David Lynch faleceu no passado dia 15 de Janeiro, com 78 anos, deixando como legado uma das filmografias mais singulares das últimas décadas, repleta de obras icónicas (e muito diferentes entre si) que contagiaram o imaginário da sociedade e do panorama cultural, criando um adjectivo – lynchiano – que facilmente associamos a um certo estilo visual. Desde as suas obras inicias, como Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977) ou The Elephant Man (O Homem Elefante, 1980), de um expressionismo do subconsciente ancorado num sentimentalismo desarmante, passando , sempre à volta de figuras marginais da sociedade, pelo seu período de fascínio e admiração do folclore moderno americano (e da sua completa subversão) com Blue Velvet (Veludo Azul, 1986) e Wild at Heart (Um Coração Selvagem, 1980), até ao seu período mais recente de obras surreais, oníricas e de narrativas fracturadas, como Lost Highway (Lost Highway: Estrada Perdida, 1997), Mulholland Drive (2001) ou Inland Empire (2006); pelo meio uma passagem pela televisão, com Twin Peaks a marcar uma geração de espectadores mas também do que era possível fazer no pequeno ecrã. Quando parecia que era impossível inventar algo de novo, Lynch ainda nos mostrou que ainda era possível ceder – e fazer aceder – o consciente a sonhos e pesadelos, numa obra que ressoará durante muito tempo.

Electricidade cobre o ar. Um casal sui generis tem um bebé e vê-se preso num pesadelo quando o chorar imparável da criatura viscosa que criaram se torna o foco das suas vidas. Entre a ternura e a ansiedade espástica, Eraserhead é o início, o meio e o fim de uma longa carreira a explorar o subconsciente, através da imagética que desenha sinapses neurais. Faz sentido dizer que um primeiro cruzar com o filme marca a iniciação na cinefilia como a entendo: uma viagem desenfreada, um portal de percepção que derruba os limites do visível e se deita no incompreendido. Quando o vi pela primeira vez, senti que já o tinha visto. Já metade do mundo lhe tinha colocado os olhos. Um colega do liceu tinha o cartaz na porta do quarto. Havia textos sobre o filme em todas as revistas que comprava, comentários exaltados sobre o design de som, sobre aquele jantar, a galinha sintética a expelir uma substância nauseante, a senhora com bochechas de espuma que vive dentro do radiador e canta sobre como “no céu tudo é perfeito”. Era aqui que viviam os sonhos, os mundos interiores que os humanos criam para sobreviver. Embora fosse apenas a sua primeira longa-metragem, fruto de um difícil nascimento, o jovem pintor de Montana David Lynch já era nessa altura um consagrado artista, e Eraserhead tinha-se rapidamente tornado num filme de culto. Sobre que outro filme poderia J. Hoberman ter escrito (na agora desaparecida Village Voice) em 1977: “é demasiado artístico para a 42nd Street (…) não tomaria ácido por ele, mas consideraria um acto revolucionário se alguém colocasse uma bobine do filme no meio de Star Wars”?
Do tecido das histórias tão vulcânicas que provocam um estado de torpor, o imortal David Lynch deixa-nos um legado precioso sobre a bizarria que é a natureza da “normalidade”. Talvez baseado na vida com Peggy Reavey e a filha de ambos Jennifer, que nasceu com os pés tortos, Eraserhead começou por ser apenas 21 páginas de argumento, todas filmadas durante a noite, com paragens durante as rodagens para o cineasta ir fazer a rota de entrega do jornal Wall Street Journal, o seu sustento naquela altura. E nunca a América tinha sido tão europeia, sem receio de ser tão radical, sem receio de serpentear. Até ali, o coração do cinema Americano residia na clareza da narrativa, estabelecida numa estrutura em terra firme de três actos. Em vez disso, Lynch produz uma onda comportamental, um organismo bioquímico. Por um lado, a dualidade do herói: inocente e criminoso. Por outro, em vez de funcionar por adição ou subtracção, o cinema era criado através do estabelecimento de um limbo, um certo estagnar que, neste caso, espelha a catatonia das suas personagens. O que explica porque é que foi tão difícil adormecer, realmente desaparecer no sono, durante Eraserhead. A última vez que o vi adormeci, e o zumbido industrial que reveste o filme, um contrabaixo que emite a baixa frequência de ou um aquário, se dentro dele estivesse, ou da porção mais funda do oceano, trouxe-me de volta, em sobressalto. Quando olhei para o relógio, reparei que poucos minutos tinham passado. Não havia como sair daquele mundo. Após entrada, não há como sair do mundo criado por David Lynch. Obrigada, sir.
