Contaminado pela prescrição de Jean Genet, William S. Burroughs diz que temos de nos permitir criar personagens e situações que possam resultar em perigo para o escritor de vários modos – até fisicamente. Ele insiste que escrever deve ser reconhecido e aceite como um acto perigoso. Um escritor não deve ser tentado a evitar a verdade só porque sabe que o que criou pode regressar e assombrá-lo. É a natureza da barganha, da negociação que produzimos na máquina de escrever.
– David Cronenberg
Cronenberg reiterou em várias entrevistas a influência da Literatura, como uma sombra imensa, com realce para a convocatória das obras de Nabokov, Ballard e principalmente Burroughs, o que o colocou em dificuldades nos seus filmes iniciais, designadamente na faculdade do cineasta em “expressar a própria voz”. Em Naked Lunch, livro de Burroughs de 1959, as actividades do candiru (peixe de paragens tropicais) são descritas como “lascivas”: “pequenos peixes ou minhocas como enguias… longamente apadrinhando certos rios de uma reputação doentia”. O cineasta assumiu que esses pequenos peixes apresentam claras afinidades com o “parasita venéreo/fecal” de Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975), sendo que um e outro “têm acesso às suas vítimas através da genitália”. Mitch Tuchman identificou uma densa utilização nos primeiros filmes do cineasta da iconografia de Burroughs, embora isenta do “exaltado moralismo” do escritor: em Rabid (Coma Profundo, 1977) o falo-seringa que cresce na axila de Rose após o transplante de pele encontra uma equivalência na Literatura de Burroughs que aponta que “a partir de tecido indiferenciado, órgãos sexuais brotam em todo o lado, crescem em qualquer tipo de carne”; a obsessão de Burroughs por “telepatia e controlo” é o eixo da narrativa de Scanners (1981).
Para Cronenberg, a adaptação de Naked Lunch era como um “destino cinemático”, os “sistemas nervosos” – do escritor e do cineasta – “estavam ligados há anos”: “partilhavam pesadelos e visões”, os seus percursos foram marcados pela crítica e a censura às “imagens extremas”. O cineasta reiterou que o artista “não é um mero cidadão da sociedade”, pois deve entender como, senão uma obrigação, uma opção manifesta a exploração “de todos os aspectos da experiência humana”, não se coibindo de indagar os “cantos mais escuros”, se for para aí que o trabalho aponte. O artista deverá, então, soltar-se das preocupações manifestadas pelos vários “segmentos da sociedade”, designadamente o que uns consideram como um “bom” ou um “mau comportamento”, uma exploração benévola ou mal-intencionada. O artista não sendo, portanto, um mero cidadão, deverá nestas abordagens libertar-se de “qualquer responsabilidade social”. Se o artista estiver permanentemente a analisar as suas acções já “não está a ser artista”, correndo o risco de bloquear o processo de criação ou, em alguns casos, após esses exames, poderá “desistir” ou implementar mudanças que condicionam em definitivo a pertinência do objecto artístico. Cronenberg convocava para aqui as palavras de Nabokov: “a sua responsabilidade como artista é de se permitir uma total liberdade”. A coexistência entre a sociedade e a arte foi sempre difícil, de permanentes tensões: “se a arte é anti-repressora, então arte e civilização não foram feitas uma para a outra”. Por isso, Cronenberg quando escreve nunca “censura o seu imaginário” e liberta-se de antecipar críticas desfavoráveis ou reparos de natureza política. Se não ignorar “essas vozes”, “ficará paralisado”, pois nada daquelas interpelações “pode ser resolvida” pela arte. Entende que deve promover o regresso de uma voz de outro tempo, ecoada antes das “estruturas sociais se terem desenvolvido”, para permitir a emissão das “terríveis verdades”. Assim, “ao ser irresponsável será responsável.”
