Outro dia, pensando em como iniciar uma aula, optei por uma singela reflexão. Os alunos pediram que eu fizesse um texto sobre o assunto. No princípio, achei que não era o caso. A reflexão não era boa o suficiente para isso e talvez não fizesse mais sentido fora daquele curso. Mas quase tudo que bons alunos pedem fica ressoando em mim. Então pensei que poderia ser o caso de mais uma Recordação da Casa de Alpendre, de uma aula que se desenrolou de forma satisfatória muito por causa dessa reflexão. Retorno a ela.

Creio que há três estágios bem definidos em qualquer cinefilia. Três entre outros, mais avessos a categorizações e facilmente mutáveis ou transitórios, e por isso um tanto indefinidos. São etapas da formação de um cinéfilo que podem se alternar mesmo em críticos experientes, que já teriam atravessado as três e estariam ainda sujeitos a cada uma delas, dependendo de um determinado contexto. Não é uma reflexão acabada, pois não acredito nisso. É, como todo pensamento, algo em construção, que pode ser modificado, continuado e até bombardeado, por mim ou por quem quer que o entenda.
O primeiro estágio é o da descoberta dos cânones. No início da cinefilia, tendemos a ir atrás dos filmes obrigatórios, de cineastas de que todos falam, os chamados cineastas de grife: Fellini, Bergman, Hitchcock, Tarkovski, Kubrick, Scorsese, Truffaut, mais recentemente Varda, Almodóvar… Sei que esse estágio se encontra abalado pela formação mais irregular do cinéfilo de hoje, habituado aos torrents e redes sociais, que verão Ryusuke Hamaguchi antes de terem visto qualquer filme do Ozu ou do Mizoguchi. É normal essa ordem das coisas, pois o interesse em cinema contemporâneo faz parte desse apetite cinéfilo e muitas vezes alternamos filmes canônicos e filmes da moda conforme nos sentimos mais afeitos ao visionamento de um ou outro. Esse fenômeno da alternância, penso, se acentuou em tempos de muitas ofertas do cinema contemporâneo, com ampla desvantagem para o cinema canônico. Mas o cinéfilo não estará apto à atividade crítica enquanto permanecer nesse estágio. O que não impede, no jornalismo desviante de nossos dias, que algum cinéfilo de primeira ocasião escreva sobre um filme do Godard sem ter visto mais do que três outros desse mesmo realizador, ou mesmo nenhum outro. No caso, escrever não está errado, caso a pessoa não queira nos enganar fazendo um tratado sobre um cineasta pouco visto e estudado por ela.
O terceiro estágio é o que todo o cinéfilo precisa almejar para se tornar um crítico, aquele em que nos tornamos monstros de inocência e rigor.
O segundo estágio é o da vontade de questionar os cânones dia sim, dia também. Fellini e Bergman se tornaram, há muito, cineastas obrigatórios, logo, questionáveis. “Será que eles são assim tão bons? Aposto que não são tudo isso.” A vontade de ser do contra casa com a falsa impressão de que assim caminha o amadurecimento de uma cinefilia. Os outros cineastas mencionados no parágrafo anterior também se tornaram canônicos em algum momento, e por isso podem ser alvos de cinéfilos neste segundo estágio. Quando se torna impossível questioná-los, os alvos passam a ser alguns de seus filmes. Outro dia, por exemplo, me surpreendi com um grupo de cinéfilos diminuindo Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958), de Alfred Hitchcock. Esse segundo estágio pode também ser confundido com miopia temporária.
Antes de falar do terceiro estágio, vale um pequeno desvio. Tem circulado na internet uma lista que Spike Lee fez dos 87 filmes essenciais, que todo cinéfilo precisa ver. Uma das reclamações percebidas foi de que essa lista teria filmes muito óbvios, que Spike Lee não quis inventar a roda. Lembro então que eu, Bruno Primor e Joel Yamaji estabelecemos, na Escola Inspiratorium, onde ministrávamos aulas de história do cinema e direção, que aluno algum pegaria em câmera antes de ter visto Sunrise (Aurora, 1927), de Friedrich W. Murnau, pelo menos duas vezes. Spike Lee não o colocou em sua lista. Em compensação, está lá o terrível Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund. Alertado para a ausência de filmes realizados por mulheres, Lee adicionou mais oito títulos, aumentando a lista para 95 filmes. Entre os oito, quatro são de Lina Wertmuller. Matou dois coelhos: acrescentou filmes de autoras, sendo seis deles inesperados: os de Wertmuller mais Daughters of the Dust (1991), de Julie Dash, e Sugar Cane Alley (1983), de Euzhan Palcy. Pensando bem, estes dois últimos têm tudo a ver com a militância do cineasta. A obviedade da maior parte dos filmes, por outro lado, tem uma razão. Para se ver filmes com os olhos livres, é necessário ter visto bem os óbvios, ter questionado esses mesmos filmes, quando necessário, e ter finalmente passado para a fase seguinte, em que os questionamentos não surgem apenas pela obrigação de questionar. É a fase que exponho a seguir.
O terceiro estágio então é o que todo cinéfilo precisa almejar para se tornar um crítico: ver os filmes com os olhos livres. Creio que seja melhor pegar emprestado Michel Mourlet, que em seu texto “Sobre uma arte ignorada” (1959), publicado em itálico nos Cahiers du Cinéma por não refletir completamente a visão da revista, escreveu que “essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela, monstro de inocência e de rigor…”.
Chegando a esse terceiro estágio, tornamo-nos monstros de inocência e rigor, mas devemos cuidar para regressarmos o mínimo possível aos outros dois estágios, que jamais são totalmente superados. É certo que eventualmente regressaremos, sobretudo ao segundo, quando somos autoristas e nos deparamos com algum realizador de que não gostamos, ou quando estamos cansados, de mau humor, com alguém nas proximidades que acende a tela do celular de cinco em cinco minutos ou outras aberrações desse tipo. Mas seria interessante perceber depressa para administrar um forte antídoto.
Falei anteriormente em jornalismo desviante, mas há também alguns estágios desviantes da cinefilia, que obviamente são mais nocivos do que o primeiro ou o segundo estágio de que falava há pouco. Vão desde o cinéfilo que ama a si próprio mais do que aos filmes até aqueles que perdem tempo soltando indiretas em redes sociais, passando por um outro tipo muito em voga, o dos senhores e senhoras “verossímeis” (para voltarmos a Hitchcock e sua genial tirada), que costumam se queixar quando o filme não apresenta o traço de realismo esperado. Creio que esses estágios desviantes são tão perniciosos que raramente permitem recuperação. E são, tristemente, os que mais se reproduzem na cinefilia contemporânea.