Susana Bessa

Ao rever o filme de Lynch, sou inspirado pelo ritornello capitoso da sentença lapidar de Daney: “(…) le monstre a peur de faire peur”. Como um crítico tardio, como posso escapar ao diálogo com este texto inexcedível, inexaurível, divinatório, certamente dos grandes deste grande intérprete figurativo? Em The Elephant Man (O Homem Elefante, 1980), a função espelhada da formação do ego (eu me espelho, me projeto, sou capturado e enformado pelo olhar do Outro: uma fenomenologia aterradora se descreve aqui, uma luta de fórceps gêmeos em silente apocalipse), de que o episódio do encontro com a atriz é a ilustração mais perturbadora, em todo caso para-si-serena, cordial, cariciosamente fascinante, em suma objeto de uma eminência de mise en scène que se funda sobre o recalque vitoriano, pois a atriz oculta muito bem o seu horror ao preço de, ainda segundo Daney, aprender os codex de conduta civilizada ao resistir bravamente à face de Merrick, aprender a se travestir, a sublimar sua pulsão em um bibelot gracioso e colorido-, mas o que me comove propriamente é a trégua, dada no início e ao cabo do filme, que Lynch concede aos embates agonísticos de John Merrick com o olhar do Outro: O Homem Elefante começa com um rascunho encantado de sonho em que a sua Origem é impressa na retina e no id do espectador com o selo do arquétipo da animalidade: o encontro da Mãe, eternizada em efígie num medalhão ou portrait, com os elefantes. E se desvanece para o vórtex da morte nos braços de uma divindade profana onírica, pouco importa se mater dei ou medusina fulminação, finalmente liberto da máscara disforme que o apartou da alma própria (um tanto como Rilke falava da morte própria, uma vez que a face humana, cujo paradigma sacro foi estabelecido pelo véu da verônica, num mundo ainda judaico cristão deve ser objeto de adoração, e não de terrífico interdito), conservando-a num escrínio aterrador para melhor fazer ressaltar, em dualismo que um dia foi platônico, a sua essência por contraste encantadora. O Homem Elefante é a anedota deste seríssimo bildungsroman perceptivo, fenomenológico, psicanalítico para o espectador das desventuras de Merrick, que permanece atual porque o homem não é só História e leitura heroica; ele carrega em seu bojo um grão metafísico: pouco a pouco, o olhar dos que o conhecem vai mudando, porque vai anexando valores positivos à monstruosidade, como um espelho desta vez convexo, que os levam a imaginar-se no lugar do Totalmente Outro somático. Assistimos o olhar aterrado, progressivamente estreitado em um close sumário que vai se apossando da face lacrimosa de Hopkins quando encontra Merrick pela primeira vez, nos vãos da feira macabra: é a primeira vez de que só podemos sair Outros, o interdito e a parte maldita que vai transfigurar a experiência do homem médio vitoriano num pathos até então inédito para os limites de sua racionalidade entomológica e suas aspirações políticas. Se não fosse um filme tão compassivo para com a miséria e a grandeza descritas, eu pensaria nesta cena como o cerne de um tratado sobre o sublime; Merrick representa, por efração fantasmática, o sagrado (só ao longo do filme-bild é que ele vai se tornando humano, vai sendo dotado de linguagem, e sempre por intercessão do olhar alheio: é a sua humanidade incipiente, atestada pela linguagem, ao entoar o salmo 23, que vai lhe permitir que permaneça no hospital), e poucos estão prontos para este limiar que é também uma pedagogia infinitista. Lynch filma o hospital vitoriano como um labirinto de Creta: em planos angulosos, ensombrecidos, texturas crespas, luzes faiscantes e elipses bruscas de susto diante da iminência do Minotauro, ele nos adverte da existência do insólito no coração e na alma de uma civilização que precisa reaprender a ver para se reencontrar diante do espelho.