Segundo Chris Rodley, a adaptação de Naked Lunch era para Cronenberg como “voltar a casa”. Ao utilizar a persona e o trabalho literário de Burroughs, depois de um percurso como realizador que afrouxara a “intimidação pela importância e influência do texto”, na concretização de uma das suas máximas: a ideia de “mostrar o impossível de ser mostrado, expressar o impossível de se dizer”, “filmar o impossível de filmar”. Assim o projecto tinha como objectivo encontrar uma “equivalência cinemática” para Naked Lunch ao “fundir a sua já desenvolvida sensibilidade cinemática” (instruída em boa parte pelo imaginário de Burroughs), intersectada com a biografia do escritor e integrando montagens de textos, “nem todos” de Naked Lunch. Em 1985, Cronenberg viajou até Tanger com Jeremy Thomas (o seu produtor) e com Burroughs, que aí regressava depois da escrita de textos nos anos 1950, que conduziram à compilação de contos Interzone. O cineasta só voltou ao projecto em 1989, no início de um processo que ambicionava uma fusão com Burroughs.
Mesmo tomando consciência da impossibilidade de substituir o escritor e os seus atributos, quando Cronenberg “transcreveu palavra por palavra uma descrição da centopeia gigante” para depois desenvolver uma cena do guião, “sentiu que poderia ser uma frase escrita por Burroughs”, pelo que “a fusão tinha acontecido”. Burroughs não participou da escrita do projecto, mas quando o guião “emergiu”, o escritor “deu a sua bênção”.
Cronenberg assinalou que se enveredasse por uma “tradução literal para o ecrã” de Naked Lunch, obter-se-ia uma “sátira social”, algo de “sórdido”, mas que perderia “a beleza”, o “conteúdo emocional” e a “potência do estilo literário de Burroughs”. O cineasta identificou “dois problemas principais”: a duração, pois o resultado seria “a mãe de todos os épicos”, com um custo gigantesco; o resultado seria “banido em todo o lado”, pois “nenhuma cultura o suportaria”. Aliás, essa adaptação integral seria até um obstáculo ao livro, na medida em que “tal como a Bíblia”, Naked Lunch é algo em que “se mergulha”, não se lê de princípio ao fim, experimenta-se e encontra-se “um bocadinho aqui, outro acolá”, cruzam-se referências e com o passar do tempo descobrimos “as nossas partes favoritas”, até se tornar em algo próximo de um manual: “procuramos quando precisamos e encontramos sempre coisas”. Consciente desta impossibilidade, abandonou o projecto da “tradução directa” e de forma a “ser fiel” à vida e à obra do escritor, iniciou o processo de fusão com esse material.
Durante o “processo catártico” que constituiu a escrita do guião, Cronenberg começou por “escrever as coisas à maneira de Burroughs”, inebriado pela forma como o escritor “tinha cristalizado” para o leitor aquelas “imagens de adição” e da “consciência do corpo”. O cineasta teve a sensação momentânea de que “se Burroughs morresse ele poderia escrever o seu próximo livro”. Mesmo tomando consciência da impossibilidade de substituir o escritor e os seus atributos, quando Cronenberg “transcreveu palavra por palavra uma descrição da centopeia gigante” para depois desenvolver uma cena do guião, “sentiu que poderia ser uma frase escrita por Burroughs”, pelo que “a fusão tinha acontecido”. Burroughs não participou da escrita do projecto, mas quando o guião “emergiu” (no final de 1989), o escritor “deu a sua bênção”, como confirma Chris Rodley.
