“Prefiro assassinar mulheres bonitas a mulheres feias.” Esta frase contém variados pecados aos olhos e bocas de qualquer discípulo de Jesus Cristo Nosso Senhor, coisa que também eu o sou e com todo o orgulho. Para começar, a óbvia e diabólica referência ao assassínio, condenada no Quinto Mandamento das Sagradas Escrituras. Os impuros desejos remetem-nos para os Sexto e Décimo Mandamentos, dos mais importantes em termos de recato e ponderação. A menção de apenas preferir assassinar pessoas do género feminino envia-nos directamente para um dos mais belos Mandamentos, o 11º, “Não provocarás os escritos de Sontag, Mulvey e suas discípulas de big…” (auto-censurado). E, por último, há a maldosa e verdadeiramente nojenta discriminação de mulheres menos afortunadas em termos de beleza a favor de deusas tentadoras. Só este último ponto valerá o apático Paraíso ao autor da frase, de seu nome Dario Argento. E sorte terá se não apanhar Sontag, Mulvey e suas discípulas com bu…(auto-censurado).
Felizmente que esta pequena crónica tem os seus limites analíticos bem definidos, senão este texto que começou há alguns minutos talvez só terminasse no dia em que se encontrasse um “jornalista” televisivo norte-coreano que não apresentasse um “noticiário” televisivo como se estivesse no casting para a figuração do Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade, 1935). Desde a espantosa variedade da fauna feminina (um dos “mais belos dos filmes”, certamente), passando por temas como “psicanálise”, “repressão”, “influência dos media na sociedade”, “realidade vs. ilusão”, “metaficção”, “mise-en-abyme”, “luvas pretas”, “misoginia”, “canalizações”, “veja se consegue descobrir quem é o assassino ao fim de vinte e cinco minutos”, etc., há tanto por onde escolher em Tenebre (1982) que uma pessoa (ou até eu ) não sabe bem por onde começar, embora esse começo já se tenha iniciado há alguns minutos. Vamos falar de roubos.
Ao ver o mais famoso momento desta obra-prima só me conseguia lembrar de alguém chamado Brian De Palma e de suas gloriosas tácticas de ladroagem. Embora não tenha a certeza que tal esteja certo, era capaz de apostar a vida de alguém que não a minha que o igualmente célebre plano de grua no Scarface (A Força do Poder, 1983) veio embalado directamente de Tenebre, com lacinho e tudo. É basto provável que esteja a ser injusto e a cometer falso testemunho, mas como as consequências de tais escritos são nulas, não tenho medo. Agora vamos falar de cerimoniais.
As luvas pretas que remexem no livro no início do filme são pertença do próprio Dario. É possível que ele esteja a realizar os próprios filmes de luvas pretas, navalha na mão e collants na cara. E igualmente na sala de montagem. O plano-sequência com a grua é apenas a mais exposta e estilosa das dilatações temporais em cada assassínio, acto cuidadosamente preparado por Argento/Vilão bem antes de ele suceder, com deliciosas pitadas de sadismo e até burlesco. Cada matança é uma possível curta-metragem, que termina invariavelmente com as vítimas a suçubrar em golfadas de tomate e em posições artísticas, dignas de uma “instalação” de um qualquer “pensador contemporâneo”. Agora vamos falar de músicas.
Os Goblin, banda italiana de rock progressivo e companheiros de jornada (ou compagnons de route, se estiver na Zé dos Bois) de Dario Argento, são os autores da banda-sonora de Tenebre, cujo título principal se ouve alegremente no plano-sequência. É algo que tem tudo para não resultar, mas não, resulta mesmo. O movimento da câmara, a sua fluidez e tal, parece pedir “tensão silenciosa”, coisa que dispensa a expressionista e espalhafatosa música dos Goblin. Mas atendendo a que estamos perante um giallo e em absoluta concordância (um “filme coerente”) com os exagerados e minuciosos preparos para os grandes guignóles de Argento ao longo do filme, a cavalgada musical dos Goblin fabrica delícias por ali. Depois, os olhos de Mirella D’Angelo. Até olham para a câmara. Olham para todo o lado: câmara, espectadores, Argento, assassino. Piedade, meus senhores. Agora uma questão de gritos.
Um ano antes de Tenebre, e voltando a De Palma, Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981) iniciava-se com uma sequência de POV que acabava com um ridículo grito de uma das vítimas, algo que Travolta corrigiria mais tarde com a prestimosa ajuda da Nancy Allen. Daria Nicolodi, no final de Tenebre, rebenta num dos gritos mais horrorosos da “história do cinema”, num lastro de perplexidade face ao que a sua personagem está a ver que uma pessoa (ou mesmo o António José Saraiva) quase acredita que é a própria Nicolodi que está em situação de apertos com as armadilhas emocionais do senhor Argento. Na versão em língua inglesa, Daria teve a ajuda da voz da desaparecida Theresa Russell. Agora vamos discorrer sobre mamas.
http://www.youtube.com/watch?v=xL2hVO5BRIQ