A primeira vez que vi este filme, foi em 2018, na Cinemateca Portuguesa, inserido no belíssimo ciclo “American Way Of Life: Vidas Em Crise”, organizado pelo Francisco Valente. E não é por acaso que começo este texto destacando o tema do ciclo em que este filme foi exibido, até porque parece-me evidente a relação entre as “vidas em crise” e o cinema americano a partir do final da década de 60/princípios de 70, altura em que o sonho dá lugar ao desencantamento. Também me parece evidente a escolha de certos títulos, diria mesmo inescapáveis a um ciclo com tal proposta, como é o caso de Wanda (1970) de Barbara Loden, Alice Doesn’t Leave Here Anymore (Alice Já Não Mora Aqui, 1975) de Martin Scorsese ou Annie Hall (1977) de Woody Allen; mas outros, como é o caso do enorme The Panic In The Needle Park (Pânico em Needle Park, 1971) de Jerry Schatzberg, o curioso e terno Girlfriends (1978) de Claudia Weill e este The Electric Horseman (O Cavaleiro Eléctrico, 1979) de Sydney Pollack, são títulos certamente menos evidentes e menos vistos, os quais devemos à cuidadosa curadoria do antigo programador da Cinemateca.

Mas esta “crise” não é apenas uma crise cinematográfica. Diria antes que a crise do cinema é apenas parte (e reflexo) de uma crise maior, de um “mal-estar civilizacional”, como dizia Freud, que, à época, atravessava a sociedade americana. Depois do furor do fim da II Guerra Mundial e da pílula dourada do Plano Marshall, o culminar do mito da heroicidade (criado pelo próprio cinema enquanto máquina historiográfica, na edificação do cowboy) e o capitalismo desbragado, deram lugar ao tédio do consumo, ao fastio da moral pequeno-burguesa, à monotonia da família, à irritação da vida urbana e ao cansaço do trabalho mecanizado. E enquanto isto acontecia no frágil reino da classe assalariada branca e heterossexual, do outro lado do espelho, por fim, as fissuras eram cada vez maiores e mais visíveis na imagem do “sonho americano”, levando negros, mulheres e homossexuais, a reclamar a viva-voz, que esse tal sonho era na verdade um pesadelo feito às custas da violência racial, da repressão policial e da opressão sexual.
Do outro lado do Atlântico, também o cinema e a sociedade encontravam-se em convulsão. Enquanto os estudantes franceses arremessavam pedras à polícia, paralisavam-se fábricas e universidades, constituíam-se assembleias ditadas por proletários e intelectuais, o cinema de forma ainda mais radical, declarava a sua própria morte, ao jeito nietzschiano. De Debord a Godard, o gesto destrutivo era claro e imperioso, era necessário acabar com o cinema burguês, de fórmulas gastas, de entretenimento alienante e feito para um público que procurava apenas esquecer a sua própria condição.
É certo que as ondas de choque do cinema europeu (e em particular do cinema francês, esse eterno centro radial artístico) fizeram-se sentir do outro lado do Atlântico, contribuindo (e acelerando até?) ao aparecimento de uma “Nova Hollywood”, mas a fábrica dos sonhos já dava sinais do seu próprio esgotamento. Vários factores contribuíram para este “declínio”: os grandes mestres do cinema clássico estavam a morrer, metaforicamente e literalmente – Ford em 1973, Lang em 1976 ou Ray em 1979 – outros, depois da guerra e da reconstrução da velha Europa, quiseram regressar do exílio a que o fascismo e o nazismo os tinham condenado, fartos do constante estrangulamento de um sistema de códigos, regras, mecanismos e de géneros cada vez mais restritivos; outros foram ainda perseguidos pelo macarthismo, ora vigiados de perto, ora mesmo interditos e ainda há aqueles, que apesar de continuarem a fazer cinema, oriundos desse período áureo, como é o caso de Minnelli, Kazan ou Cukor – do mesmo modo que certos géneros “clássicos”, como é o musical, o western ou o noir, são irrepetíveis – e é claro que não me esqueço dos magníficos musicais do Demy, dos noires do Melville ou de todos os western spaghetti, mas qualquer um destes casos, mais do que contrariar, reforça a minha ideia da irrepetibilidade do gesto –, também eles, a um dado momento, o esplendor, o brilho e a fantasia, deu lugar ao lamento, a um adeus que por vezes mais se pareceu ao estertor do próprio sistema do qual fizeram parte (e foram a melhor parte).