O primeiro acto de Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) estabelece a ação em Nova Iorque, em 1953. William Lee (Peter Weller) personifica William S. Burroughs, simultaneamente criador e personagem dentro do filme. As primeiras sequências introduzem desde logo um diálogo entre o acto de escrever e as adições. Lee encontra-se com dois amigos escritores num café, depois de um dia de trabalho como exterminador de insectos, na primeira correspondência biográfica com o escritor. Os dois amigos – Hank (Nicholas Campbell) e Martin (Michael Zelniker) – que irão acompanhar o protagonista ao longo do filme, assegurando uma possibilidade de olhar exterior, representam respectivamente Jack Kerouac e Allen Ginsberg, dois dos nomes cimeiros da Beat Generation com quem Burroughs privou desde 1944, juntamente com Carl Solomon, Herbert Huncke e Joan Vollmer, que esteve casada com o escritor entre 1946 e 1951. Hank e Martin discutem a reescrita: um deles é formalmente contra, pois é uma forma de censura, de impedir o fluxo dos pensamentos mais honestos e autênticos; o outro, pelo contrário, diz que a culpa o impele a reescrever incontáveis vezes, à procura de todas as perspectivas. Lee responde-lhes com uma intimação: extermina todo o pensamento racional. O exterminador diz que deixou de escrever quando tinha dez anos, por considerar o acto demasiado perigoso.
A realização de Cronenberg não usará truques de linguagem, nem distorções da imagem, para assinalar o estado de alucinação do protagonista, como uma normalização institucional do delírio; indicará apenas, e muito pontualmente, a perspectiva de outros personagens que desmascara o delírio de Lee, a refrear as imagens extremas e a presença de criaturas estranhas que apontarão os cumes das alucinações.
O raccord para a cena seguinte é assegurado pela informação de que é Joan (Judy Davis), a mulher de Lee, que tem feito desaparecer o seu pó de extermínio de baratas, ao injectar-se com ele. Numa leitura do moralismo de Burroughs, uma reserva da sua educação na St. Louis (Missouri) do início do século XX, a mulher é retratada como promíscua, indicando o caminho do vicio ao marido: o pó de exterminador providencia uma moca literária, kafkiana, fê-la sentir-se como uma barata. O filme adquire, então, um tom policial irónico, que manterá, numa celebração da ambição de Burroughs em tornar-se agente secreto: segundo ele, esteve próximo de ingressar na CIA, como afirmou no documentário Burroughs The Movie (1983), de Howard Brookner, num percurso que passou por Harvard, pelo estudo de Medicina em Viena durante seis meses, até à convocatória para integrar o exército americano (em 1942), do qual foi dispensado pouco tempo depois.
A antecâmara de Lee na “zona”, no território da alucinação, de onde não voltará a sair, ocorre curiosamente na esquadra da polícia, depois de ser detido por posse de substância narcótica. A realização de Cronenberg não usará truques de linguagem, nem distorções da imagem, para assinalar o estado de alucinação do protagonista, como uma normalização institucional do delírio; indicará apenas, e muito pontualmente, a perspectiva de outros personagens que desmascara o delírio de Lee, a refrear as imagens extremas e a presença de criaturas estranhas que apontarão os cumes das alucinações. Um insecto gigante, ainda na esquadra, comunica a Lee que ele é o seu novo agente e ordena-lhe que mate Joan, pois a mulher é uma agente da Interzone. Em mais um raccord notável, Cronenberg juntará ao pedido do insecto para lhe esfregar o pó de extermínio nos lábios a um pedido idêntico, de Joan no domicílio conjugal. Ainda antes do culminar desta primeira parte da narrativa, o filme apresenta-nos Dr. Benway (Roy Scheider), o personagem que arquitecta as poções e as correspondentes doses que revelam um vasto conhecimento em Naked Lunch, numa metáfora para o evidente interesse de Burroughs na medicina e nas suas drogas, algo partilhado pelos universos e experiências de Cronenberg e Ballard.
