E assim sucedeu, que o derradeiro filme de Jacques Demy fosse um verdadeiro compêndio daquilo que era a essência da sua obra, feita de mães e filhas, pais ausentes, prostitutas, marinheiros, temas sombrios em esplendor policromático, encontros e desencontros, dança, amor e música. E incesto. O filme chama-se Trois places pour le 26 (1988) e é porventura um dos seus filmes menos conhecidos (a nosso ver, muito injustamente), ainda à espera de ser descoberto por aqueles que acompanhem a retrospectiva que a Medeia Filmes dedica neste início de ano ao realizador francês. Depois de Parking (1985), Jacques Demy encontrava-se um pouco afastado do cinema, aproveitando para se consagrar de forma mais intensa à pintura (Demy afirmava que o cinema se tinha tornado demasiado difícil), tendo sido decisivo o papel do produtor Claude Berri ao impulsionar Demy a filmar Trois places pour le 26, um projecto já antigo, oferecendo-lhe todos os meios necessários para um filme desta envergadura. Uma proposta irrecusável para Demy, em jeito dos contos de fadas que lhe eram tão queridos.

A história de Trois places pour le 26 é fácil de contar. Yves Montand, que desempenha o papel de Yves Montand, regressa à terra onde nasceu, para protagonizar um espectáculo musical que retrata a sua vida. Daí resulta esse golpe magistral de Demy, que coloca a vida real a desenrolar-se em cima de um palco, enquanto a ficção acontece no mundo real, nas ruas, casas e espaços da cidade. “The world is a stage, and the stage is a world of entertainment”, cantava-se em The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953). Tal como no filme de Minnelli, Trois places pour le 26 tem início numa estação de comboios, com a chegada da estrela de cinema, Yves Montand, a Marselha (uma aproximação entre os dois filmes que é sublinhada por Serge Daney na sua entrevista a Demy para a série Microfilms). Os repórteres esperam o actor com avidez e interrogam-no, já que se trata de um regresso à terra natal depois de uma ausência de 20 anos. À semelhança de The Band Wagon, também aqui há lugar à montagem de um espectáculo, com os acidentes, hesitações e sucessos inerentes.
Sim, Yves Montand está vivo, mas o espectáculo musical que é posto em cena faz já o resumo da sua vida, dando-lhe um final. E este é o filme derradeiro de Jacques Demy (a sua morte, se assim quisermos considerar), ainda que a morte seja feita de cor, de música, de dança, em mais um dos paradoxos a que Demy nos habituou.
Surpreendentemente, este é o filme que faz de Yves Montand uma estrela do musical, que canta e dança. Montand era actor e cantor, mas não o fazia necessariamente em simultâneo [e em Let’s Make Love (Vamo-nos Amar, 1960), de George Cukor, chegava mesmo a gozar com as suas capacidades, fazendo de conta que não tinha voz, nem mesmo quando treinado por Bing Crosby]. No filme de Demy, ele sobe ao palco para reencenar momentos da sua vida – os inícios com Edith Piaf, o relacionamento com Simone Signoret, o encontro com Marylin Monroe. Há nesta encenação um aroma de epitáfio, reforçado pela sua aparição, como fantasma vivo, vestido de branco, na perfumaria em que trabalha Marion (Mathilda May), a sua fã devota, que acabará por tornar-se sua co-protagonista no espectáculo musical. Ou não fosse este o papel feminino por excelência do cinema musical, desde os tempos de 42nd Street (Rua 42, 1933) – a novata que, contra todas as probabilidades, consegue o seu lugar ao sol, triunfando na estreia.

