O gatilho da criação explode-nos nas mãos quando menos esperamos. A Boris Lojkine começaram a perguntar-lhe o que acontecia “depois” da travessia África – Europa que as personagens de Hope (2014) faziam, filme que realizara há uma década. A isto acrescente-se o facto do cineasta francês observar, da sua janela, nos períodos de confinamento durante a epidemia de Covid19, as poucas pessoas que circulavam ainda nas ruas: os entregadores de comida. Assim, Lojkine decidiu imaginar uma história que unisse este par de inquietações: uma dramática e outra de observação social.
Surge daqui L’histoire de Souleymane (A História de Souleymane, 2024) que narra a história de um jovem guineense que, para sobreviver, aluga uma conta de estafeta a um amigo e que se prepara para uma entrevista pelos serviços que decidirão se este terá ou não direito de asilo em França. Filmado num sentido de urgência, com uma equipa reduzida, pelas ruas de Paris, planos com câmara à mão ou em bicicleta, sem iluminação artificial, o filme demonstra um genuíno desejo de realismo. Para mais, encontrará num longo processo de casting, Abou Sangare, guineense que está há sete anos em França, ele próprio “sans papiers”, trabalhando como mecânico e que, sem experiência de representação, encarnará o protagonista do filme.
Filmado num sentido de urgência, com uma equipa reduzida, pelas ruas de Paris, planos com câmara à mão ou em bicicleta, sem iluminação, o filme demonstra um genuíno desejo de realismo.
Este registo de drama social, próximo do cinema dos Dardenne e até de certos filmes de Ken Loach no seu desejo de transformação do tecido social, não deixa de habitar uma certa convencionalidade. O filme opera uma inversão de perspectiva: nós estamos com Souleymane nas constantes travessias pela cidade para entregas, monitorizadas por apps que pontualmente necessitam do reconhecimento facial de verdadeiro detentor da conta e o Outro não é, por uma vez, o estrangeiro com trabalho precário mas antes esta sociedade sem rosto, neo-liberal, com vozes mecânicas ou artificiais dos serviços de atendimento, num procedimento frio e cautelar de regras frequentemente cegas e injustas. Neste ponto, o filme toca vários lugares comuns – os desencontros, o amor ausente, a burocracia, as pessoas racistas e sem coração – como se Lojkine colocasse Abou Sangare num labirinto de palavras escritas e muito bem ensaiadas de um argumento.
Mas, como o próprio Lojkine refere caracterizando as vantagens do trabalho com actores não profissionais, estes são “portadores do seu próprio mundo”. L’histoire de Souleymane está conciente dessa operação de transporte, activando-a numa crucial cena do filme. Nesta, cai finalmente a máscara do récit e a doçura, a tensão, os silêncios de Sangare (premiado na edição passada em Cannes com o prémio de Melhor Performance na secção Un Certain Regard) produzem uma dobra intensa de um “sans papier” que saiu ele próprio da Guiné e que tem, entretanto, a chance de se encontrar com um filme e com um papel de si/para si mesmo. Tal como a personagem de Souleyman pedala por Paris memorizando as falas do argumento que lhe escreveram e que dirá na decisiva entrevista, também Sangare terá de memorizar o argumento de um filme, libertando-se precisamente de uma certa mecanicidade de representação. Ensaios de libertação, no filme e para o filme.
Se esta passagem da representação a uma certa apresentação é, juntamente com este processo de trabalho de Sangaré, o mais surpreendente do filme – numa obra que, diz Lojkine, só estará terminada quando aquele obtiver os seus documentos de permanência em França – também não podemos deixar de pensar que a própria expressão que acima mencionámos “portadores do seu mundo”, faz (ainda) parte do mesmo gesto que o filme procura criticar. E, Sangaré, é aí, ainda um “estafeta do realismo”. Nesse sentido, todo este gesto de justiça criativa não deixa de provocar, também ele, um certo amargo de boca, quiçá inevitável.
★★★☆☆