Freud nos falava do narcisismo das pequenas diferenças (uma cicatriz bastava para que tribos inteiras, segundo Maüss, se defrontassem até a morte), mas o que fazer diante de uma onimosa diferença por onde penetra a ferida narcísica? E o que fazer (questão que o filme vai, segundo sua divisão em atos e encontros privilegiados com a alteridade, como num thriller quietista, camerístico, huis clos, psicanalítico, elaborado e lentamente sublimado pelo trabalho do diálogo, pelo superávit espiritual da palavra, que a tudo há de vencer) quando este monstro que quebra a superfície luminosa do espelho da bela aparência, num mundo obcecado pela aparência, oferece-nos sua Verdade, talvez a mais nobre deste mundo? O sofrimento crístico de John não encontra no véu da verônica a superfície de sua revelação, porque nele a essência não se coaduna à aparência, uma vez que a ultrapassou em excelência ab ovo. Então, o que fazer com uma pessoa que pouco parece uma persona, palavra críptica dos primórdios usada para designar a comunhão de um visível somático e um invisível hermenêutico? A persona era a máscara de projeção de voz no teatro de arquibancada grega, e é neste nicho que se revela a consanguinidade de um Merrick que aprende a falar (cena da recitação do salmo 23 para John Gielgud) e aprende também a atuar (sequência do encontro com Anne Bancroft) com a humanidade tout court: teatro e fala, representação sonora e máscara foram tudo o que afinal nos definiu decisivamente como humanos, e é pelo caminho côncavo (contrário à reta do perpendicular, esquerdo, canhoto), estreito, áspero dos fins últimos (falar e atuar) que Merrick recupera, diante do olhar do Outro, a sua humanidade sofrida, e assim acede à identificação. A fonte teológica Q contém os salmos da bem-aventurança do Cristo, as graças do que em Mateus e Marcos permaneceram um rascunho; podemos pensar que a trajetória crística de Merrick (tantas vezes tinta de grotesco, de estridência formal saturada de tons mercuriais, como na neo-expressionista cena do desmascaramento pela multidão hostil, perto do final) o conduz, em caminho inverso, da agonia do Getsêmane à reconciliação luminosa dos sermões da fonte Q (O da montanha, mais conhecido): Merrick, neste filme docilmente assombrado pelo in memorian da Mãe, acede à palavra e acedemos com ele, e assim somos resgatados da dimensão mefítica da pura fascinação da imagem pelo trabalho do significante ético. Lynch nos deu uma potestade feito carne de horror expressionista e quietismo evangélico, de sic transit gloria mundi para os que restaram poderem ver em sua obra, em um tempo narcisista e pouco afeito à contemplação como o nosso, um exemplo e uma lição.
Luiz Soares Júnior

Das cortinas à orelha cortada, das escadas ao escuro, de Lincoln – essa rua proibida pela tia de Jeffrey – à máscara de oxigénio de Frank, é difícil escolher a porta de entrada para Blue Velvet. Em vez de todas estas opções, entro então pelo roupeiro: escondido nesse espaço esguio, Jeffrey espreita “pelo buraco da fechadura” aquilo que lhe parece ser matéria de sonho, abstrato movimento noir na imagem de um homem numa sala de estar com uma mulher que responde passivamente às suas ânsias sexuais, qual corpo desmaiado no jogo de existência do psicopata. Jeffrey é, pois, David Lynch encarnado por Kyle MacLachlan: o jovem bondoso que vê tudo com curiosidade imensa, prazer ambíguo e verdadeira dor de alma pela mulher agredida, ou, por outro lado, o detetive de sonhos obscuros romanticamente interessado na rapariga que lhe lançou as pistas do mistério. “It’s a strange world, isn’t it?”, diz-lhe ele a dada altura. E a expressão surge mais três vezes entre ambos, como que a sinalizar o fascínio do próprio Lynch pela estranheza alojada nas costuras da realidade. Ou nas ruas que as velhas tias nos dizem para não frequentar.