É também nesta fase que a banda sonora do filme se impõe, numa sequência em que Lee sofre uma forte agonia no mercado perante a visão de centopeias secas, o que eleva o saxofone de Ornette Coleman a um tom paroxístico, a assinalar a entrada definitiva na “zona” como um épico. A banda sonora de Naked Lunch foi composta e arranjada por Howard Shore (colaborador habitual de Cronenberg) a meias com Coleman, derivando de um ritmo improvisado, de jam session a tonalidades em que os saxofones são a expressão da alucinação de Lee. A relação de Burroughs com a música de Coleman tinha histórico e por isso Shore usou Midnight Sunrise: o escritor esteve na gravação do tema, durante o registo do álbum Dancing in your Head, em 1973.
O primeiro acto de Naked Lunch fechará com a morte de Joan. Depois de injectar a mistura de pós, seguindo a prescrição do Dr. Benway, Lee diz-lhe: acho que está na hora da nossa rotina à William Tell. Joan coloca um copo de vidro sobre a cabeça. Lee aponta e dispara. O copo rola no chão, intacto. Joan colapsa, o tiro atingiu-a no eixo da fronte. Apesar da insanidade destes comportamentos, a morte de Joan Vollmer, mulher do escritor, ocorreu em circunstâncias muito aproximadas à encenação de Cronenberg. Allen Ginsberg corroborou o relato de que nessa noite no México, em Setembro de 1951, com testemunhas e com os dois membros do casal fortemente embriagados, a frase de Burroughs foi formulada e o tiro ao alvo também (com um calibre 38 mm), sendo que o escritor manteve esse apelo pelas armas e a prática do tiro ao alvo, como um cidadão americano conservador, sulista. Aliás, o escritor encerrava as contradições de uma América interior, longe das grandes cidades e em Burroughs The Movie mostra a sua colecção de armas, que incluía facas, cassetetes e várias armas de fogo. Este americano e os seus paradoxos foram também explorados nas suas inúmeras aparições públicas já na velhice, em que se tornou um ícone associado a vários formatos de cultura popular e em que a sua imagem conservadora, o seu chapéu tradicional e o fato de corte sóbrio, colidiam com leituras das suas obras, que expunham uma literatura e uma mundividência exploratórias. Mas, ainda de volta ao assassinato de Joan Vollmer, Ginsberg revelou que acreditava que foi a mulher quem impeliu Burroughs a fazer aquilo.
O surrealismo dos comportamentos estendeu-se ao processo judiciário: com o auxílio de um advogado americano e depois de duas semanas de cárcere, as autoridades do México libertaram o escritor, aceitando as alegações de insanidade momentânea e acidente, que foram confirmadas por testemunhas. Ainda em Burroughs The Movie, Ginsberg diz que foi a partir deste episódio que Burroughs começou a escrever a sério (um escritor tardio, com cerca de 35 anos), em algo confirmado pelo escritor que refere que o seu primeiro romance, Junkie, foi escrito nesse período no México e publicado em 1953, com o auxílio de Ginsberg e Carl Solomon.
Naked Luch, o livro, compõe-se como um mapa de adições e manual da sua utilização e é descrito pelo próprio escritor como um romance pornográfico em mais uma afinidade com Cronenberg, que assume que os seus filmes fazem dele um pornógrafo, aos olhos de muitos.
O filme validaria essa leitura. No seu epílogo, Lee e Joan Frost (uma espécie de duplo da sua mulher) dirigem-se em fuga para Amnexia. Mais uma vez no espírito do policial e da espionagem, na entrada dessa cidade da ficção, dois agentes (os mesmos da detenção inicial, aqui uma polícia de estado) pedem a Lee uma prova de que ele é escritor. Ele mostra uma caneta, mas não é suficiente. Lee volta-se para trás no automóvel e acorda Joan. A história repete-se: estava na hora da sua rotina de William Tell. A mulher acede e coloca o copo sobre a cabeça. O tiro acerta na cabeça da mulher. Os agentes estão satisfeitos com a prova e deixam-no atravessar a fronteira. Bem-vindo a Amnexia, dir-lhe-ão: aquele tiro, aquela morte, espoletou um escritor. A diálogo filosófico da finitude e da morte que Cronenberg está sempre disponível para abordar, levou-o a inquirir Burroughs sobre o tema. O escritor assumiu “o medo da morte”, de que acções erradas durante a vida resultem “em más companhias” depois da morte. Essas acções podem derivar de determinado contexto “pelo que escrevemos, pelo que revelamos, pelo que criamos”, como um desafio permanente. Por isso, Cronenberg colocou em Naked Lunch essas várias criaturas que dizem a Lee o que fazer, que procuram “influenciá-lo”, para que ele se interrogue quanto às implicações daquelas acções.
