Os dois walshianos Luís Mendonça e João Araújo trocam impressões sobre o novo filme de Alex Garland, Civil War (Guerra Civil, 2024), escrevendo sobre se o filme é realmente politicamente vago ou acutilante, sobre este tipo de jornalismo quase anacrónico, sobre as uniões e desuniões entre os americanos e este grupo particular de personagens, e finalmente tentam olhar para a obra de Garland, que recentemente chegou a admitir que este seria o seu último filme como realizador (mais tarde esclareceria que é apenas uma pausa indefinida). Como enquadrar este filme, que parece ao mesmo tempo ser um alerta sobre uma realidade próxima, uma viagem sobre uma América fragmentada, e uma distopia com elementos de nostalgia?

Olá João,
Como vais? Escrevo-te sob o efeito, emocionalmente intenso, de Civil War de Alex Garland. Sigo – sei que também segues – com especial interesse a obra deste realizador. Há pouco tempo partilhava contigo um certo fascínio pelo trabalho sonoro desenvolvido por dois britânicos em filmes recentes: Garland, desde Annihilation (Aniquilação, 2018) até Men (2022), e Glazer, em Under The Skin (Debaixo da Pele, 2013) e sobretudo no poderoso Zone of Interest (A Zona de Interesse, 2023).
Embarquei nesta viagem – alistei-me neste visionamento e nesta guerra – com os olhos e, acima de tudo, com os ouvidos bem despertos.
Partilho rapidamente duas impressões: primeiro, a utilização dos silêncios e da música, algo superabundante em certos períodos, e talvez ilustrativa noutros tantos, revela-se bastante engenhosa quando Garland faz da fotografia dispositivo de corte, de paragem ou de silenciamento. E não é por isso que a emoção se torna menos intensa, antes pelo contrário.
A segunda coisa diz respeito à maneira de contar esta história em modo what if sobre a possibilidade – que hoje sentimos como demasiado real – da eclosão de uma guerra entre estados, na antecâmada de um verdadeiro “Estados Desunidos da América”.
O filme fala de múltiplas desuniões. A mais interessante é tão política quanto psicólogica ou mental: o confronto da protagonista, uma célebre fotógrafa de guerra, Lee (reencarnação ficcional da grande Lee Miller), face à passagem do tempo. Passagem do tempo como passagem de testemunho, já que a jovem aspirante a fotógrafa de guerra é uma espécie de émulo da protagonista encarnada por Kirsten Dunst. É comovente essa transferência do combate bélico para um reduto tão privado e universal, acabando por ser o envelhecimento e a descrença ou a falta de energia de uma mulher o principal e mais ressonante “palco de guerra” em Civil War. As duas actrizes são magníficas, para mais. Depois de Priscilla, mais até do que no filme de Coppola, sinto que estamos perante o nascimento de uma estrela. Fixemos-lhe o nome: Cailee Spaeny.
Sei que já viste o filme e queria saber se também foste puxado assim pela sua construção sonora-visual e pela composição das personagens vis-à-vis o trabalho das actrizes.
Um abraço,
Luís

Olá, Luís
Como referes, sou admirador há algum tempo do trabalho de Garland, desde Ex Machina (2014) a Annihilation, sem esquecer a sua mini-série para televisão, Devs (2020), do melhor que foi feita para esse formato na última década – Men foi um falhanço colossal, mas nunca me pareceu que Garland fosse alguém que ficasse a ruminar sobre o passado. Faz todo o sentido pensar também em Jonathan Glazer, além do trabalho de som (já muito presente em Under The Skin, com a banda-sonora de Mica Levi, com quem voltou a trabalhar no seu filme mais recente), pelas proximidades entre os dois autores britânicos em terem pouco receio em arriscar e em trabalhar uma linguagem mais próxima do mainstream para criar obras disruptivas; sempre me pareceu que se assumiam como herdeiros distantes de Kubrick, na forma como procuram intelectualizar um cinema mais comercial. E é verdade que em Civil War, o som e a música (e os silêncios, ou os cortes para o silêncio através da fotografia) são dominadores, em particular nas cenas de acção, que aqui contribuem para essa sensação de emoção permanente – umas das primeiras impressões que tive do filme foi mesmo a forma como algumas sequências de acção (estou a pensar quando os jornalistas acompanham uma troca de tiros urbana, mas também na sequência final) são completamente envolventes e muito eficientes, sem qualquer plano desperdiçado, efeito exponenciado em parte pelo som perturbador dos disparos (aliado ao disparo das máquinas fotográficas, uma ideia desenvolvida também por Scorsese).
