Como compôr um retrato dentro das fronteiras do cinema? costuma ser a pergunta que desencadeia a criação da obra. Seguindo-se o desejo de explorar um certo microcosmo, onde o foco principal passa por reter a essência desse microcosmo. Assumindo desde já que é impossível localizar, conhecer na sua totalidade o objecto para o qual se olha, como fazer um retrato fílmico que não se prove insuficiente ou unilateral? Tudo se dificulta, mais ainda, se pensarmos no retrato fílmico como ele costuma ser. Conceito quadrado, com cantos, limitado por uma moldura, onde só há espaço para aclarar o que é mais abrangente sobre algo ou alguém. O retrato é uma coisa que se encontra parada em todo o seu movimento, mas nunca estanque, com a imobilidade a chamar o espectador para o ritmo físico dos corpos apresentados no ecrã. Da fricção criada entre as suas superfícies e entranhas, o encontro deve ser empático e ter como alvo a emissão de uma luz qualquer que possa definir a nossa presença ali.
O que Dane Komljen, realizador da Bósnia-Herzegovina sediado em Berlim, faz com a sua terceira longa-metragem, The Garden Cadences (2024), um pequeno filme de apenas 62 minutos, não podia estar mais longe, do ponto de vista formal, de corpóreo, mas, ainda assim, toca nos corpos que filma. É um filme sem arestas, propositadamente não-definidor, repleto de desejo que capta a beleza do que não é finito, apanhando vislumbres do milieu das pessoas que retrata. Aliás, o filme tem a soltura do retrato que desliza para fora de quaisquer fórmulas ou limites daquilo que é o documento fílmico com início e fim definidos. O filme ignora a necessidade biográfica – não apresenta ninguém, e não oferece narração ou qualquer outro guia, visual ou auditivo, para contextualizar o que nos mostra, com a excepção do texto que o acompanha no circuito de festivais de cinema. Um texto que aponta para a sua existência transitória; as imagens dos últimos momentos de serenidade antes do encontro com o mundo lá fora (“The Garden Cadences segue o seu último Verão antes de (o colectivo) ser despejado.”)
A primeira imagem com que nos deparamos – tão inexplícita que assombra – é de uma caixa de fruta colorida deixada para trás. Esta imagem prepara o caminho para um momento no tempo que já não existe. A declamação de um poema de Aalo (um dos Mollies e co-argumentista do filme), por cima dela só reforça a fatalidade: “unhappy is the heart / it remembers everything.” Quando o filme começa já não há sinal das pessoas que constituem Mollies, o colectivo queer-feminista que tinha vivido quase uma década num parque de caravanas/jardim plantado dentro de uma zona fabril no bairro de Ostkreuz em Berlim, na Alemanha, ironicamente despejado em 2022 para dar lugar a um aquário criado a pensar na “beleza dos ecossistemas marinhos”, com o objectivo de “incentivar uma compreensão mais profunda da sua vulnerabilidade – das profundezas à superfície iluminada pelo sol,” palavras de Antoine Thirion no seu texto de apresentação ao filme quando este estreou no Cinéma du Réel em Março de 2024. Komljen, que tem vindo ao longo dos seus filmes a fundir os movimentos dos corpos humanos com a pulsação da natureza, normalmente com um propósito engrandecedor e utópico, não é estranho ao ritmo de um ecossistema que não só abriga como fortalece. Logo de imediato, The Garden Cadences leva-nos de volta a Afterwater (2022), filme que o precede, que usava água para melhor falar sobre a noção de género. Aqui fala-se do fácil domínio de algo tão vital e imprisionável.
The Garden Cadences afirma-se enquanto belo exemplo do que é um filme disciplinado em permanecer livre. Ainda que a sua fonte de energia resida na pungência do registo-memória para a posteridade, nada o prende a um chão. Não há alicerces.
