Se abrirmos sensivelmente a meio esta terceira longa metragem de Oliver Laxe sai de lá de dentro um belo momento de cinema. Amador Arias, que havia regressado a casa, em Lugo na Galiza, por se encontrar em liberdade condicional após ter cumprido dois anos de pena por crime de incêndio florestal, procura integrar-se novamente na comunidade, em especial restabelecendo a relação com a sua mãe, Benedicta. Na cena em concreto, ele vai na carrinha da veterinária da zona, mulher bonita. Ambos transportam uma das vacas dele que tem de ser tratada numa pata. Em campo/contra-campo, os dois falam e sabemos que ele mente sobre o seu passado e que ela empatiza com ele. O ambiente é vagamente romântico: ele é a primeira vez que lhe apetece falar com alguém desde que saiu; ela conta um pouco da forma como chegou a viver no campo. A dado momento, ela coloca uma cassete de música. Ouvimos os primeiros acordes de Suzanne de Leonard Cohen e ela pergunta-lhe se gosta. Ele diz que não entende a letra, mas que simpatiza com a música. Talvez a música sirva melhor a cena do que o realismo das suas personagens. Mas passemos por cima disso. A dada altura, a câmara de Laxe abandona as suas personagens e vem fixar-se no olhar da vaca na carrinha de caixa aberta durante quase um minuto, ficando depois ainda com a paisagem solarenga do campo, após deixar o veículo. Cohen canta: “That you’ve always been her lover / And you want to travel with her / And you want to travel blind / And you know that she will trust you / For you’ve touched her perfect body / With your mind…”
Este é um pequeno momento de epifania, qualquer coisa de um tecido misterioso que envolve o amor, a atracção, num espaço qualquer entre as pessoas, os animais e os elementos concretos da terra. Mas mais do que isso, mostra como Laxe é um cineasta que procura enraizar a sua história na materialidade do espaço galego onde é natural. Se é verdade que Amador Árias e Benedicta Sánchez, actores não profissionais, transportam essa materialidade no corpo, não conseguem (nem tentam) esconder o facto desta ser uma história simples de um possível regresso após o crime, envolvendo o cuidar entre mãe e filho, mas também a culpa eterna que se entranha em nós e não sai, ou a tragédia de uma novo fogo anunciado. Tudo isso percebemos na primeira metade de O que arde (2019). Mas o que arde depois, realmente, é tudo o que Laxe vai filmar à volta.
Como exemplo, os interstícios das relações: é o filho que vem cuidar da mãe, octagenária, ou o contrário? E também os momentos em que as personagens se perdem na paisagem ou em que a câmara se foca num detalhe do todo que nada tem a ver com o fio condutor (na abertura, a camioneta que traz Amador e logo um outro camião). Ou melhor, os fios condutores ramificam-se sem avisar. É também um filme de enquadramentos metonímicos que nos remetem a um universo sensorial: a mãe de nariz fora dos lençóis com o som da chuva lá fora; o vapor do café da manhã; o crepitar dos ovos no fogão; o ar puro dos passeios com os animais a pastar; e podíamos avançar cena a cena.
Em suma, O que arde é a balada, por vezes lírica, outras vezes frágil e delicada, de um homem marcado, em suspensão. E o filme dessa balada é um olhar incendiado pela beleza e fulgurante detalhe de todos e de tudo o que compõe o universo da ruralidade galega.
A filiação de toda esta concretude podíamos ir buscar a várias fontes. Talvez a mais evidente se veja numa das cenas antes do genérico, segmento bressoniano com o processo do pirómano a passar de mãos em mãos, sem rostos, um destino explicado do passado e do futuro eminente. Economia de meios, possibilidades em aberto. Nos últimos anos, para nos chegarmos mais ao presente e a filmes da família de O que arde, vimos Alva (2019) de Ico Costa ou Western (2017) de Valeska Grisebach, ambos com personagens calados, olhares-ecrã, radares da realidade, que vão enchendo até transbordar o interior com os golpes da vida.
Portanto, o fogo que vai na cabeça de Amador é metáfora e não é. Os eucaliptos são mesmo maléficos, com raízes quilométricas, mas a quebra do amor, a suspeição dos vizinhos, tudo isso também incendeia. E talvez ainda um espaço que arde na memória de crescimento da imaginação de Oliver Laxe. O que nos remete para a derradeira filiação. O que há de maravilhoso nos espaços da ruralidade da Galiza que tenha originado um novo impulso criativo: o denominado novo cinema galego? Juntamente com Oliver Laxe, contamos pelo menos Eloy Enciso [Arraianos (2012); Longa Noite (2019)] e Lois Patiño [Costa da Morte (2013); Lúa vermella (2020)]. Dos três, Laxe é o mais realista e clássico. Enciso e Patiño partem do mesmo espaço para o transfigurar, com uma dimensão política e alegórica o primeiro, com um tom sobrenatural e maravilhoso o segundo.
Em suma, O que arde é a balada, por vezes lírica, outras vezes frágil e delicada, de um homem marcado, em suspensão. E o filme dessa balada é um olhar incendiado pela beleza e pelo fulgurante detalhe de todos e de tudo o que compõe o universo da ruralidade galega .