Gosto de pensar em Blue Velvet como o filme que estrutura uma certa sensibilidade para o(s) universo(s) do querido cineasta (anti)hollywoodiano. Um modo de nos instalar nos lugares da mente, ora enquanto frequências estéticas ora na virtude de ensaios criminais. Aqui, Lynch rasga o Sonho Americano, bem vivo no plano das rosas vermelhas do quintal, para revelar as suas entranhas, o inconsciente repleto de escaravelhos e desejos selvagens. É o filme da sua gramática explícita, com superfície e profundidade bem definidas: na primeira está o amor cândido de Jeffrey e Sandy; na segunda oxigena-se a pulsão e o medo como cantigas de embalar. Por isso, quando a Dorothy de Isabella Rossellini, já desprovida do roupão de veludo azul [um equivalente do vestido azul da Dorothy em Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939) ?] se encontra na mesma sala que a Sandy de Laura Dern, é como se sonho e vigília dissolvessem chocantemente as fronteiras… A Lynch devemos essa permanente e maravilhosa fusão no grande ecrã, que neste filme vem “cantada” por Dean Stockwell no tema “In Dreams” de Roy Orbison. Canto-o também, em loop, dentro da minha cabeça.
Inês N. Lourenço

Podemos ser nostálgicos, mesmo que o sejamos a partir de um mito, porque é isso que engrandece a memória. Na verificação dos factos, a surpresa: Twin Peaks só durou, realmente, duas temporadas, e a primeira teve 8 episódios, sendo que a segunda, a que arruinaria tudo, teve 22 e, provavelmente já ninguém a viu, nem os próprios. Quando a RTP2, então chamada Canal 2, a emitiu, ao sábado (porque é que nos lembramos destas coisas?!), a série era precedida pela telenovela Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa e, por isso e por causa dos genéricos, achei sempre que a Juna Marruá e Laura Palmer eram uma e a mesma tragédia social e moral. Uma transformava-se em onça-pintada, outra surgia envolta num plástico. Mas uma e outra, vítimas de uma sociedade hipócrita, estratificada, alimentada na desconfiança e fundida na dúvida e perseguição. O sincretismo do interior do Brasil não seria distinto da amoralidade dessa cidade de província norte-americana e os “bonecos” que haveriam de fazer a galeria lynchiana, modelos esculpidos no reflexo tão próximo de um Portugal a aprender a existir para lá do ombro -bufo, e na véspera do deslumbre que a década de todos os eventos internacionais iria ficcionar.
Quando a pandemia se abateu sobre as nossas cidades, nas janelas colaram-se uns autocolantes “directed by David Lynch”, com se dos vidros que nos separavam dos vírus pudéssemos ver apenas a mulher do tronco, ouvíssemos os pneus do carro do agente Dale Cooper e, no postigo dos cafés, só pudéssemos ouvir a Shelley pedir uma fatia de tarte para levar e um café, daquele aguados como não sabemos fazer. A cidade era deserta, e a contagem dos mortos procurava culpados no outro, no vírus, na família. Foi assim com a série, resolvida na surpresa da evidência quase desapontante que confirmava que o crime estava sempre ao nosso lado. Twin Peaks, a série, formou não só uma geração que vivia em frente à televisão e esperava semanalmente pelo arrepio de Badalamenti, mas uma ideia de teledramaturgia de assinatura que fez apagar da memória a errância da própria narrativa. Fez mais: criou um epifenómeno que abalou as fronteiras daquilo que pertencia ao cinema mas a televisão não fazia, muito antes dos tempos em que agora se vive, onde tudo cabe em todo o lado, porque o formato é definido pelo lugar onde se vê. A prequela Fire Walk with Me (Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, 1992), com honras de entrada na competição do Festival de Cannes, o mesmo de Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992) cuja Palma acabaria nas mãos do esquecível Den goda viljan (As Boas Intenções, 1992) de Billie August, porque o sexo mete muito medo e pior, a culpa e a antecipação são maior assassinos que a compreensão de que os sinais já lá estavam… e que criaria, como agora se diz, um multiverso, com sequelas planeadas, livros e, finalmente, uma terceira temporada em 2017… mas feita para quem e para quê, se já sabíamos (sabíamos) o quem e o como?!
