Parece-me conveniente antes de olhar para A Toca do Lobo (2015), fazer um pequeno percurso pelo reino do ensaio (fílmico) e da forma como este veio sendo descrito por vários dos seus praticantes. Aldous Huxley afirmou que “the essay is a literary device for saying almost everything about almost anything” e que pode ser encarado a partir de três polos de referência: (1) o pessoal e autobiográfico; (2) o objectivo, factual, particular-concreto; (3) e o universal-abstracto. Já Timothy Corrigan apura esta trindade do ensaio como a combinação da expressão pessoal, da experiência pública e do processo de pensamento. Max Bense fala do ensaísta como um combinador, aquele que produz configurações em torno de um objecto específico — “Configuration is an epistemological arrangement which cannot be achieved through axiomatic deduction, but only through a literary ars combinatoria, in which imagination replaces strict knowledge”. E do mesmo modo, já Theodor W. Adorno havia afirmado que o ensaio está afinal verdadeiramente preocupado com aquilo que é oculto nos seus objectos de estudo. Assim, e tendo em conta que o filme de Catarina Mourão preenche todos os requisitos referidos, a pergunta que convirá colocar é, que objecto é esse sobre o qual a realizadora ensaia?
O filme centra-se em Tomaz de Figueiredo, avô que Catarina Mourão nunca conheceu e sobre o qual nada sabia antes do filme. Um dos primeiros trunfos de A Toca do Lobo (título homónimo de um dos romances de Figueiredo) é construir-se numa aparente candura investigadora que nos vai revelando, numa cronologia construída, o processo da realizadora no sentido de descobrir quem foi essa figura familiar algo oculta da sua mitologia genealógica. Assim o filme replica os passos do investigador mas fá-lo na medida dos tempos fílmicos e dos arcos narrativos. Posto doutro modo, uma das habilidades de Catarina Mourão é a descoberta e introdução do McGuffin das saquinhas que perpassa todo o filme.
Recuo. A realizadora ouvira falar que o seu avô Tomaz havia surgido nos anos 1950 na RTP, num programa dedicado ao coleccionismo, no qual apresentara um conjunto de saquinhas de cachimbos que vinha acumulando. Nessa entrevista Tomaz de Figueiredo acrescenta que ficaria encantado se um dia as suas netas viessem a brincar com aquele espólio, enchendo as saquinhas de conchas, e já agora, uma dessas netas poder-se-ia chamar Catarina, que era um nome que ele muito apreciava. O efeito surreal dessas imagens de arquivo, que parecem comunicar directamente com a realizadora antecipando-lhe o nome, é a força motriz da investigação que o filme apresenta e será através da recuperação desse objecto aural que o arco narrativo se fechará.
Há neste mecanismo narrativo uma proximidade grande com o dispositivo por detrás de um filme de Ross McElwee, Bright Leaves (2003). Neste, o realizador também encontrava um filme — que denominava como um home movie surreal dentro de uma produção de Hollywood — que iniciava uma investigação sobre o seu bisavô. Aliás, as proximidades entre os dois títulos são enormes: ambos os antepassados foram figuras com alguma importância na sua época mas que hoje estão quase totalmente esquecidos (Mourão visita as ruas secundárias em homenagem a Tomaz de Figueiredo e McElwee visita o pequeno jardim McElwee onde apenas existem dois bancos e algumas ervas daninhas); ambos se iniciam na temática do sonho (Mourão recorre uma e outra vez ao subconsciente como fonte, em sonhos seus, do seu filho ou da sua mãe, e McElwee começa o seu filme sonhando com o verde alienígena das folhas de tabaco da Carolina do Norte); ambos acabam por se transformar em álbuns de família contemporâneos; e ambos usam, no fundo, o gancho emocional da investigação familiar para falar sobre outros assuntos. McElwee interessa-se pela indústria do tabaco, pela dependência e pelas consequências dos cigarros para a saúde (e moderadamente por questões de urbanismo e de cinefilia), ao passo que para Catarina Mourão são os silêncios de uma família, o salazarismo e a polícia política, a clandestinidade comunista, a doença mental do avô e o modo como lhe trataram da saúde, as disputas familiares e o esquecimento as chaves da sua investigação.
No entanto, o filme de Mourão é particularmente mais interessante que o filme de McElwee na medida em que, ao contrário do primeiro, questiona-se constantemente sobre as possibilidades do próprio processo de investigação e das suas limitações. À imagem do que citei anteriormente de Max Bense, A Toca do Lobo é um filme que compreende as limitações da construção histórica e, como tal, preenche os conhecimentos lacunares, que uma investigação sempre produz, com a imaginação e a interpretação romântico-especulativa, revelando desse modo o lado oculto do real. Ou melhor, construindo uma verdade estritamente pessoal que não deixa de possuir uma transversalidade emocional. Mourão faz isto quando encontra, por exemplo, paralelos entre os documentos que manipula e as narrativas que constrói: a associação entre a cena do filme de 9 1/2 mm dos dois tios encenando um bando de gatunos e a sua mãe resolvendo a situação e os eventos futuros que oporiam os duas filhas de Figueiredo no conflito da partilha do espólio; a associação entre a janela gradeada a ferro forjado da imaginada casa de Casares e o trompe-l’œil do hospital psiquiátrico do Telhal que metaforiza a prisão do espólio como a continuação do tormento do avô; ou ainda a biblioteca Tomaz de Figueiredo, um simples armário de canto sem nenhum livro do escritor.
O modo como trabalha com as imagens de arquivo e como constrói associações simbólicas entre as diferentes vertentes da sua investigação parecem originar de uma relação háptica com essas mesmas imagens de arquivo e com a própria memória feita matéria fílmica. A sequência em que a investigação se materializa nas paredes da casa da realizadora e se articulam documentos dos mais variados suportes, incluindo as imagens em movimento que se projectam pelos corredores, é uma das mais belas, por aí se revelar poeticamente o método da própria investigação. Mas, como depois acaba Catarina Mourão por confessar, “os arquivos provocam mais uma ausência do que uma presença”. Por isso se estende a sombra da realizadora por sobre as imagens da RTP, preenchendo essa ausência dos materiais de arquivo, manipulando-os e apropriando-os. E desse modo, actualizando-o memórias familiares e nacionais a partir daquilo que antes era apenas um celulóide inane.