A 3ª edição do festival Olhares do Mediterrâneo – Cinema no feminino acontece entre os dias 29 de Setembro e 2 de Outubro, no Cinema São Jorge. Os críticos Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa antecipam alguns dos filmes que se poderão ver nos próximos dias em Lisboa, em particular os filmes de abertura e encerramento, assim como algumas das curtas metragens portuguesas seleccionadas pelo festival. Todas as informações sobre estas e as restantes sessões do Olhares do Mediterrâneo podem ser consultadas no seu site oficial, aqui.
Exotica, Erotica, Etc (2015) de Evangelia Kranioti — Filme de Abertura
Talvez tudo o que de importante haja a dizer sobre este belo filme esteja contido no seu título. Uma confrontação entre dois termos, estragada (aberta) por um “etc”. A grega Evangelia possuía os dois, um desejo (uma erótica) que era também um desejo de aventura (exótica) em relação ao mar Mediterrâneo e seus habitantes. Durante oito anos registou fotografias e histórias dessa sua viagem. No centro deste projecto, o mar era o refrão presente que aproximava e separava temas como o desejo, a relação homem-mulher, a nostalgia, a noção de origem. Quando chegou a vez de entrar pelo cinema adentro para através dele mostrar esta aproximação/separação de que o mar é capaz, a realizadora percebeu que só podia filmar os que ficam e os que vão.
Assim, ouviu e filmou uma veterana prostituta que sempre atendeu os marinheiros gregos que “largavam as suas bombas” em forma de amor e sempre partiam, deixando-a nostálgica de uma erótica que, apesar de contida em terra, desejava com os homens partir para exóticas terras. Depois, Evangelia fez-se “marinheira” e foi, embarcada, filmar com os homens encerrados em barcos de ferro, cantando músicas de karaoke e tentando perceber como se forma uma erótica (o sentido de um poiso, uma casa a que chamamos nossa) quando a nossa vida é navegar incessantemente.
Se esta parece ser uma oposição marcada, onde detectar o “etc” do título? Uma das sequências do filme mostra os marinheiros a massajarem com vinha de alho o corpo (morto) de uma peça de carne que haverão de assar num momento de festividade. Num dos planos seguintes, aproximamo-nos do interior da carcaça. O que ali há para ver? Este pormenor revela ao espectador que Exotica, Erotica, Etc nunca é só uma oposição entre a terra e o mar, entre as mulheres amadas que ficam e os marinheiros exóticos que partem. O olhar curioso de Evangelia estende a oposição: já não vemos um retrato de uma mulher e um poema visual sobre o mar e seus habitantes; nem uma exactidão na composição sonora e visual que se opõe a uma dimensão literária da voz off. Vemos e ouvimos sobretudo um amor a entrar em todas as superfícies, a desconstruir a erótica como um espaço dos que ficam e uma exótica como um impulso dos que vão. (Carlos Natálio)
Kusursuzlar (Impeccables, 2013) de Ramir Matin — Filme de Encerramento
Lale e Yesemin são duas irmãs na casa dos trinta que resolvem ir passar uns dias numa casa de férias numa cidade balnear junto do mar Egeu. O sol, o mar, a boa comida são sempre bons remédios para apaziguar o stress do dia-a-dia e os traumas do passado. Uma veste uma cara de trauma e as roupas largas da avó, a outra corre diariamente e não dispensa os banhos de mar para manter o sorriso e a boa aparência. Ramir lança uma contra a outra e ficamos assim a assistir a estas férias como um palco fechado de confronto, onde insistem em romper o processo de “cura” (uma é anestesista e a outra farmacêutica) o vizinho, o namorado de Lale, que esta abandonou subitamente, e sobretudo, o passado mal resolvido.