Twin Peaks mainstremizou David Lynch, fazendo dele autor de consumo, mais do que os filmes que metiam real medo. E isto antes de um tempo em que isso era prática, moda ou estratégia. A série era um teste e, sem antecedentes, hipótese de leitura sobre a chegada denunciatória da distopia desde sempre anunciada pelo grande ecrã. Ali, nas televisões sem comando, nem distrações outras vindas de telemóveis ou pesquisas para saber o que acontecia a seguir, a confiança era tudo. E foi isso que matou Laura Palmer.
O que fica de Twin Peaks é uma ideia, um ambiente, a sombra e os esgares de personagens-tipo, antes de serem anedotário e quando ainda se confiava na ficção para não revelar tudo. Eram, sem o serem, figuras para as quais a empatia e a moral não serviam de ficção e, como se fossem aguarelas –porque frágeis –, com o tempo se fossem dissolvendo, como a cabeça do pai de Laura Palmer, tomada pelo espírito do Bobby e lançada contra as grades de uma cadeia que, àquela hora da noite, era demasiado parecida com a sala de estar no meio de uma aldeia perdida num mapa a que chamávamos casa.
Tiago Bartolomeu Costa

Fred (Bill Pullman) e Renee (Patricia Arquette) recebem sucessivas cassetes de VHS sem remetente, que contêm imagens registadas no seu domicílio conjugal. Dois detectives de Los Angeles visitam o casal e Renee diz-lhes que não têm nenhuma câmara de filmar, o marido não gosta delas. Fred justifica-se: “Gosto de recordar as coisas à minha maneira”; depois completa: “Como as recordo, não forçosamente como realmente aconteceram”. Desde os primeiros minutos de Lost Highway (1997) que a imagem surge como uma ameaça, associada à vigilância, mas também como um recéptaculo de significações, imagens à espera de serem interpretadas, em que sonhos e alucinações colidem com a realidade e em que os protagonistas alcançam o outro lado do espelho, ao fundo da escuridão do corredor, para se desdobrarem em renovadas identidades. Já próximo do final do filme, o protagonista será perseguido pelo homem misterioso, a empunhar uma câmara, como se fosse uma arma letal. Este homem mistério foi a última interpretação de Robert Blake, apresentado como um resto, um vestígio de Hollywood, no fim de uma longa lista de pequenos papeis, desde a infância do actor nos anos 1940 e que conheceu a sua aparição mais potente como protagonista de In Cold Blood (A Sangue Frio, 1967), de Richard Brooks, tratado sobre a história da violência na América, a partir do romance de Truman Capote.
Lost Highway inaugurou a fase final da obra de David Lynch, que seria coroada pelo seu magnum opus: Mulholland Drive. Patricia Arquette, que se desdobra em duas mulheres (ou duas identidades, Renne e Alice), ora morena, ora loira, alicia os protagonistas masculinos para o prazer, o deleite, para depois os arrastar para o crime, o infortúnio e a morte, como uma actualização do film noir, transformado num filme de terror conjugal, dominado pelo ciúme. Lynch foi dos poucos cineastas que ameaçou o coração de Hollywood, o mainstream, com uma obra de pendor ensaístico, a entender o cinema como um filiado da pintura, em que cada plano ambiciona o belo e a possibilidade de interpretação, menosprezando o outro parente do cinema, o romance do século XIX, das histórias verosímeis e bem contadas. Na ante-câmara de Mulholland Drive, Mr Eddy (Robert Loggia) associa a potência do automóvel ao desvario do sexo, a uma sintomatologia de violência, como uma herança do humano, que não é passível de ser barrada pelas convenções. É então que os palácios de Los Angeles albergam o gozo, o prazer sexual e imagens de pornografia, como uma ocultação de imagens de morte, a antecipar os traumas revelados pelo filme seguinte, no mapa que Mulholland Drive deixou a descoberto, no negrume que substituiu a luz venenosa de Los Angeles, filtrada pelas copas das palmeiras. E o som de Lost Highway? Todos os corredores, as salas, as caves, as ruas e os jardins possuem um som identitário. Para além das baladas funestas de Baladamenti, as guitarras mescladas com a eletrónica de Trent Reznor e o jazz contaminado de blues de Barry Adamson participam de uma espécie de ópera, em que a música nunca adorna, antes toma parte de uma arquitectura sofisticada, de ambientes e composições, de lugares e personagens. Já próximo dos créditos finais, e quando começa a soar “Driver Down” de Trent Reznor, já não é possível apartar o som da imagem de uma estrada deserta e nocturna: as estradas de David Lynch são possibilidades de ficção, são estradas que não têm fim.