Interzone, Tânger
Burroughs estabeleceu-se em Tânger em Janeiro de 1953, onde ficou durante oito anos numa atitude exploratória de adições várias, tendo escrito com particular intensidade nos dois primeiros anos. É a partir deste material que foi coligido Naked Lunch, publicado pela primeira vez em 1959. O livro, como um mapa de adições e manual da sua utilização é descrito pelo próprio escritor como um romance pornográfico em mais uma afinidade com Cronenberg, que assume que os seus filmes fazem dele um pornógrafo, aos olhos de muitos.
Na primeira sequência na Interzone (a cidade zona) de Naked Lunch, há vários homens que escrevem à máquina num café extravagante, simultaneamente artificial, mas de tonalidades que remetem para o norte de África. Planeada como a primeira produção de Cronenberg em locais no estrangeiro, em exteriores que seriam rodados em Tânger, a guerra do Golfo impediu o cineasta de filmar no norte de África, segundo Chris Rodley, e a “produção tornou-se numa jornada interior do realizador”, que intensificou “a dinâmica básica do guião”, no estabelecimento de uma “confusão perturbadora”, entre “realidade e alucinação”, na “desintegração da personalidade” do duplo de Burroughs. Para o espectador, esta Tânger simulada em estúdio revela-se conveniente ao filme, pois o artificio é mais verosímil na definição da zona, na transformação da realidade e da percepção do indivíduo, do que uma rodagem nas ruas e edifícios de Tânger poderia eventualmente estabelecer. Esta Interzone fabricada num estúdio de Toronto é um lugar exótico, propício a comportamentos exploratórios (droga e sexo), que simultaneamente libertam o protagonista enquanto o enredam e armadilham o seu quotidiano em conspirações dominadas pelo acto de escrever, personalizadas nas máquinas de escrever.
Lee trocara uma arma de fogo por uma máquina de escrever (Clark Nova), antes de ingressar na Interzone. Naquele café, a ligação mecânica dos dedos dos vários utilizadores com as teclas das máquinas, na relação com a projecção dos caracteres nas folhas de papel, é intensificada: o toque e a conexão antecipam uma ligação orgânica entre o utilizador e a máquina. A produção dos relatórios de Lee é uma metáfora para a Literatura de Burroughs, que em Tânger produzia relatos das suas explorações, dos seus mergulhos delirantes, sob a forma de cartas que enviava para os amigos de Nova Iorque, e que muitos prefeririam que não tivessem sido publicadas, como um documento de conteúdo secreto. Num elogio ao orgânico em detrimento da tecnologia, que a obra de Cronenberg reiterou, a máquina de Lee assume a forma de um insecto e começa a escrever sozinha, num claro paralelo com a escrita automática dos surrealistas, a dar a ver o fluxo do inconsciente, uma expressão do mundo interior que comanda a actividade do escritor. A máquina dita o relatório, pede para que o escritor seja mais vigoroso. Lee corresponde e a máquina geme, elogiando a formulação do escritor e o seu ritmo. A máquina continua a dar instruções ao agente e enuncia: a homossexualidade é o melhor dos disfarces.