Mas o filme não tocará nem na gentrificação de que aquela zona de Ostkreuz em particular tem sido alvo nos últimos anos – vemos apenas na última sequência gruas de construção a sujar a paisagem -, nem irá debater-se com a presença daquela comunidade naquela utopia intencional e esculpida de raiz de partilha e companheirismo. As composições estáticas perfeitamente balanceadas e tão delicadas preocupam-se, em vez disso, em depurar a intimidade da vida em comunidade. Um casal de amantes dorme no abraço do outro e a câmara paira sobre o seu sono, como instrumento de observação orgânica, que não perturba ou desequilibra com a sua presença. Mais corpos dormem em camas e, num momento que se distingue dos restantes, dois corpos tatuados, com os seus membros entrelaçados, adormecem enquanto se molham numa banheira.
Entre estas paragens, há duas sequências mais longas. Uma conversa a acontecer em tempo real sobre astrologia na primeira parte do filme, e uma mais para a frente em que um grupo de pessoas, que podem ou não ser aquelas que vemos no ecrã à volta de uma fogueira – o som e a imagem desassociam-se uma da outra -, falam das suas experiências transitórias em Berlim, uma cidade que estende a mão e se torna uma casa confortável para alguém que procura abertura de pensamento, como quem fala dos padrões migratórios dos pássaros quando há que abandonar aquele ninho. A vida humana abraça o mundo natural e o mundo natural dá espaço para a vida humana florescer. No ar respira-se a iminência do fim. E coloca-se a questão de realojar um ecossistema. Como é que isso se faz? Dane Komljen está interessado, mais do que tudo, em comentar esta aleatoriedade miserável. O manifesto anti-capitalista ressoa com clareza.
Talvez seja por isso que o realizador coloque tanta ênfase nos padrões repetitivos que marcam o dia-a-dia daquelas pessoas: dormir, tomar banho, ler, conversar, tocar um instrumento musical, comer. No processo dessa descoberta, ele capta as idiossincrasias da vida comunitária num parque de caravanas: há uma roda de tarefas (fogão, lixo, roupa para lavar, vidro, papel, pratos…) com nomes, um saco-cama é aquecido com um secador de cabelo, água é fervida em múltiplas chaleiras e colocada num regador de plantas grande que servirá de cabeça de chuveiro. Há também momentos de co-habitação que podiam entrar em conflito, mas não entram: ler ou tentar dormir com o barulho de uma festa a acontecer por perto. Lado a lado com esta interioridade, Komljen, ainda que tímido, faz o inesperado. A meio do seu filme, e sem anunciar, liberta a câmara do tripé, quebrando o ritmo estabelecido até ali, e começa a deslizar a sua lente pelas flores que constituem o jardim, aproximando-a o mais perto possível dos detalhes das flores para se roçar nas suas pétalas, como os corpos humanos se tinham roçado uns nos outros um pouco antes. Por fim, afunda o ecrã em cores e formas vivas, mas desfocadas.
Com esta abstracção a oferecer-se à fluidez não só de género mas de tudo o que faz aquela micro-sociedade funcionar, The Garden Cadences afirma-se enquanto belo exemplo do que é um filme disciplinado em permanecer livre. Ainda que a sua fonte de energia resida na pungência do registo-memória para a posteridade, nada o prende a um chão. Não há alicerces, afinal. As últimas palavras no ecrã que o digam: “Something was there, now it’s gone, it’s not there anymore, it was.” O filme reflecte este golpe agudo. O Verão acaba e tudo é ainda mais impossivelmente belo e táctil porque nos foi retirado.
Mutirão: O Filme (2022), a curta-metragem de Lincoln Péricles, seu par de programação na passagem pelo DocLisboa, despertará a utopia da construção comunitária, a noção de casa e a necessidade de encontrar um lugar de pertença só para o realizador bósnio as expandir e recalibrar. Não se escapa ileso do capitalismo e, com ou sem paredes, sejam estas físicas ou emocionais, felizmente o retrato de Dane Komljen é uma casa. É difícil de agarrar.
Mutirão: O Filme e The Garden Cadences passarão pelo DocLisboa – Festival Internacional de Cinema no dia 20 de Outubro às 14h no Pequeno Auditório da Culturgest. A sessão repete a 25 de Outubro às 10h30 também no Pequeno Auditório da Culturgest.