Cogito ergo sum. E aqui estamos, uma vez mais, perante o eterno dilema das máquinas a contas com problemas existenciais. “I have some glitches”, diz Major (Scarlett Johansson) em Ghost in the Shell (Agente do Futuro, 2017), ela que é um ciberorganismo aparentemente com um só programa: matar. Continuamos sem perceber os dilemas destes corpos. Sem contas para pagar, sem necessidade de tomar banho e de imensas rotineirices diárias, sem obrigatoriedade de educar filhos, desprovidas até de passarem minutos e minutos em filas do supermercado, estas maravilhas tecnológicas querem sentir o que é ser… humano. Depois não nos admiremos quando os aliens, nos filmes, gozam sempre com o imenso atraso tecnológico da Humanidade.
O anime homónimo de 1995, dirigido por Mamoru Oshii, era um filme que quase soterrava o seu fulgor visual através de intrincadas e indecifráveis conversas recheadas de jargão tecnológico-filosófico interditas a um novato na matéria. Um piscar de olhos, um diálogo menos compreendido, e lá seguia o espectador para a terra da confusão. Esta adaptação em “imagem real” (sem rir muito…) mantém o impacto visual mas, por outro lado, simplifica o argumento até a um ponto em que um aluno do ensino básico (ou mesmo nós) poderá contar em meia dúzia de linhas o que se passa no filme de Rupert Sanders. Nenhum inconveniente nisso: dissertações palavrosas e bugigangas pseudo-filosóficas não fazem necessariamente grande cinema (muito pelo contrário…).
Os “problemas” de Ghost in The Shell, versão 2017, não se situam então nessa descomplexificação, mas antes nos seus motivos visuais e narrativos que, de tão antigos que são, parecem estar a cair de podres, e não há 3D que resolva isto.
Os “problemas” de Ghost in The Shell, versão 2017, não se situam então nessa descomplexificação, mas antes nos seus motivos visuais e narrativos que, de tão antigos que são, parecem estar a cair de podres, e não há 3D que resolva isto. As sequências de acção, algumas com imensas semelhanças – mas não inteiramente iguais – às de 1995, dão recurso às mesmas estafadas técnicas de pára-acelera-pára que se tornaram mandatórias pós-Matrix (que, por ironia destas coisas, já ia buscar muito ao filme de Oshii), e o esplendor de Hong Ko…de Tóquio de 2029 é uma redifinação tecnólogica da Los Angeles de 2019 do Blade Runner de 1982 (filme a que o Ghost in the Shell “original” ia beber. E por aí adiante). A procura de identidade humana num corpo maquinal remete-nos para um célebre filme de 1987 assinado por Paul “ai de quem agora diga mal de um dos filmes dele” Verhoeven, onde também se vai buscar “emprestado” a organização aparentemente-a-servir-os-interesses-dos-cidadãos-mas-que-no-fundo-é-uma-entidade-dirigida-por-corruptos.
Estas previsíbilidades e déjà vus fazem-nos procurar noutro lado os (pequenos) prazeres que Ghost in the Shell terá para nos oferecer, e esses encontram-se no que é específico deste filme, como o casting de actores escolhidos; não deixa de ser irónico, então, que num festim visual e numa sociedade robótica, sejam pessoas com vísceras a serem o maior motivo de interesse por estas bandas. Comece-se pela anónima mas digníssima prestação de Juliette Binoche, que lá vai fazendo estes apartes big budget antes de se embrenhar nos Dumonts e nas Denis. Numa pequeníssima participação, Michael Wincott, homem que já não víamos num filme há uns vinte anos, desde Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995), de Kathryn Bigelow, curiosamente outra obra “futurista” e com ligações ao submundo cyberpunk. Ver “Beat” Takeshi Kitano é sempre um motivo de regozijo. Há que aproveitar estas míseras oportunidades de o ver na sala da “magia da tela”, agora que um filme seu não estreia em Portugal vai para década e meia. Está muto bem por aqui, ou seja, transmite a sensação de que está completamente desinteressado no que está a fazer. Tem uma grande one liner no filme, fazendo-nos aí lembrar de alguns dos seus melhores momentos. Michael Pitt está imperial na sua hilariedade (involuntária, seguramente) de vilão cibernético, e Scarlett Johansson volta, depois de Under The Skin (Debaixo da Pele, 2013), a evidenciar que é na impessoalidade que se sente mais confortável. Esfíngica, com minúsculos movimentos faciais, é o Schwarzenegger da nerdolândia.
A estas ligeiras recompensas, reconheça-se a Ghost in the Shell a capacidade de alguma fluidez narrativa, e, em contraciclo com a esmagadora maioria dos mastodontes actuais, não cair na grotesca armadilha do “vale tudo” formal nos seus momentos de maior explosão sensorial, onde impera a total indistinção de tempo e espaço. Não é muito, mas é o que é, e sendo assim, já ficamos relativamente gratos.
Ghost in the Shell é mais um passo no universo canibalístico da ficção científica, onde cada grande filme cita os anteriores grandes marcos e por outro lado introduz novas possibilidades formais e/ou narrativas. Não é este o caso, onde tudo já se viu noutros lados e onde não existe o plus de qualquer acrescento. Todavia, e tendo em conta as recompensas anteriormente assinaladas, não é uma total perda de tempo visitar o filme de Rupert Sanders.