Não será bem em jeito de resposta ao texto do Luís a vituperar a “serialização” do cinema causada pela nefasta influência da televisão que inicio esta crónica, dedicada, como o nome torna óbvio, às séries de televisão, embora creia que há uma defesa a fazer do pequeno ecrã. Atenção!, não me incluo no grupo dos que consideram, por razões cada vez mais insondáveis, que a televisão vive uma qualquer Idade de Ouro, tendo ultrapassado o cinema como arte. Por cada The Wire há incontáveis xaropadas serôdias (assim de cabeça, para pegar logo numa das darlings da crítica, Homeland), por cada Arrested Development milhentas sitcoms sensaboronas com risos e piadas enlatados. No entanto, como o Luís escreve no texto dele, a “serialização” permite aprofundar e expandir a ficção, conhecer mais a fundo personagens e situações (nesse sentido, aproxima a série televisiva do romance), e só a televisão permite esse tipo de “serialização” – a Internet também poderia mas tem mais dificuldade em lidar com objectos que durem mais do que uns cinco, dez minutos, o tempo de uma pausa no trabalho. A televisão não substitui nem substituirá jamais o cinema; é outra coisa, que nos melhores momentos também pode atingir o estatuto de arte. Nestas crónicas, vou tentar ater-me a esses momentos.
“Dai-me a criança durante os sete primeiros anos e eu dar-vos-ei o homem.”
Em 1964, a produtora Granada quis antecipar um retrato da Inglaterra do ano 2000, pegando em quatorze crianças de sete anos (que teriam quarenta e cinco anos no dealbar do novo milénio) – Andrew, Charles e John (meninos bem a caminho das melhores escolas); Suzy, Jackie, Lynn (filhas da classe média-baixa de Londres); Sue (menina rica e meio triste); Tony (pequeno e reguila prole de proletários); Paul e Symon (à altura, aos cuidados de uma instituição social); Nick (um rapaz perdido numa ruralidade distante); Neil e Peter (dois petizes de Liverpool, nem muito ricos nem muito pobres); e Bruce (das classes altas mas com coração de missionário). O documentário televisivo, conduzido por Paul Almond sob o signo da epígrafe jesuíta que encima este parágrafo (encerrando uma visão bastante determinista do Homem), chamou-se Seven Up! e, mais do que o futuro, retratava o presente, época de diversas revoluções (os miúdos referem os Beatles a dado momento), ainda assim muito ligada ao passado, a uma rígida diferença de classes muito britânica, como, aliás, parecia ser a intenção. As crianças respondiam a várias questões sobre o casamento, filhos, educação, racismo, preconceitos, etc. com a candura própria da idade, se bem que em muitas respostas se ouvisse a voz dos pais.
Provavelmente Seven Up! não passaria de um curiosidade de que poucos se lembrariam (embora seja interessante como objecto único), se Michael Apted – realizador inglês que emigrou para os EUA e assinou obras como Nell (1994), um veículo para Jodie Foster, o famigerado Gorillas in the Mist (Gorilas na Bruma, 1988), que punha Sigourney Weaver a contracenar com gorilas, e The World is Not Enough (007 – O Mundo Não Chega, 1999), mais um episódio da saga James Bond, se bem que nunca um grande filme – não tivesse retomado o documentário sete anos depois. Aos 22 anos, Apted havia colaborado em Seven Up! como pesquisador, tendo a selecção das crianças também passado por ele. Em 1970, quis saber por onde elas andavam. Acabou por tomar conta do projecto e, a partir daí, regressou todos os sete anos, com um lapso ou outro (alguns “objectos de estudo” recusaram-se a reaparecer), às suas vidas. Assim, o espectador pôde ver o crescimento destas pessoas, da adolescência aos primeiros casamentos, do divórcio à morte dos pais, da perda dos sonhos em favor da imperiosa necessidade de viver ao encontrar de uma certa paz de espírito. Os participantes da série Up (chamo-lhe assim por facilidade) têm agora 56 anos (a última edição 56 Up estreou em 2012), estão à beira da reforma, com netos e preocupações financeiras, e com aquela sabedoria dos anos que passaram (quem os viu e quem os vê).
Alguma vozes críticas se levantaram: Up seria apenas um glorified reality show (avant la lettre), em que o espectador se deliciava com os revezes de fortuna de pessoas comuns; a série procurava obcecadamente provar que as diferenças de classe determinavam as vidas das pessoas. A segunda crítica foi perdendo sentido, à medida que Apted deu conta que essa não era a força do programa, antes a peculiaridade de vida humana – ninguém “obedeceu” propriamente ao destino: nas crianças de sete anos, nos adolescentes de 14 e nos jovens adultos de 21 podiam observar-se vários traços de personalidade (que não correspondem necessariamente aos que assumiram depois) mas não as vidas daquelas pessoas, fosse pelas escolhas que fizeram, por doença, por necessidade, por vontade ou pelo factor que falha sempre a quem acredita a educação, o estrato social e o dinheiro conduzem necessariamente a uma direcção, a sorte. Quanto à primeira crítica, formulada até por alguns dos participantes em edições mais recentes, não é completamente deslocada – há óbvio prazer voyeurista, há uma óbvia confusão no espectador que começa a ver personagens no lugar daquelas pessoas bem reais -, só que Apted, com a habitual fleuma britânica, não atravessa (muitas vezes, pelo menos) a linha da privacidade. Existe algum critério, mesmo quando os “objectos de estudo” divulgam mais do que deviam (embora escape na montagem uma lágrima ou outra de gosto duvidoso).
Contudo, é interessante verificar como não só os espectadores vão perdendo a noção de que não estão perante personagens. O próprio Michael Apted revela, nesta entrevista a Roger Ebert e nalguns diálogos com os visados (não tenho a certeza se é corajoso da parte de Apted manter os momentos de tensão, quando os participantes questionam o conceito do programa, ou se a decisão de não os cortar se deve à conclusão de que se trata de “boa televisão”), que às tantas já não o sabe muito bem. Repare-se como parece ressentir-se do facto de alguns deles não seguirem as pisadas esperadas, como se fossem personagens que se rebelassem contra o autor (que, no fundo, as criou), ou como não acredita sinceramente que elas lhe possam sobreviver. Mais interessante ainda é perceber como é essa qualidade de romance, que segue a vida das suas personagens ao longo dos anos, documentando as variações de penteados, as nuances de pensamento, as mudanças de estados de almas, a natureza humana em toda a sua glória, que faz de Up um extraordinário programa televisivo.