Antes de começar a escrita do guião, Cronenberg avançou a Burroughs que a presença da homossexualidade seria “afrouxada”. Há um paralelo ainda trazido de Dead Ringers (Irmãos Inseparáveis, 1988), pois o livro usado por Norman Snider e Cronenberg para a adaptação – Twins de Bari Wood e Jack Geasland (1971) – apontava para a ideia de que um dos gémeos ginecologistas era homossexual, insinuando que os dois manteriam actos sexuais, o que dirigia a narrativa para a temática da homossexualidade e do incesto. A ser assim, diz Cronenberg, os dois gémeos “seriam diferentes numa questão essencial” e perder-se-ia um dos seus focos essenciais, que apontava para a “similitude” entre eles. Um dos comentários de Norman Snider à primeira versão do guião de Naked Lunch é que lhe faltava o tom “agressivo e predatório” da homossexualidade de Burroughs.
Cronenberg, que não se inibe de afirmar que escreve do ponto de vista de um heterossexual, diz que pretendia uma fusão do escritor com o seu trabalho, e ao ler “as suas cartas, prefácios e outros textos”, entendeu que nesse período Burroughs “ainda não tinha chegado a um acordo em assumir a homossexualidade”. Dizia, por exemplo, numa das cartas, que “se sentiu curado da homossexualidade” após escrever Naked Lunch. Allen Ginsberg, nesse período, também fez terapia “para se curar da homossexualidade” e se libertar do “domínio da mãe”. Os dois escritores receavam a “vulnerabilidade social” pela condição que a homossexualidade implicava. No guião, Cronenberg ao incluir a homossexualidade de Lee como um disfarce, procurou “acentuar a complexidade” de Burroughs nesse período, acrescentando “nobreza social” ao personagem. Por outro lado, Cronenberg também não pretendia que Naked Lunch fosse um filme sobre drogas, pois “não queria que as pessoas pensassem em Nancy Reagan” e outros activistas anti-drogas quando vissem o filme, queria ficar longe das “problemáticas sociais” associadas a “viver como um toxicodependente”. Segundo ele, o universo de Burroughs é sobre “a adição e a manipulação do controlo”. Por isso, não iria usar “cocaína ou crack”, “teria de inventar uma droga”, que proporcionasse ligações “metafóricas e íntimas”, ao invés das redutoras implicações “exteriores e sociais”.
Forma e conteúdo mesclam-se e os dedos de Joan deslizam pelas teclas como carícias, um acontecimento erótico que impele a máquina a expor as entranhas e a erguer um falo, numa metáfora que atribui às máquinas de escrever a possibilidade de soltar o instinto do escritor.
Ainda no café da Interzone, Lee travará conhecimento com Tom Frost (Ian Holm), um escritor americano e a mulher deste, a também escritora Joan Frost, um doppelgänger da sua mulher, que ele assassinara. Alguém lhe confidenciará que o casal de escritores tem uma bela casa e são visitados regularmente por jovens rapazes, às vezes por dois ou três ao mesmo tempo, estabelecendo uma conexão deliberada entre a literatura, a promiscuidade e o elogio do mundano, num trabalho continuado do derrube de convenções e trincheiras morais. Dias depois, Lee encontrar-se-á com Frost, que lhe confidencia que está a matar lentamente a mulher, mas é algo que não é consciente, da mesma forma que o assassinato de Lee a Joan não foi um acidente. Perante a perplexidade de Lee, Frost pede para reparar nos seus lábios, pois o que ele tem estado a ouvir está a ser transmitido entre eles telepaticamente, tal como faziam os personagens de Cronenberg em Scanners.