Contudo, não tenhamos ilusões quanto ao “sistema americano”, porque mesmo a Nova Hollywood foi um sistema, por vezes, tão implacável quanto aquele que sucedida. Também ele teve os seus tarefeiros e os seus grandes mestres e também ele planificou, cronometrou e ordenou, assim como teve os seus rasgos, do qual este filme e este realizador são exemplo. Do Pollack do sistema, temos a (triste e sofrível) memória galardoada do Out Of Africa (África Minha, 1985) e de praticamente tudo aquilo que lhe sucedeu, mas tudo aquilo que antecede, é na sua larga maioria o que de melhor houve no cinema americano entre os finais da década de 60 e os anos 70, da Nova Hollywood. Talvez o esplendor cinematográfico de pouco mais de dez anos pareça pouco quando comparado a um Ford, mas guiarmo-nos por tais métricas e sobretudo determinar a qualidade de um cineasta que se foi perdendo no tempo é injusto, sobretudo quando este foi capaz de inúmeras obras-primas.
Se no tempo do Pollack já não é possível filmar um Brigadoon (1954) de Vincente Minnelli ou um Singin’ In The Rain (Serenata à Chuva, 1952) de Stanley Donen e Gene Kelly, este ainda é, no entanto, um cineasta de charneira, entre essa antiga Hollywood e a Nova Hollywood. Prova disso é a sua primeira obra-prima, This Property Is Condemned (A Flor À Beira do Pântano, 1966), filme que apesar de guardar um certo esplendor do cinema clássico americano – talvez o brilho desse esplendor esteja sobretudo na presença irradiante de Natalie Wood – é incapaz de reproduzir essa doce e mirabolante fórmula, uma máquina onírica onde a dor, a morte e o sofrimento são contingências do caminho, nunca o seu verdadeiro desenlace. É certo que sempre houve violência e crueldade nos noir e sobretudo nos melodramas, de Stahl a Sirk, um infindável role de mulheres perdidas, sofridas e sacrificadas. Contudo, mesmo naquilo que houve de mais indigno e doloroso retratado pelo cinema clássico americano, a solução final era sempre (e invariavelmente) o happy ending ou no limite, a redenção. Porém, não há qualquer redenção em This Property Is Condemned ou em qualquer outro drama de Pollack.
Não se trata de que os antigos cineastas eram uma espécie de falsários e os novos cineastas, os arautos da verdade. Por vezes, é possível contar grandes verdades através de maravilhosas mentiras e quem alguma vez duvidará da verdade que há contida no Johnny Guitar (1954) de Nicholas Ray ou no How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941) de John Ford? Sem mentira, não haveria cinema, mesmo quando estamos perante uma obra limite, como é o caso de They Shoot Horses Don’t They? (Os Cavalos Também Se Abatem, 1969), talvez o melhor e mais implacável filme de Pollack. Nesta obra, mesmo tudo aquilo que nos parece mentira, que sabemos como ilusão, atinge-nos de forma impiedosa, dá-nos o que de mais cru e verdadeiro há em cada uma daquelas imagens. E talvez essa diferente alquimia entre falso e verdadeiro, seja precisamente aquilo que consubstancia a nova natureza de Hollywood. O falso dá lugar ao verdadeiro e o verdadeiro é o falso. Sem que tenha de recorrer a rebuscadas explicações metafísicas, o que procuro dizer sobre a mentira e a verdade é que aquilo que era então mentira feita como verdade no cinema clássico, é agora verdade porque é mentira, porque o ilusório se desmorona como um castelo de cartas e no limite, esse processo de revelação, não deixa de ser também uma mentira.
Há nessa mentira cinematográfica uma verdade que transcende o ecrã e que nos ilumina, tal como nos ilumina a bondade do rosto de Redford, na sua imensa beleza, em que os cabelos louros se confundem com o vasto deserto.
