se figura exemplarmente (como gestus histérico), e depois na piscina in loco, afogando-se uns aos outros; e finalmente no restaurante ao final, quando o homem da moto é metonimicamente revelado como este conjunto de apupos, silvos, como esgares de boca e ruídos de pés, monstro quimérico onde se reúne o bestiário completo da Natura irredimida. Chabrol é um entomologista ironista, que leu Stendhal mas também la Bruyère…s e eu gosto do filme como gosto é – permitam-me a insistência – porque filmes de tese como Les bonnes femmes nos permitem diagnósticos precisos daquilo que nos tornamos; e de quebra, todo um destino do classicismo no cinema se destina aqui à expiação sans merci.
O final de Les bonnes femmes é, como tantas rubricas fantasmas indicavam, ainda da ordem do mito fabular, do Era uma vez…uma nova velha educação sentimental se inicia, ao bar e com um outro casal que baila. Mas o sfumato sulpicien, onde se traía a esperança naïve de Clotilde em encontrar um amor, agora já não é possível, pelo menos depois de tudo o que passou e que aprendemos ‘a ver’. Então, Chabrol nos dá um close ainda, mas por contaminação fantasmática; o sfumato agora é efeito deste fondu com o brilho da bola de prata, que hipnótica gira…é este significante précieux, que assinala a entrada da educação sentimental no território da linguagem, lugar de onde só se sai morto, o destino de nossa fábula encantada por lobos.