A relação entre os dois escritores é fundamental em Naked Lunch, na partilha das suas máquinas de escrever, como quem manuseia armadas poderosas e destruidoras, no estabelecimento do acto de escrever como algo perigoso, envolto num surrealismo orgânico. A Martinelli, a máquina de Frost, também assume a forma de um insecto e bate-se com a Clark Nova de Lee, como uma guerra entre facções da Interzone, a paisagem delirante de Burroughs. Lee também se aproxima de Joan Frost e sentar-se-ão juntos a escrever numa máquina de caracteres árabes. Enquanto partilham uma geleia alucinatória, ela escreve um texto sujo, de conteúdo sexual, a validar a classificação de pornógrafo, que o escritor e o cineasta não negam, incluindo-a como actividade exploratória. Forma e conteúdo mesclam-se e os dedos de Joan deslizam pelas teclas como carícias, um acontecimento erótico que impele a máquina a expor as entranhas e a erguer um falo, numa metáfora que atribui às máquinas de escrever a possibilidade de soltar o instinto do escritor, de tornar numa obrigação e numa necessidade a liberdade de disponibilizar o conteúdo do inconsciente para produzir o seu trabalho, para escrever. A sequência delirante termina com uma centopeia gigante a saltar para cima do casal que está nos preliminares do sexo, uma espécie de triângulo que junta Lee à mulher de Frost e a Joan, que assassinara. Como em filmes anteriores e numa ideia partilhada por Burroughs, a Clark Nova falará pelos criadores ao referir-se a Joan como uma criatura não humana: as mulheres são uma espécie diferente dos homens, com vontades e objetivos diferentes no mundo.
Hank e Martin, os amigos de Lee de Nova Iorque, visitam-no e falam-lhe do livro que ele lhes tem enviado por carta. Numa equivalência com a biografia de Burroughs e a aparente surpresa de Lee, que parece desconhecer essas cartas convertidas em Literatura, assoma mais uma metáfora para o predomínio da Literatura e do inconsciente sobre o próprio escritor, uma conspiração, como se ele fosse apenas um meio atravessado por uma pulsão que não domina. Lee justifica a necessidade de refúgio na Interzone, pois a América não é um mundo novo que se apregoa, é velha, suja e maligna. Ainda a fuga de Burroughs da América interior e sulista, das suas heranças, nas palavras do protagonista: antes dos colonos, antes dos índios, o mal está lá, à espera.
Como tínhamos referido, nesta ocasião é uma das raras vezes em que Cronenberg expõe, através de uma visão exterior, o delírio do protagonista. Questionado sobre o que está dentro de um saco, Lee diz tratarem-se dos restos de uma máquina de escrever. Hank e Martin olham lá para dentro e o conteúdo é um cocktail de drogas, substâncias e objectos associados às adições. Uma clara associação, à abertura das portas da percepção, que não distingue vida e obra e que conduz ao acto de imaginar, de escrever. Aqueles resíduos da máquina de escrever serão colocados sobre o fogo (o propulsor do conhecimento), de onde sairá uma máquina renovada, uma criatura mutante e orgânica. Lee enfiará de imediato os dedos na máquina, de onde despontam uns tentáculos, que no fim da produção do texto produzem uma projecção de um líquido leitoso que há-de alimentar o escritor. A criatura elogia o sucesso dos relatórios de Lee e informa-o que pode atingir um cargo de topo na CIA, o que tem respaldo na aspiração de Burroughs na carreira de espião e do poder especulativo e dado a conspirações desse tipo de funções. No fecho da sequência, um enquadramento sintetiza o trabalho de equipa entre o escritor e a máquina, uma imagem devolvida pelo espelho junta Lee a uma estranha criatura emanada da máquina de escrever: os dois sentados, num contexto simultaneamente mundano (com a presença de objectos comuns) e delirante, dialogam na vontade mútua de produzir novas narrativas.
