“Uma das coisas que procuro nos meus filmes é a metáfora, porque continuo, depois de todos estes anos, muito orientado para a Literatura na minha abordagem ao Cinema”
David Cronenberg
Um homem contorce-se numa cama, onde está amarrado. Em contra-campo encontramos um conjunto de espectadores, que ocupam lugares numa plateia improvisada de um armazém clandestino, numa espécie de sótão. Enquanto ouvimos ruídos que insinuam uma comunicação telepática, a imagem mescla a assistência com o homem deitado. Scanners (1981) replica a ideia de experiência científica associada a uma intervenção pública e tangente a uma performance artística, que tínhamos encontrado em sequências chave do anterior The Brood (A Ninhada,1979). Cameron Vale (Stephen Lack), o homem preso à cama, é um scanner que tinha sido detido por um conjunto de homens liderados pelo cientista Dr. Paul Ruth (Patrick McGoohan). O cientista explicará a Cameron o que é um scanner: uma aberração da natureza, um humano dotado de uma percepção extra-sensorial, resultado de uma perturbação de sinapses, que se designa por telepatia. É uma transformação, ou doença, de causa desconhecida, segundo afirma o cientista, talvez resultado de uma radiação. Um humano dotado de poderes excepcionais, algo que percorrerá a obra de Cronenberg, na procuração de mutações que geram “uma inexpectável habilidade física através de medicação não ortodoxa”, conforme identificou Chris Rodley. Pouco depois, Dr. Ruth apesar de assumir os perigos, definirá os scanners como os seres humanos mais notáveis que alguma vez existiram no planeta, que poderão trazer um esplendor que a nossa sociedade nunca encontrou. São os primeiros indícios da construção do cientista alienado, de extrema dedicação ao projecto, portador de um discurso utópico, que fazem dele uma das variações de um personagem recorrente em Cronenberg: Dr. Frankenstein.
A apresentação da instituição científica, a empresa ConSec, serve, também, para expor a segunda, e sucessiva, intervenção pública, em mais uma variante do encontro da ciência com a arte, uma dramaturgia científica. Um homem, representante da ConSec, informa a plateia de que vai analisar (scan) a mente de todos as pessoas presentes na sala, uma de cada vez, sendo que aquela experiência pode revelar-se um pouco dolorosa, com um conjunto conjecturável de efeitos secundários: hemorragias nasais, dores de ouvidos, cólicas e náuseas. Um voluntário junta-se ao homem na mesa. O anfitrião pede-lhe para pensar em algo. Os dois homens iniciam um diálogo mental acompanhado de trejeitos nos rostos, com pequenos movimentos do tronco. A audiência movimenta-se nas cadeiras. O homem que era suposto ser o scanner e estar a liderar a demonstração é quem evidencia sofrimento e perda de controlo naquele duelo. Um ruído agudo acentua-se à medida que o voluntário assume o controlo da mesa. A cabeça do homem da organização rebenta, uma das imagens extremas de Cronenberg, que fez correr muita tinta e reputação para o cineasta, uma imagem catalogável em conjunto com a mulher-cadela de The Brood: imagens que têm de ser mostradas, que não podem ser sugeridas e ficar fora de campo, pois escapam às concepções da imaginação do espectador. O voluntário é detido, para pouco depois se evadir, manietando um conjunto de homens através das acções da mente. Mais tarde descobriremos tratar-se de Darryl Revok (Michael Ironside).
A cabeça foi desenvolvida por Chris Walas, director de efeitos especiais da Lucas Film, que voltaria a colaborar com Cronenberg em The Fly (A Mosca, 1986) e Dead Ringers (Irmãos Inseparáveis, 1988). A cabeça, “suave ao toque e ligeiramente achatada como a carne real” foi ao encontro do que o cineasta desejava. O establishing shot foi definido por detrás e de um ângulo ligeiramente acima do corpo. “Quando a explosão atinge a cabeça”, diz Cronenberg, “o rosto rebenta de dentro para fora e como que balança para baixo do pescoço”. Resultou num plano “inacreditável”, “surreal e encantador”, tão “horrível quanto belo”. Os produtores ficaram alarmados quando viram as rushes e procuraram influenciar o realizador a utilizar uma solução com uma violência “menos gráfica”, mas Cronenberg disse-lhes que “já tinha o que queria”.
O trabalho de som é um aperfeiçoamento das ideias de Stereo (1969), no uso de sons de criaturas marinhas cortados por estranhos diálogos e ruídos ásperos, que procuram colocar-nos nas cabeças dos scanners e dos seus processos de telepatia. A primeira parceria de Cronenberg com Howard Shore ocorrera no anterior The Brood , com o compositor a treinar a mão, ainda sob a influência das sinfonias clássicas do terror, na esteira de Bernard Herrmann e de Psycho (Psico, 1960). Em algo que se vinculará às imagens futuras de Cronenberg, até às guitarras metálicas de Crash (1965), em Scanners Howard Shore oferece ao cineasta algo muito próximo da concepção de uma ópera do horror.