Vítor Ribeiro

Há vários anos, após sair de um filme na Cinemateca, comentei (com alguma irritação) com uma querida amiga que não tinha conseguido evitar fechar os olhos durante a sessão. Por vezes, o escuro do cinema não convida apenas ao filme, há inúmeros espaços no negro que crescem para além do ecrã, entre as preocupações comezinhas da vida ao sonho. Nisto, a minha amiga conforta-me dizendo uma deliciosa frase, “li, numa entrevista, que o Kaurismäki tinha dito que dormir faz parte do filme, pois aquilo que sonhamos durante o filme é tão importante quanto o próprio filme”. Penso que nunca adormeci durante um filme do David Lynch e, no entanto, sonhar dentro de um filme do Lynch seria uma justa homenagem. Não é por acaso, que com uma enorme sageza, o Luís Miguel Oliveira escreveu que tinha morrido o Goya do cinema. De facto, Lynch era esse pintor moderno dos sonhos, um verdadeiro geólogo do onírico, capaz cartografar do vale assombroso do subconsciente ao pico luminoso da consciência.
Talvez Lost Highway seja um dos seus mais belos e terríveis sonhos da história do cinema. Uma Patricia Arquette etérea, como raras vezes a vimos no ecrã, um belo e fascinante animal de cabelo loiro e volumoso, de voz doce e olhar voraz e impiedoso. E um Bill Pullman, menino-homem, uma presa de aparência robusta e jovial e de olhar claro e viril, patético na sua própria tragédia, entre o sonho de possuir e o pesadelo da impotência. Ah, Édipo, ah, Freud!, ah, Dali, e tantos outros que moveram-se nesse imenso teatro do subconsciente (como diria Deleuze e Guattari sobre a psicanálise), em que o desejo de possuir desaba perante o riso, a frase “you will never have me” sussurrada ao ouvido. Esse é o grande motor do cinema lynchiano, o medo da impotência, a tomada de consciência (fatal) da impossibilidade de possuir o outro. De Blue Velvet a Wild at Heart, de Twin Peaks: Fire Walk With Me a Mulholland Drive, são tudo histórias que nascem no sonho de possuir, na aura de um ser apaixonado e no culminar trágico (e violento) dessa mesma incapacidade. Mas além da relação de forças do par, nada no cinema de Lynch esgota-se nessa relação. Pelo contrário, o desejo e a sua impossibilidade resultam de forças externas misteriosas, subterrâneos e terríveis que comandam os personagens e os acontecimentos, uma enorme lição retirada do magnífico Experiment in Terror (Escravas do Terror, 1962) de Blake Edwards, filme certamente que terá habitado e dominado as obsessões de Lynch ao longo da sua carreira.
Termino este apontamento-homenagem sobre o David Lynch e este filme com uma estrofe da canção do Roy Orbison, “In Dreams” (1963), certamente outro motor do cinema de Lynch (importa recordar que este aparece a cantar numa cena do Blue Velvet), que terá servido de carburador (e não é por acaso que mantenho-me dentro da gíria automobilística neste texto, pois Bill Pullman interpreta o papel de um mecânico), pois tal como o Orbison canta, “In dreams I walk with you / In dreams I talk to you / In dreams you’re mine all of the time / We’re together in dreams, in dreams // But just before thedawn / I awake and find you gone”.
