Uma das estratégias que tem sido usada para colmatar a tradicionalmente mais difícil tarefa de mostrar cinema português em formato curto em sala é a de conceber programas com afinidades temáticas. Esse enquadramento permite ao potencial espectador compreender o fio que atravessa essas obras – a programação como extensão de um “tique” da crítica – e assim mais facilmente tomar a sua decisão. Neste caso, Um Caroço de Abacate (2022) de Ary Zara, As Sacrificadas (2022) de Aurélie Oliveira Pernet e By Flavio (2022) de Pedro Cabeleira têm em comum o facto de se centrarem em personagens principais femininas, propondo uma sessão que permita refletir sobre a identidade feminina contemporânea e suas diferentes declinações.

O interessante, diria, é que ao lado desta proposta de arrumação cabe ao espectador procurar estratégias de desarrumação. Isto é, compreender como é que, paralelamente a um propósito consciente de reflexão e transformação, os/as cineastas buscam ou não deixar espaços de respiração, dissonância, até mesmo atrito, face a uma proposta que pode ser mais ou menos “concebida com o lado esquerdo do cérebro”. Talvez não chegue a ser um processo de auto-sabotagem, mas mais uma estratégia de respiração que necessita de ir além-fábula.
O filme de Ary Zara é um excelente exemplo desta ideia. Larissa (Gaya Medeiros), é uma mulher trans que procura o amor num universo que parece empurrá-la para um mundo de exploração e preconceito. Os momentos iniciais do seu encontro do Carlos/Cláudio (Ivo Canelas) parecem encaminhar o filme “apenas” para o embate entre o preconceito e a libertação, ou para usar as palavras de Zara, um duelo entre o arquivo do passado e um “arquivo do futuro” que se quer libertar com esta obra. Contudo, Um Caroço de Abacate é também, eu diria sobretudo, um delicado processo de construção de personagens. Aos poucos vamos saindo do set up mental que gera esse desconforto social e emotivo e entrando numa odisseia nocturna pela cidade lisboeta, onde Larissa e Cláudio se vão libertando do peso do que representam um para o outro e deslizando numa certa leveza e partilha de sonhos, ilusões, decepções. E nesse processo é o filme que se descasca de uma intencionalidade maior, ao mesmo tempo que nunca deixamos de pensar como essa libertação é ainda o tema da identidade trans que sai da sua categoria entrando num filme de pessoas que buscam o mesmo, o amor e a alegria.
“Que mulheres são estas?”, pergunta-nos este programa de curtas-metragens. As boas perguntas nunca têm apenas uma resposta.
Se nesse filme a ideia de clausura tem uma forte dimensão social e identitária, As Sacrificadas (2022) adiciona uma concreta dimensão material: Otília (Tânia Alves) está presa a um trabalho de empregada de limpeza e à casa da mãe (Valerie Braddell) na qual vive e a quem presta cuidados. Passamos de uma balada urbana a uma prisão rural, nessa mesma questão de identidades aprisionadas. O filme de Aurélie Oliveira Pernet tem mais dificuldade, no seu registo realista, a escapar-se (ou ir além) do tema. É nos olhares e rostos de mãe-filha – olhares ora incendiados ora apagados de Alves e Braddel – que vive essa vontade da obra e suas personagens escaparem ao seu destino. A simbologia do fogo – o fogo do desejo, mas também da destruição de um estado de vida – surge como subtexto, mas talvez precisasse de um maior investimento para ir além do estatuto de símbolo e “citação” do real concreto português.
Também By Flavio afirma essa duplicidade entre sair de um estatuto e sair de um espaço. Márcia (Ana Vilaça) quer deixar de ser vendedora de uma loja de roupas num shopping em Torres Novas e alcançar um espaço etéreo, estatuto de reconhecida influencer digital. Assim como não quer apenas ser vista como uma mulher solteira procurando um pai para o seu filho, mas alguém que procura reencontrar o amor. Pedro Cabeleira é um cineasta com um particular talento para radiografar as preocupações da juventude, sobretudo naquela fissura ou agrafamento entre, precisamente, os problemas das suas personagens e seus espaços e microcosmos particulares. Em Verão Danado (2017) fazia isso com a juventude lisboeta imersa nas expectativas de crescimento e ansiedades de falhanço numa cultura nocturna das festas tecno. Em By Flavio, Cabeleira sente as subtis ondas sismográficas que revelam essa discrepância entre realidade e sonho, entre periferia e centralidade. Nessa ambivalência é muito consciente dessas tensões: cita Edwin S. Porter para invadir os planos com o instagramável (será o instagramável como aquelas legendas de B.D. onde as personagens apenas pensam e sonham enquanto vivem outra vida?); dá-nos o rosa-choque, as roupas curtas, uma luz de jogo e bolo colorido para meter lá dentro a amargura e a solidão; diz-nos que a estética de Harmony Korine pode servir os mesmos propósitos de cineastas como os irmãos Dardenne.
“Que mulheres são estas?”, pergunta-nos este programa de curtas-metragens. As boas perguntas nunca têm apenas uma resposta. Os bons filmes também não: afirmam enquanto duvidam, baralham enquanto esclarecem.
Um Caroço de Abacate ★★★☆☆
As Sacrificadas ★★☆☆☆
By Flavio ★★★☆☆