Num dia pobre para o cinema, o dia em que Chris Marker nos deixa, temos vontade de recuperar as suas imagens. Todas, sem excepção. Mas porque essa é uma tarefa que merece a atenção individual, o labor do olhar de cada um, deixamos a nossa homenagem a Marker com algumas palavras sobre uma das suas melhores obras, Sans soleil (1983).
Um dos termos mais utilizados para qualificar a personalidade artística de Chris Marker é o de “cineasta inclassificável”. Epíteto este, quiçá mais cómodo do que definidor, que deriva sobretudo do facto da sua obra atravessar uma multiplicidade de expressões (a literatura, a fotografia, o cinema), apoiada numa outra multiplicidade, a dos suportes artísticos. Essa heterogeneidade é de certa forma cultivada pelo próprio, na forma como a sua biografia, a sua “história”, é enviesada, confusa, mesclando-se sem fronteiras com os próprios objectos que produz. De tal forma essa identidade difusa é um facto que para conhecer realmente Chris Marker, o melhor que há mesmo a fazer é “inventá-lo”. É essa indiscernibilidade entre a ficção e a História, e a memória que temos dela, que mais ocupa o seu cinema e que define claramente os pressupostos de Sans soleil, comummente considerada a sua opus maior. Mas mais importante do que sublinhar a importância histórica e visibilidade “exterior” que esta obra lhe restabeleceu [fora de França, concebe-se injustamente o período desde La jetée (1962) a Sans soleil como uma espécie de “vazio”; no entanto, datam daí alguns dos seus documentários mais importantes como Le joli mai, loin du Vietname (1963) ou Le fond de l’air est rouge (1977)], é tentar perceber a razão pela qual Sans soleil é uma espécie de “epicentro” de todo o cinema de Marker.
Numa estrutura musical e epistolar, uma mulher lê e comenta cartas que recebeu de Sandor Krasna, um cameraman freelancer, alter-ego que se crê ficcional e “invisível” do autor. “Il écrivait: «Après quelques tours du monde, seule la banalité m’intéresse encore. Je l’ai traquée pendant ce voyage avec l’acharnement d’un chasseur de primes»”. É precisamente entre esta caça à banalidade nas suas viagens pelo Japão, Cabo Verde, Guiné-Bissau e a sua organização posterior em memória afectiva e (re)construção da História, que Sans soleil se concebe simultaneamente como filme labiríntico e ensaio antropológico.
Começa-se então a captar a importância da obra no espectro da criação de Chris Marker. Como é sabido, muito da afirmação do cineasta francês fez-se sobretudo a partir dos anos 60, no entusiasmante espírito do “cinema directo” (nunca ouvirão Marker proferir a expressão “cinéma vérité”) que se traduzia sobretudo em novas formas de filmar, num novo posicionamento de autores como Varda ou da dupla Rouch/Morin, ante o mundo e ante a “máquina”. É curioso notar que resulta deste período o primeiro movimento de apagamento do artista Marker perante a sua obra. Falamos das consequências históricas que resultam de filmar debaixo da “gigantesca sombra” que se chamava Nouvelle Vague e de pertencer a um outro grupo de cineastas – os Left Bank Directors.
Ao fim ao cabo, Sans soleil acaba por funcionar como uma obra de maturação e apreensão das experiências desses anos, que é como dizer, no caso de Chris Marker, de uma afirmação de um subjectivismo mais radical. Um novo “eu”, que transforma o Marker “flâneur engajado”, [sem que isso seja uma contradição nos termos, porque o era, em obras como as acima citadas ou Cuba si! (1961) ou Description d’un combat (1961)], em Marker artista moderno. Mas muito do que dita essa transformação, a partir de Sans soleil, passa por uma meditação sobre o passado que é, ele mesmo, mais uma questão de reconstrução do que de distância. Esse novo posicionamento encontra uma certa amargura pela falência das lutas revolucionárias dos anos 60 de que fez parte, neste filme quase sempre vistas como ritos em desaparecimento e queda. No entanto, não se pense em Sans soleil como manifesto impotente do fim de um tempo. Há por aqui antes um novo acertar de agulhas que prevê, nas imagens distorcidas e sons tratados por sintetizador, um novo entusiasmo, um novo espaço no qual Marker se viria a instalar. Obras futuras como Level Five (1997) ou o seu CD ROM Immemory (1998) continuariam as antigas obsessões sobre o tempo, a memória, a História e as suas diferentes representações, mas desta forma “apoiadas” num novo universo multiplataformas, com mais links, com maiores possibilidades de interacção com o real. Neste sentido, é pelo menos desde Sans soleil que Marker se afirma artista multimédia avant la lettre, num tempo em que a tecnologia dos videojogos ainda era só “metáfora gráfica da humanidade”.
Para encerrar este breve excurso sobre a importância relacional deste documentário na carreira de Chris Marker, saliente-se um aspecto por vezes esquecido: a ficção científica. Krasnor refere numa das suas cartas que o seu amigo japonês Hayao Yamaneko lhe sugeriu que se é impossível modificar as imagens do presente, transforme-se o passado. Essa mutação é visível na distorção das imagens do real e tem um nome: a Zona (em homenagem à ficção racionalista de Stalker, de Tarkovski). Há uma firme convicção de que é nessa Zona, nessa bolsa impermeável ao espaço convencional e à cronologia, que as verdadeiras memórias do passado ultrapassam a acção transformadora do tempo e adquirem a sua verdade. Recuando atrás mais de uma vintena de anos, até La jetée, percebemos que o lado ficcional, místico, do cinema de Marker não foi tido, como muito se escreveu, como um “acidente de percurso” de um documentarista. Antes se assiste, em várias obras posteriores, à incorporação dessa “ficção” numa forma de conceber e documentar a realidade, hibridizando a tal ponto os seus filmes que já não é certo saber se é a ficção científica um prolongamento do lado documental ou vice-versa.
Mas não nos esqueçamos que esta é uma obra fascinante por direito próprio. Filmado em várias partes do mundo, Sans soleil é um falso filme geográfico. É antes o tempo a dimensão que importa trabalhar. Como se diz, “(…) au XIXe siècle l’humanité avait reglé ses comptes avec l’espace, et que l’enjeu du XXe était la coahabitacion des temps”. Desde as primeiras frases da belíssima voz off de Florence Delay que as palavras convocam uma torrente demencial de imagens. Estas são colocadas num “tempo infernal”, onde a montagem como geografia criativa, cola argumentos, associações afectivas, e outras quaisquer “choses qui font battre le coeur”. É nesse vórtice temporal que Sans soleil é uma meditação sobre tudo, sobre a viagem, o consumismo, as sociedades africanas, a metrópole de Tóquio, a nostalgia, a televisão, o cansaço, a história, ou as memórias impossíveis de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock. E nós? Que fazer perante este tudo, apresentado em “ataque” ao intelecto e à percepção? Resta-nos, quem sabe, entrar calmamente na Zona, a Zona do espectador, onde por momentos o voyeur tomará o lugar do “voyeurizado”. E essa talvez seja uma outra “imagem de felicidade”.
Sans soleil e La jetée passam dia 7 de Agosto (terça-feira), às 21:30, no cinema Nimas.
Um dia antes (6 de Agosto), às 21:00, é projectado na mesma sala Le fond de l’air est rouge.
Um dia depois (8 de Agosto), às 21:30, o Nimas mostra Level Five.