Acompanho-te também na apreciação dessa segunda dimensão do filme, da passagem de testemunho entre a fotógrafa veterana e próxima do limite e a novata, a experienciar este novo mundo da adrenalina da reportagem de guerra, e todo o percurso emocional constrastante das duas (duas excelentes performances de Dunst e Cailee Spaeny). Apesar dessas desuniões que referes, Civil War tem sido muito falado especialmente por uma suposta falta de comentário ou crítica política, não sendo o filme sobre o momento actual americano pós 6 de Janeiro que muitos poderiam esperar (talvez uma questão também de expectativas, um tema sempre interessante de abordar), já que o contexto que o filme apresenta é mínimo: haverá um presidente parecido a Trump (“this will be a great victory, some are saying the greatest”…), a referência a um terceiro termo que, sendo ilegal, seria sinónimo de algum golpe militar ou ditadura, retaliações sobre protestos da população em resposta a esses actos de tirania, que subiram de escala até bombardeamentos sobre populações, o que leva à rebelião de alguns estados americanos. Além destas referências, Garland parece mais interessado em fazer um filme sobre o jornalismo, chegando ao ponto de em alguns confrontos não termos ideia de qual das facções é responsável por certos actos de violência.
Ao deslocar o foco do filme para a questão do jornalismo e da sua ética, Garland faz assim um filme também político, e ainda sobre o momento actual. O filme mostra-nos como estes jornalistas se tornam viciados em adrenalina, e os riscos que tomam. Mas também a forma como precisam de se dessensibilizar e distanciar dos horrores que estão a cobrir, como forma de fazerem o seu trabalho e como forma de auto-preservação (visível no desgaste da personagem de Dunst). A mesma dessensibilização pode ocorrer a qualquer pessoa que veja a torrente de violência nas notícias e de imagens chocantes. É também um sentimento de desumanização que permite que as pessoas levem a cabo acções horríveis, que transforme pessoas normais em monstros capazes de não ter empatia, desligando-se das suas acções, justificando-as como normais (como no exemplo da personagem do soldado de Jesse Plemons, monstruoso cameo). Será então este um aviso para não perdermos a nossa capacidade de nos sentirmos horrorizados, para não nos dessensibilizar da violência que nos rodeia? Para não olharmos para o bombardeamento do Memorial de Lincoln ou para as valas comuns ou para a violência nas ruas de Washington como algo excitante, porque devia antes ser aterrorizante.
Como vês este tema da política no filme, da sua suposta ausência através de uma qualquer neutralidade, ou presença na questão das imagens-choque e do seu valor para os jornalistas? Da espetacularidade de certas sequências? E já agora, no meio disto, o que dizer da personagem de Wagner Moura?
Um abraço,
João

Olá João,
Muitas questões pertinentes e difíceis me suscitas. Sim, politicamente é um filme muito pouco “pugnaz” e também me parece que, dada a sua temática, podia ser mais ousado a esse nível. Acaba por se colocar do lado das personagens e de um dilema mais moral, universal e abstracto, em termos de uma certa (e demodé?) “ética jornalística”: cobrir como, a que custo e, finalmente, para quem e para quê? Tenho um fraquinho por estas questões e, sinceramente, há qualquer coisa no filme, na maneira como acaba sugado pelo universo das personagens, que me faz “entrar” mais nele. A questão da vulnerabilidade do fotorrepórter no momento do disparo ou do jornalista no momento de “disparar” a questão certa, justa, à altura do acontecimento… Acho que, como dizes, suscitar estas questões não será alhear-se completamente de uma questão política premente. Ao mesmo tempo, que personagens são estas, que parecem pertencer a outro tempo, a uma era das ferramentas analógicas e a um tempo em que a mensagem jornalística decidia conflitos? É um filme algo cego em relação à própria crise do jornalismo e da informação, o que o torna anacrónico, talvez “totó”, mas quero ver nisso um acto de resistência. A jovem fotorrepórter usa película e preto-e-branco, a mais velha usa o digital e a cor – Garland deposita alguma da sua fé num regresso ao tempo glorioso dos media tradicionais que se não é uma forma de alheamento ou nostálgico “oh tempo, volta para trás”, poderá ser entendido como um curioso exercício de réplica ao Zeitgeist.
Acho que a coragem dos jornalistas é um ponto de assinalável relevo, dada a sua vulnerabilidade intrínseca, ao facto de não terem armas, mas câmaras ou uma memória fotográfica que regista os acontecimentos para, mais tarde, os relatar. Acaba por ser um grande hino a uma profissão hoje, como sabemos, sob o risco de desaparecer, pelo menos com a dignidade e relevância que lhe reconheceramos durante o século XX.