Segundo Cronenberg o tema do filme não é explícito no livro de Burroughs, a ideia de que “o acto de escrever é algo perigoso para nós” está, no entanto, lá “enterrada”. Com a consciência de que o acto de escrever “não é muito interessante cinematicamente” – como se constata em outros filmes sobre escritores, pois muitas vezes é reduzido a “um tipo, sentado”, que talvez “use chapéu”, que por vezes “bebe e fuma” –, era necessário comunicar “a experiência de escrever a alguém que não escreve”, de permitir olhar esse “acto interior”, “virar isso do avesso e torná-lo físico”, orgânico e exterior. O realizador diz ter “esperado” até se sentir “pronto para escrever o filme”. E diz que inicialmente não esperava precisar da presença de efeitos especiais, nesta projecção do acto de escrever. Mas, segundo ele, quando começou a escrever não foi preciso esperar muito para que as criaturas assomassem, o que implicou o desenvolvimento de “efeitos especiais bastante pesados” devido à presença das bizarras criaturas “que ainda por cima falavam”. Chris Rodley relatou a presença de cerca de cinquenta criaturas: máquinas de escrever e as suas mutações em enormes insectos com “esfíncteres falantes e centopeias” à escala humana.
A obra anterior de Cronenberg tinha assentado em grande medida na benevolência perante a necessidade de transformação do humano, em que frequentemente se associava a “imaginação a uma ideia de doença” como ignição dessa transformação. O cineasta procurava iluminar a concepção da imaginação humana, concretizando o pensamento de que a imaginação e a criatividade são “completamente naturais” e em alguns contextos “bastante perigosas” e causadoras de danos. Mas por “serem perigosas”, não devem “ser reprimidas”, pois isso não significa que essas acções não “sejam necessárias”. Em Naked Lunch, o cineasta convocou um conjunto de “associações conceptuais e visuais”, não apenas com o trabalho de Burroughs, “na crença de que a escrita”, como emanação da imaginação, é “uma actividade perigosa”. Cronenberg diz que “os tiranos” têm uma percepção muito clara desta propriedade, pois “a existência da imaginação é por si só” uma possibilidade de nos colocarmos “numa existência diferente da que vivemos”: se está implantada uma “sociedade repressiva”, em que a comunidade está submissa a um poder déspota, o “facto de alguém imaginar algo (não necessariamente melhor, apenas diferente)”, representa, do ponto de vista do poder instituído, “uma ameaça” equivalente a uma arma poderosa. Portanto, a imaginação participa de uma “fórmula complexa”: se é uma “parte inacta da civilização” e “se a destruirmos também destruímos a civilização”, por outro lado, como referia o postulado de Freud, a civilização constrói-se em cima de repressões e nessa medida “a imaginação (e uma criatividade sem repressões)”, adquire tonalidades “perigosas para a civilização”. Cronenberg exemplifica com a vulnerabilidade dos escritores mesmo no mundo ocidental (o caso Salman Rushdie) e refere a ditadura da Roménia de Nicolae Ceaușescu: os portadores de máquinas de escrever tinham de as “registar como armas perigosas” e todos os anos tinham de fornecer duas páginas escritas à máquina usando todas as teclas, para que qualquer coisa escrita na sua máquina pudesse ser rastreada até si”.
Em Burroughs The Movie, o escritor rememorou o início do desenvolvimento das técnicas do cut-up e fold-in, em que procurava através da materialidade, do corte e o reagrupamento, que conduziam à procura quase aleatória de novas combinações de palavras e de novos significados. Numa atitude exploratória que finalmente aproximava a Literatura da Arte, da criação do texto como pintura (com afinidades com a Pop Art), Burroughs dizia que a escrita continuava atrasada cinquenta anos, quando comparado com a pintura, algo que estava, também, nas preocupações de Ballard, que teve como fortes influências, para lá do surrealismo (mais a pintura que a escrita), o movimento da Pop Art americana, mas também londrina. Nas várias rectrospectivas que se sucederam à “aclamação crítica e premiada” de Naked Lunch, destaca-se uma exposição em Tóquio (em Março de 1993) – “The Strange Objects of David Cronenberg’s Desire” – que agrupava cerca de duzentos objectos, desenhos e adereços, em que predominavam peças de Naked Lunch, que se tinha transformado em algo “mais de Cronenberg do que de Burroughs”, numa fusão problemática mas bem sucedida.