Bernardo Vaz de Castro

Neste filme, Lynch deixa de lado a sua preferência pela lógica dos sonhos, o seu pendor para o surrealismo e leva-nos numa viagem linear, uma literal “straight story” que promete com o título. O filme que saiu em 1999 (talvez dos melhores anos de cinema da sua história, mesmo que da sua história americana) e parecia esquivar-se ao que tornava o cinema de Lynch, bem, lynchiano. Filmado em ordem cronológica e sempre focado no personagem principal, fora certos momentos em que espreitava a filha dele, conta a história real de um velho homem que fez uma viagem de Iowa ao Wisconsin (240 milhas, portanto 386 km) num tratorzinho/cortador de relva, e apesar da straighforwardness que inevitavelmente caracteriza o filme, há vários elementos que denotam nosso realizador e as suas mãos que tecem a obra. Como sempre no seu cinema, há qualquer coisa por debaixo da ideia de straighforwardness que a torna bem menos linear. Aqui, o jogo é de contrastes. A senhora a apanhar banhos de sol ao mesmo tempo que Alvin cai no chão, os bombeiros que dominam ao fundo da tela um fogo enquanto Alvin perde o controlo do veículo e um grupo de pessoas o tenta ajudar.
Alvin é também uma espécie de avatar de Lynch, na sua determinação e teimosia, seja ao acender o tabaco que piorará o seu enfisema pulmonar, seja a desafiar outras vontades do médico, como andar 386 km num veículo periclitante. Quando Alvin mete algo na cabeça, irá até às últimas consequências, independentemente das falsas partidas que possam haver.
O filme acaba por ser um jogo, em que o mundo mais estranho de Lynch é aqui visto por olhos com fé na humanidade — o absurdo e o prosaico. Alvin é ajudado por estranhos e ajuda também quem lhe passa pelo caminho. A viagem deste velho homem para ir ter com o irmão que teve um enfarte é uma história de amor fraterno, aquele que se dá a um irmão depois de uma desavença ou a um estranho. Num mundo como o de hoje, massacrado pelos lados mais funestos da humanidade, talvez este seja, afinal, o gesto mais lynchiano de todos.
Ana Cabral Martins

É frequente encontrar Mulholland Drive de David Lynch no topo das preferências de listas, quer seja para melhor filme do século XXI (BBC) ou da década (Film Comment, IndieWire). Se normalmente tanto consenso será de desconfiar, esta é uma das ocasiões em que a obra é tão extraordinária que os elogios são justificados. A verdade é que este filme pode ser visto como uma súmula do trabalho desenvolvido por Lynch ao longo da sua carreira, onde as suas preocupações com as possibilidades do desconhecido, o desmontar da influência do subconsciente e psicoses sobre a interpretação da realidade, a normalização do inexplicável como uma certeza, o conluio entre essa mesma realidade e a ficção, que parecem habitar uma espécie de limbo indefinido, imaterial e material ao mesmo tempo, e que dão lugar a filmes-sonhos que parecem filmes-pesadelos impressionistas. São aspectos que aparecem aqui em sintonia perfeita, e Mulholland Drive surge também num período criativo particularmente fértil de Lynch, pouco depois de Lost Highway e antes de Inland Empire, que exploram temas e estéticas semelhantes: o medo da perda de memória e de identidade, a cedência de controlo do destino, a multiplicação de personalidades e linhas narrativas.
Se este filme pode ser descrito como um sonho febril, é um sonho americano distorcido e mutilado, já que decorre no epicentro de Hollywood, terra dos sonhos, e é também um olhar para dentro do universo do cinema. No centro da história encontramos uma jovem actriz aspirante, numa interpretação magnífica de Naomi Watts, que certo dia ao chegar a casa encontra uma mulher que esteve envolvida num acidente de carro, e não se lembra do que lhe aconteceu, nem sequer quem é. Nos episódios que seguem-se (e é curioso pensar que Mulholland Drive começou por ser pensado como uma série para televisão), acompanhamos as duas mulheres na perseguição de escassas pistas, na colisão entre um submundo de crimes escondidos e o submundo do cinema, e o seu modo de destruição de sonhos. Essas pistas abrem portas para outros mistérios, na procura da reconstrução de uma história e de uma identidade, sem nunca ter a certeza de nada excepto uma realidade fugidia, numa ambiguidade que coloca o espectador no mesmo espaço das personagens, e que permite a cada um criar o seu próprio filme dentro do filme. É assim a derradeira cedência ao domínio da imaginação.
João Araújo