Talvez, The Swimmer (Enigma De Uma Vida, 1968), de Pollack e Frank Perry, seja um dos melhores exemplos, para clarificar um pouco melhor esta ideia. No cinema clássico, enquanto o todo é ilusão, é mentira, tudo o que é falso, deve ser, no entanto, verosímil, tido como verdadeiro. Aqui, o gesto é precisamente o contrário, é através da mentira, da ilusão, que a verdade se dá. É por isso que Wood, Lancaster ou Fonda, no fim, não tem onde regressar, tudo está desfeito, tudo à volta deles desmoronou-se, a ilusão em que viviam abateu-se sobre eles como uma enorme e clarividente tragédia (tal como o poema que abre um dos filmes de Fassbinder, “quem não tem casa hoje/ nunca mais terá”). A única mentira que resta é a natureza das suas próprias vidas, que ao longo do filme é desarmada, exposta a nu. Também em The Electric Horseman, é a vida ilusória, de um cowboy faz de conta, que perante a insustentabilidade daquela mentira, daquele espetáculo pastiche, do cavalo sedado e de números falseados, que Robert Redford decide romper com tudo aquilo e fugir com o cavalo, o Rising Star, rumo ao deserto, para que o possa curar e posteriormente devolvê-lo à vida selvagem.
O gesto de Redford em salvar o precioso cavalo, é duplo gesto, também ele precisa de se salvar a si mesmo, daquela armadilha em que se deixou cair. Redford, projecta-se no cavalo, naquele outrora portentoso animal vê a sua própria imagem, de herói em queda (não é por acaso que o cavalo se chama “Estrela em Ascensão” e Redford aparece como o duplo negativo desse tão promissor nome, como uma “Estrela em Queda”), também ele sedado pelo dinheiro e as luzes artificiais da empresa de cereais, para quem promove aquele sorumbático espetáculo de rodeo. No deserto do Nevada – que serve como antítese à cidade e à vida urbana – humano e animal desintoxicam-se do veneno a que estiveram sujeitos. Através de largos e belos planos, Pollack captura a vastidão do deserto para devolver cowboy e cavalo à liberdade, mesmo que provisória. Nem mesmo o idílico deserto é capaz de salvaguardar a paz a Sonny e Rising Star, dando origem a uma série de peripécias, entre a jornalista Jane Fonda, que procura obter a verdade por detrás de tão inusitada fuga, e a polícia que, entretanto, procura o valioso cavalo, a mando da empresa de cereais.
A cruzada em The Electric Horseman, ao contrário dos anteriores filmes de Pollack, não culmina numa desesperada verdade. Não é que Pollack tenha decidido dourar a pílula, mas neste filme a verdade e a mentira são de natureza distinta. The Electric Horseman aproxima-se mais de uma outra obra-prima, The Way We Were (O Nosso Amor De Ontem, 1973), em que não é a ilusão em que os seus personagens vivem (e da qual estão alienados) que se vê estilhaçada pela inclemente verdade. Pelo contrário, tanto Redford (em ambos os filmes), Fonda ou Streisand, estão conscientes da sua própria condição, dessa desilusão, desse desencantamento, que os conduz a um processo de reaprendizagem, diria mesmo de cura (e uso a palavra cura com alguma moderação, ciente de toda a charlatanice actual da autoajuda e do autoconhecimento). Porque a verdade de um filme, ou mesmo da vida, não é por essência dor. Talvez a dor seja o modo mais intuitivo, mais óbvio, pelo qual nos vemos confrontados com a dureza da verdade. Mas a vida também é – e talvez seja essa a mais difícil de todas as tarefas – alegria, prazer, satisfação, amor, solidariedade, comunhão.
Mesmo Freud dava como solução final a uma parafernália de patologias, sintomas e desvios, o amor e penso que Pollack, ciente dessa mesma tragédia que por vezes a vida e o cinema são, crê que é no amor que podemos reencontrar a verdade. Não o amor fantasioso de um Kelly a descer de um lugar fantástico ou de um poste de iluminação; mas, antes, o amor sem qualquer logro romântico ou delírio fantasioso, apenas o esplendoroso rosto de Streisand na cama com Redford, que vê, por fim, o realizado esse antigo e secreto desejo. Há nessa mentira cinematográfica uma verdade que transcende o ecrã e que nos ilumina, tal como nos ilumina a bondade do rosto de Redford, na sua imensa beleza, em que os cabelos louros se confundem com o vasto deserto. O amor, na Nova Hollywood, é certamente de outra natureza, assim como a verdade e a mentira e, no entanto, a imutabilidade das mesmas transcende o tempo e os homens e permanece até agora como matéria do próprio cinema. Hoje, também já não é possível filmar como Pollack e a restante e antiga Nova Hollywood e a prova dessa irrepetibilidade é precisamente objectos como este, de um esplendor onde a verdade e a mentira, mudaram (novamente) irremediavelmente.