Esta aparição de Yves Montand na perfumaria, dançando do além, apesar de estar vivo, acentua o persistente travo a morte de Trois places pour le 26. Sim, Yves Montand está vivo, mas o espectáculo musical que é posto em cena faz já o resumo da sua vida, dando-lhe um final. E este é o filme derradeiro de Jacques Demy (a sua morte, se assim quisermos considerar), ainda que a morte seja feita de cor, de música, de dança, em mais um dos paradoxos a que Demy nos habituou. São, aliás, as próprias personagens do filme a articular o cânone demyniano: “moi, ce que j’aime bien, c’est le passage de l’émotion à la légèreté».
Um primeiro grande amor acaba mal, deixa uma marca para toda a vida. Algo que se torna palpável na imagem das paredes do apartamento de Mylene (Françoise Fabian), onde é possível observar o contorno de quadros que foram removidos. Os primeiros grandes amores deixam feridas profundas, emprestam uma especial melancolia a quem o viveu. O modo como se olha para o passado não é necessariamente nostálgico, há uma vivência muito ancorada no presente, o que não impede que o passado molde a personagem para o futuro. Mas Demy oferece uma possibilidade de resgatar essa mágoa e resolvê-la, fazê-la felicidade. E nunca é tarde para que isso aconteça – assim sucede no reencontro de Simon Dame e Yvonne em Les demoiselles de Rochefort (As Donzelas de Rochefort, 1967). Desses passados misteriosos, resulta a impressão de que há sempre outros filmes latentes em cada filme de Jacques Demy e daí também que algumas dessas personagens que gravitam em torno de cada história possam transitar para um outro filme.
A hipótese de felicidade é frágil, sempre sujeita ao acaso e à sorte, mas… há sempre uma réstia de esperança, mesmo quando alguém julga ter já arrumado esse sentimento definitivamente numa gaveta do passado. Daí que a idade pouco importe. No cinema de Jacques Demy, uma rapariga de 20 anos pode ser quase cínica na sua desilusão com a vida, e uma mulher de 50 pode ser incandescente no seu amor. Veja-se como os olhos de Françoise Fabian brilham no reencontro com a sua paixão do passado, como ela se deixa levar nos seus braços, para de seguida erguer uma muralha de mentira em volta de si, num tom que nos parece leve, mas que guarda outras amarguras. Mylene é uma mulher-criança, no seu robe azul esvoaçante, agarrada ao frasco de compota de rosas que devora avidamente (hábito que a sua filha julga repugnante).

No bar Paradis, Mylene e Yves dançam lentamente, sobre uma pista que é um tabuleiro de xadrez. Aqui, não existem cores contrastantes, existe apenas a harmonia deste reencontro, ao fim de 22 anos. A cor das roupas, em azul e castanho, é repetida à sua volta. Eles fundem-se nesse décor, como se fundem nos braços do outro.
O que aproxima Yves de Marion é também uma questão de familiaridade, de reconhecimento. “Comme si je t’avais toujours connue” – há nela algo de inquietante e ao mesmo tempo de familiar. Por isso é de forma casual que acabam por passar a noite juntos, uma noite celebratória do sucesso da estreia da noite anterior. A verdade aparece a Marion como uma revelação (uma aparição?), quando ela se olha ao espelho, o seu rosto vai-se alterando enquanto ela houve o relato de Yves e começa a juntar as peças do enigma.
O incesto é no filme menos dramático do que cómico, ficando a insinuação de que é preferível demasiado amor no mundo do que a falta dele. Aliás, é a própria Marion a brincar com a questão, dizendo “l’inceste, ce n’est pas mon truc”. É um acaso, um tropeço rumo ao final feliz (foi a intimidade com Marion que possibilitou que Yves lhe confessasse a história do seu amor perdido), uma peça no puzzle que permite colocar cada uma das personagens no lugar certo da felicidade.
Ainda assim, nada chega a ser verbalizado dessa revelação terrível. Nem por ela nesse momento, nem por ele, quando a vê surgir acompanhada da mãe. Mãe e filha muito mentiram uma à outra e este é o seu momento de sinceridade, leia-se, de felicidade. O final feliz depende de um pacto tenebroso entre pai e filha, selado num olhar rápido na escadaria. Tenebroso e leve, grave e despreocupado, como só num filme de Jacques Demy seria possível.
Trois places pour le 26 (1988), de Jacques Demy, será exibido no próximo dia 30, no Cinema Medeia Nimas, pelas 12h15.