Com o desenrolar da narrativa, ficam expostas as aspirações diferenciadas do cientista e da instituição, que apenas têm em comum a noção de que a mente pode ser uma arma muito poderosa. A ConSec é uma empresa de segurança internacional que perspectiva usar os mais de 200 scanners identificados como um arsenal de agentes infiltrados em organizações políticas e militares. A ambição de Dr. Ruth é outra, é afirmar a telepatia, não apenas como uma mera leitura do pensamento, mas como uma conexão directa entre dois sistemas nervosos separados pelo espaço. Por entre estes duelos, há um pequeno episódio que se revela muito significativo, metafórico. É identificado um scanner interpretado por Robert Silverman, que vimos em The Brood a habitar um corpo transformado, que se tinha revoltado contra o personagem. Aqui, Silverman é Benjamin Pierce, um scanner dissidente, que concebe esculturas enquanto vocifera que é a arte que o mantém são, que lhe permite a catarse.
À organização clandestina liderada por Revok, que incluía um grande número de scanners, o filme junta-lhe uma pequena comunidade, igualmente subversiva, mas em oposição, que procurava usar os poderes telepáticos com intuitos benevolentes, como uma pequena seita pacifista. Atacados pelo bando de Revok apenas se salvará a líder feminina, Kim (Jennifer O’Neill) que dirá a Brandon: “nós eramos o sonho, ele (Revok) o pesadelo”. A empresa onde se produz efemerol, uma substância que se revelará decisiva na narrativa, é um dos lugares contruídos por Cronenberg para Scanners. Naquele que é o seu primeiro filme de acção, com evidentes afinidades com a literatura de ficção científica, sugere-se um mundo futurista de tonalidades sombrias, distópicas. Paralelamente à larga presença de estações subterrâneas de metropolitano, como metáforas de lugares apelativos para encontros clandestinos para promover a manipulação, foi preciso desenhar “um mundo inventado”, como indica Cronenberg, “um mundo futurista sem realmente dizermos que é futurista”, na concepção de “salas de conferência e de computadores”, lugares que “não era possível encontrar” e por isso “tiveram de ser produzidos”.
A consistência de Paul Ruth como variante de Dr. Frankenstein intensifica-se nos sucessivos encontros com Cameron, que ele trata como se fosse uma criatura gerada por si, pelo seu método e pela ciência, em algo que transpõe o mero trabalho de investigação. Pouco depois, o espectador descobrirá que Brandon e Revok são filhos biológicos de Dr. Ruth, uma espécie de Abel e Caim, os primeiros scanners (os mais poderosos da legião), os protótipos da experiência que resultou da ingestão de uma substância por mulheres em período de gestação. Dr. Ruth acabará sacrificado na tentativa de preservar o projecto e as suas criaturas, não sem antes assumir a culpa pelos danos, de forma catártica. No entanto, Ruth ainda testou o seu projecto num duelo homem-máquina, em mais uma influência da literatura de ficção científica. Cameron introduz-se, então, no conjunto de computadores da ConSec, produzindo um scan ao sistema nervoso da máquina, como faria telepaticamente com uma pessoa. É particularmente engenhosa a forma visual com que Cronenberg descreve a activação da ligação homem-máquina, com as sequências que percorrem transístores e circuitos, até que a mente de Brandon induz o colapso do sistema do computador. É mais uma metáfora de Cronenberg que reitera que, apesar do poder que as máquinas e os media dispõem, os humanos continuam, através do seu circuito cerebral, a ter a capacidade para interpretar as imagens, discernir a sua difusão e avaliar o seu contexto.
Curiosamente, o projecto seguinte de Cronenberg, depois do êxito comercial de Scanners, foi a adaptação do Frankenstein de Mary Shelley. Na escrita do guião, o cineasta procurou “reter o conceito original” do romance, distanciando-o da concepção do remake do filme de 1931 de James Whale, para a construção de uma “criatura inteligente, um homem sensível”, distante da mera besta de que os filmes anteriores aproximaram o personagem. Cronenberg pretenderia, também, “soltá-lo das armadilhas na época”, e colocar a narrativa na contemporaneidade. O projecto nunca se materializou, mas na obra futura do realizador o personagem esteve várias vezes à espreita.
Scanners resolve-se num duelo final entre os irmãos, “num mundo onde literalmente as mentes e os corpos se batem”, como referiu Cris Rodley, numa antecipação de Dead Ringers, “onde dois gémeos partilham o mesmo sistema nervoso, mas estão encurralados em corpos separados”. Na luta mental entre Cameron e Revok, as veias desenham-se nos seus braços e rostos, numa exteriorização do poder através da fisiologia, numa mutação acelerada. Cameron deixar-se-á imolar, nas imagens extremas de Cronenberg, onde o fogo é uma metáfora para o conhecimento e a mutação, numa imagética de transformação científica e regressão primitivista, mesmo que efémera: os dois homens urram como animais, em corpos de criaturas humanas sofisticadas, numa dualidade que se dissolve. Nesta batalha digital até à morte, “Cameron Vale sobrevive numa mistura do bom com o mau tipo”: Cris Rodley diz-nos que Cronenberg está a sugerir que “esta nova criatura é uma mistura dos dois irmãos, que eles se tinham fundido”.
Um filme que coloca a ênfase na acção e numa narrativa de sensações, mas que não se solta de uma das obsessões do cinema de Cronenberg, da fusão das entranhas com a mente, em fazer do pensamento algo físico, exteriorizável. O cineasta confirma que Scanners é a continuação da “cura do cisma cartesiano”, na “tentativa de apelar a todas as facetas da existência humana”, através do “encontro do intelecto com a víscera”.