Se Kusursuzlar é abertamente um filme sobre a origem de feridas e o seu processo de cura, outros dois temas surgem mais subterrâneos. O primeiro sobre a vulnerabilidade social das mulheres na Turquia antes os assédios, os olhares, as pressões profissionais masculinas, num espaço de contrastes que não concebe além da beata recatada e da puta exuberante. O segundo talvez seja o que mais faz mover a segunda longa-metragem de Ramin Matin: as meias palavras ditas entre irmãs, os ataques verbais em pantufas ou as súbitas mudanças de humor fecham do lado de fora as personagens masculinas. E nesse girar entre a curado e a doente, a optimista e a pessimista, a vítima e a culpada, o filme evita a progressão linear e o mero twist empobrecedor. (Carlos Natálio)
A Caça Revoluções (2014) depois de se estrear no IndieLisboa e passar pela Semana da Crítica em Cannes tem visitado festivais de cinema por todo o mundo. O filme de Margarida Rêgo é uma que se organiza sobre o problema da distância: a proximidade desfoca, mas ao longe tudo surge mortiço. Aliás, no final do filme é a narração que nos diz que a caçadora “Decidiu abraçá-lo como se percebesse agora que aquilo que procurava se encontrava no espaço que existia entre os dois”, revelando assim a chave mestra de interpretação do filme e da história. A realizadora cria pois um limbo onde há que dar ao arquivo — já infectado de plasticidade pictórica — o seu sentido original; mas para isso tem que se ir à caça e desenterrar o passado… E assim as pinceladas parecem encontrar no fundo das imagens as memórias da revolução que a realizadora nunca viveu.
Já Outubro Acabou (2015) é um divertido passeio, entre o irónico e o sincero, pelo cinema contemporâneo, da modinha do found footage ao cinema experimental numérico, passando pela influência pictórica do Godard pre-maoista (aquele macacão vermelho!) e o estruturante distanciamento do documentário moderno. O dispositivo em abismo e a narrativa do cineasta-criança trazem no entanto algo mais que o jogo cinéfilo: no fundo todo o realizador é uma criatura mimada e birrenta que temos que saber cuidar com amor e carinho. É portanto um filme de uma candura enorme que esconde uma consciência aguda do fazer do cinema. E mais curioso, é perceber que o gag final do cinema-memória que trabalha à la Martin Arnold os filmes de infância do menino anuncia o novo filme da dupla, Confidente (2016), apresentado este ano no festival Curtas de Vila do Conde e dentro de semanas no DocLisboa.
Pronto, era assim (2015) é um projecto da Academia RTP que estreou no festival Córtex e venceu a competição Take One! (para filmes de escola) em Vila do Conde — entre muitos outros prémios. É mais um exemplo de um fenómeno recorrente do cinema contemporâneo, o documentário animado, que encontra na ilustração de entrevistas pré-gravadas o seu dispositivo de eleição. A força do filme de Patrícia Rodrigues e Joana Nogueira encontra-se no genuíno dos depoimentos que são muitas vezes capazes de provocar tanto enormes gargalhadas como um certo estremecimento — por vezes em simultâneo — auxiliado por um desenvolvimento de personagens delicioso, que encontra nos objectos domésticos (uma balança, uma cafeteira, etc.) um reflexo das vidas dos seus entrevistados.
Já Dona Fúnfia (2016) é um objecto menos interessante, tanto do ponto de vista humano como da técnica da animação — algo a que falta mais que as boas intenções. Por fim, destaco Maxamba (2016) de Suzanne Barnard e Sofia Borges que venceu a secção Novíssimos na última edição do IndieLisboa. Filmando com um cuidado deslumbrante e deslumbrado o dia-a-dia de um casal de alfaiates de origem indiana do bairro da Quinta da Vitória, que está prestes a ser demolido. As realizadores constroem uma atmosfera densa e pesada, com planos fixos muito compostos e longos e cheios de uma luz quente e algo opressiva, no sentido de fixar (ou pelo menos de forma tentada) a memória de um lugar e de umas gentes que está prestes a desaparecer. (Ricardo Vieira Lisboa)