Há qualquer coisa na personagem do Wagner Moura que o torna ainda mais heróico do que as fotorrepórteres: ele nem câmara tem. Está totalmente desarmado, a guardar-se para o momento decisivo em que possa fazer a sua entrevista, quer dizer, em que possa “atirar” a sua questão ao Presidente à beira de ser deposto por via da lei da bala: “I need a quote”. Claro que para aguentar tudo isto refugia-se não atrás da objectiva, mas do álcool e da ganza. É alguém colocado numa posição de grande vulnerabilidade e a cena em que se desfaz num grito surdo, inaudível na banda sonora, mas perfeitamente audível na imagem, eleva o pathos do drama de maneira, a meu ver, poderosa.
Acho que o filme guarda o seu espectáculo de acção bélica para o final e aí é impressionante. De qualquer forma, nunca perde o aspecto geral de produção série B, quase de road movie de zombies, em que o cerco se monta no espaço off. Lembrei-me da montagem sonora de Zone of Interest: dos sons dos disparos como referencial de um (in)audível por resposta a um (in)filmável. É à distância, ou em off, que mais sentimos a ameaça da guerra e é no seio deste grupo que o seu efeito é palpável e, no final, pungente. Quer dizer, acho que a guerra civil acontece muito mais ao nível de conflitos ou temas mais clássicos como sejam a passagem do tempo, a lealdade e a verdade. E é o estado do grupo, sempre unido entre os seus membros mas desunido em cada um, no seu íntimo (a dúvida sobre “o lado da guerra” e como documentar uma verdade qualquer “no meio” de tão impensável e bárbaro conflito), o principal décor dramático do filme. E, nesse particular, para o bem e para o mal, não sei se Garland quis que “o estado deste grupo” remetesse apenas para a situação presente da América…
Devolvo-te a questão sobre o Wagner Moura. Mas também gostava de fazer um certo esforço para entender a obra de Garland como um todo: será possível encontrar traços em comum, uma ligação entre este filme e Men, obra que, já sabia, não gostaste nada (eu gostei mais do que tu), ou as suas ficções científicas anteriores? Porque Garland vem da ficção científica e do terror para fazer um filme que grita actualidade. Grita mas não ouvimos bem ou tão bem como esperávamos, talvez (vide algumas críticas muito negativas ao filme).
Abraço,
Luís

Olá, Luís
É um ponto interessante que colocas, da espécie de anacronismo destas personagens, e até de certa forma como o filme olha para a crise do jornalismo, escolhendo uma forma de jornalismo antiga, desligada das redes e das novas questões da desinformação, recentrando a importância do seu trabalho como algo fundamental, como testemunhas da história – é sem dúvida uma homenagem, ou acto de fé na importância de uma imprensa independente, como último reduto de resistência, especialmente em tempos de guerra e de controlo da informação. Acho também que Garland tenta mostrar que dentro dessa perspectiva e camaradagem, existe também uma divisão (de tipo de jornalismo), que é também universal, além-jornalismo, e que isso está bem presente na caracterização dos diferentes jornalistas enquanto profissionais. Tens o veterano respeitado do NY Times (mas também ultrapassado), a conceituada foto-jornalista sem nada a provar, uma novata a começar do nada (e o jornalismo viveu sempre dos seus estagiários), e ainda a personagem interpretada por Wagner Moura, Joe. Este, precisamente sobre o qual conhecemos menos do seu background, parece-me a personagem mais ambígua dos quatro, ou de outra forma, mais complexa de ler: se em certos momentos parece quase representar o lado corporativista do jornalismo, de conseguir a história a qualquer custo [the show must go on, a lembrar outro filme sobre esse tipo de jornalismo, Nightcrawler (Nightcrawler – Repórter na Noite, 2014)].
Se algumas das suas acções parecem perto da irresponsabilidade (como contar a um colega para onde vão, por estar demasiado wasted; por tentar engatar a miúda aspirante a jornalista e depois a trazer na viagem; pela abordagem inconsciente ao soldado de Jesse Plemons), depois redime-se várias vezes, quanto protege a fotógrafa mais nova nas cenas iniciais, e depois volta a proteger Lee nas cenas finais, quando esta parece paralisada. É a personagem mais complexa do grupo, que como dizes precisa de segurar o seu envolvimento emocional extremo com outras coisas como o álcool ou a adrenalina. É quase também como se tivéssemos dois jornalistas veteranos, que conseguem manter o seu distanciamento em relação à história, e depois as duas versões mais novas, mais impulsivas, que mais se deixam contagiar pela história à sua volta. Dois momentos ficam na memória, pela forma como Garland enquadra Joe na acção, que parecem ser deliberadamente ambivalentes (e Wagner Moura é excelente a representar essa ambiguidade), como se não fosse possível saber com o que contar no seu caso: quando no final do primeiro tiroteio, este ri-se a falar com um dos soldados como que a partilhar uma anedota (enquanto Lee se mostra pensativa ao longe), e depois, na sequência em Washington, quando perante o caos e perigo na rua, Joe vira-se para a novata e os dois riem-se, partilhando a excitação de estar finalmente a viver aquela história.
