O que é um abraço? “Acto de abraçar, de apertar entre os braços, geralmente em demonstração de amor, gratidão, carinho, amizade, etc.” O dicionário Priberam diz isto. O cinema mostra isto, das mais diversas maneiras. Abraços gentis, muitos. Mas também abraços agridoces, torturados e até “de urso”. O dicionário, de facto, não nos diz: o abraço também vulnerabiliza as costas e esconde o rosto ao outro. O cinema encontra um thriller ou uma história de amor ou ambos no amplexo. Antes de partir para férias – ficamos a meio gás durante o mês, mas voltamos em força já em Setembro -, o À pala de Walsh abraça estes abraços.
Um abraço demorado na ombreira da porta: o homecoming de Ben Cameron, em The Birth of a Nation (O Nascimento de Uma Nação, 1915). Repare-se naquelas mãos de amor que o sugam para o interior do lar, como se o salvassem dos males do mundo. São elas o pormenor mais fascinante do plano, que repousa numa suspensão de conforto familiar. Curiosamente, só me embeveci por esta imagem – ou só dei realmente por ela, pelo rigor da sua forma – na segunda vez que vi o filme de Griffith, por ocasião do centenário, no Teatro São Carlos, com orquestra dirigida pela tremenda Gillian Anderson (não confundir com a Dana Scully da série The X-Files…), seguindo a partitura original de Joseph Carl Breil. No jantar com a maestrina, que tive a sorte de integrar, logo a seguir ao filme-concerto, aproveitei para lhe falar deste plano (fiquei mesmo ao lado dela na mesa) e de como a música, naquele momento preciso, inspirava uma verdadeira sensação de refrigério, num cenário fílmico vigorosamente marcado pela Guerra Civil e todo o tipo de desordem. Ali, pelo contrário, tudo é ordem, quer formal quer de espírito. Foi então que Anderson me revelou, sacando a gigante partitura, que essa parte corresponde justamente à canção popular americana Home, Sweet Home, de Henry Bishop. Pensei “santa ignorância a minha”, e logo me bateram na lembrança as palavras da letra de John Howard Payne: There’s no place like home…
Sugiro que a ouçam cantada por Deanna Durbin. E, já agora, a olhar para este categórico plano.
Inês Lourenço
Talvez John Wayne imaginasse que depois de todos os duelos, aventuras e caminhadas da sua mui fordiana vida, houvesse um tempo para um sereno regresso a casa e às origens irlandesas, onde pudesse usufruir pacatamente de todo o esplendor do amor e da família. É que isso, pelo menos até 1952, ano deste The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952) só ocorreu, hipoteticamente, após as letrinhas “the end”, num muito distante rancho que tínhamos de imaginar. Não podia ele estar mais enganado. Mas vim falar de abraços e ele aqui está: um dos mais comoventes da história do cinema. Maureen O’Hara nos braços encharcados de Wayne, ou devo dizer, a ruiva Mary Kate a ser protegida do vento, da chuva e dos maus augúrios do cemitério, onde se passa a cena, pelo ex-pugilista Sean Thorton. Se a cena é romântica não se pode dizer que o cineasta o seja particularmente, pelo menos com ele nunca foi um amor e uma cabana, ou neste caso, amor e uma cama partida. Longe das primeiras visões bucólicas – em que Sean vê Mary Kate como uma angélica “guardadora de rebanhos” – e da benção com água benta, a relação dos dois começa com ventanias de bater portas, janelas partidas e “assombrações” a entrar pela casa adentro. Por isso, não vale a pena enganar ninguém. Este abraço não chega a ser o clímax do romantismo idílico mas sim o manter junto, com força, aquilo que a natureza revolta quer separar. Ele, que já tanto lutou, vai ensinar-lhe que o dinheiro é para mandar para a fornalha e que mais vale plantar rosas. Ela, que já tanto esperou, vai fazer-lhe ver que nem só de rosas vive o homem e que nem o mais tranquilo dos homens deve abdicar de lutar pelo amor. E desses ensinamentos, ou entre um murro e um abraço, se faz o mais romântico dos filmes.
Carlos Natálio
A aspirante a freira está amantizada com o divino. Dá-lhe o corpo pel0 sacrifício: não comendo, não se agasalhando. Dá-lhe a alma rezando extensivamente (é aliás assim que primeiro a conhecemos). No entanto não recebe resposta do seu amor. Como numa relação à distância, as cartas só circulam num sentido. A paixão provoca alheamento, e pelo alheamento ela vai-se desligando do mundo. Há um moço que por ela se apaixona. Claro que um miúdo nunca poderá competir com um senhor. Na cegueira do amor a nossa menina encantada quer dar ar de sua graça, quer ser vista. Quer impressionar o seu amado, fazendo por ele o seu trabalho. Quer mostrar-se capaz e digna. Esta atitude só a desliga mais ainda do mundo. Claro que o objecto do seu desejo não será alcançado pelo atiçamento. Tomando consciência disso, ela desiste. Dele e de si. Mas deus não desiste dela (não podia) e lança-lhe a sua mão. Literalmente. Desce-lhe um enviado. Um homem. Nada de profetas ou anjos assexuados. Aquele é um homem. Sujo e semi-nú. Que trabalha com as mãos e a ama da mesma forma como sente fome ou respira. E aquele abraço não é já a ligação entre os dois. Veja-se que o campo contra-plano que enquadra cada uma das caras aponta sempre para aquela nova figura: um corpo só. Amor assim, tão puro, só nos filmes assim, tão puros.
Ricardo Vieira Lisboa
Jonathan Demme, um cineasta de grande inteligência, procura num dispositivo formal influenciado por Cassavetes e os Dogmas dinamarqueses, mas sem a crueza destes, submergir o espectador numa história real, filmada à altura do homem. Para tal, Demme investiu numa planificação simples. Nos primeiro minutos, a câmara segue, agitada, em planos largos produzidos quase ao nível do chão, as personagens, sobretudo a de Anne Hathaway, ampliando deste modo a sensação de desligamento entre os membros da família. Já próximo do fim, sobretudo a partir da cena em que Rachel dá banho a Kym, e lava-lhe as feridas, a câmara de Demme aproxima-se das personagens, povoando, pela primeira vez, o filme de grandes planos dos rostos e, neles, das lágrimas, dos sorrisos e, acima de tudo, dos olhares. O casamento, uma lindíssima celebração do amor, é feito de música, caras e silêncios, o oposto do que tínhamos visto antes (o vazio, a distância e o excesso de palavra). Este simbolismo atinge o seu auge num engenhoso “jogo de abraços” que tem lugar nos minutos finais do filme. Primeiro, a câmara filma um abraço colectivo entre o casal recém-casado e a madrinha Kym e o padrinho Kieran – um K que se projecta, e complementa, num outro. Depois (noutro plano), as irmãs abraçam com toda a força do mundo a sua mãe de sangue; a câmara percorre, suave, sem julgar, os seus rostos transparentes, carregados de sentimentos indizíveis.
Luís Mendonça