Um dos pontos fortes do filme é a sua aproximação ao road movie, e agrada-me essa ideia de filme de zombies, porque na verdade durante boa parte de Civil War é disso que se trata, de retratar uma América interior, fora dos centros urbanos, onde predomina a desconfiança em relação aos estranhos, onde uma simples paragem para meter gasolina pode ser perigosa (o tal fora de campo que referes, uma ameaça escondida que está sempre presente), um cenário que evoca o imaginário dos filmes de terror, mas também que afirma que isto é uma distopia, mas não é assim uma realidade tão longe. Tal como a sequência em que os jornalistas passam por uma cidade que parece viver noutro tempo (outra vez a tal dessincronia com os tempos presentes), alheada da guerra (mas com um paz afinal artificial), tal como os pais das personagens que estão fechadas nas suas quintas a imaginar que nada disto está acontecer, parece-me que há aqui um comentário de Garland sobre as histórias que os americanos criam para si próprios, para adaptar a realidade às crenças, criando as suas bolhas de informação, algo que não é alheio à crise do jornalismo: se ninguém (os zombies) quer ouvir ou saber das notícias, para quem é que estes se estão a sacrificar? Para si mesmos? Para a História?
Regresso ao teu comentário sobre a guerra acontecer também muito mais ao nível de conflitos ou temas mais clássicos, e do estado do grupo unido entre si mas a passar por diferentes “guerras” internas – parece-me ser precisamente a chave do filme para nos aproximarmos destas personagens e criar empatia através das suas diferentes perspectivas e tormentas pessoais. É o fio narrativo dominante do filme, especialmente se pensarmos nos caminhos opostos entre as duas foto-jornalistas e a forma como reagem a uma nova realidade, mas está também presente nas reacções impulsivas de Joe, e até do jornalista mais velho (este ainda mais consciente da sua mortalidade). É algo que será mais universal e não tanto específico a esta situação, e parece-me ser no fundo um dos temas que Garland procura explorar ao longo da sua obra, se a tentarmos olhar como um todo: a reacção perante uma realidade estranha e ameaçadora, enfrentar os nossos medos a materializarem-se, mostrar personagens a confrontarem-se com o seu mundo a ruir – como naquela imagem do grito mudo de Joe, como no caso de Lee, que depois de anos a fotografar conflitos no estrangeiro, vê essa realidade chegar a casa, percebe a futilidade dos seus avisos. Isso tanto acontece em Ex Machina (2014), como em Annihilation (2018), como em Devs (2020), distopias não muito distantes no tempo ou realidade, que são ficções científicas mas filmadas a pensar no presente e nas suas questões. Talvez por isso Civil War não esteja tão preocupado com um momento actual específico e apenas americano, mas, ao focar-se nestas personagens, na forma como reagimos e pensamos sobre estas possíveis ameaças e mantemos a nossa humanidade (e união) perante a materialização de cenários impensáveis.
Um abraço,
João

Caro João,
Let’s wrap it up!
A guerra civil está terminada com a conclusão de que um filme de personagens fortes nem sempre faz chegar a sua mensagem política de maneira contundente ou tão contundentemente como alguns desejariam. Acho também que é um filme que se deixa enamorar pelas suas personagens. Gosto de imaginar que o filme era para ser uma outra coisa – mais próxima do telefilme do Joe Dante, The Second Civil War (A Segunda Guerra Civil Americana, 1997), que muito é agora recordado com o intuito de despedaçar o título de Garland – mas que, de repente, o olhar de Garland não se consegue desprender das suas duas “Coppolettes” (a Lisbon Girl e Priscillia): uma a ver-se na outra e a interrogar-se sobre qual o seu lugar no mundo. E, pronto, lá se foi o projecto cínico/irónico e maximamente distópico. Passou a ser mais da ordem do efeito sentimental algo demorado. Menos cool mas “from the heart”. Eu compro-o assim, tal como ficou e apesar de alguns dos seus defeitos.
Pese embora sinta que lhe falta algo, que há algo de errático e lacunar na definição do que este filme pretende ser ou “dizer” e que nem sempre parece querer aprofundar a sua premissa política, ele deixou-me, enquanto me entregava à chuva de letras dos créditos, num pico dramático plenamente satisfatório (ao som do majestoso tema dos Suicide). Cada vez gosto mais de filmes que sabem fechar, que guardam alguma coisa que conceptualmente eleva a experiência do drama, mesmo que este nem sempre seja completamente satisfatório no seu déroulement.
Sou cada vez mais rapaz para me deixar conquistar por partes assim, de escrita cinematográfica inspirada.
Abraço,
Luís Mendonça