Este ano o Panorama dedica duas sessões às produções de Guimarães – Capital Europeia da Cultura, apresentando Domingo dia 5, pelas 21:00 horas, na Sala 3 do cinema São Jorge, O Fantasma do Novais (2012) de Margarida Gil. Joaquim Novais Teixeira foi um jornalista e crítico de cinema que nasceu em Guimarães cuja importância para o mundo cultural (do cinema e não só) é inestimável, sendo que poucos se recordam dele e pouco (ou nenhum) dos seus textos estão hoje publicados para que as novas gerações os possam conhecer.
Como disse a realizadora, este é um filme contra essa especialidade portuguesa que é o esquecimento. Assim sendo Margarida Gil dedica-se a dar a conhecer essa figura, a sua forma de ser, o seu trabalho, as suas vivências, partindo fundamentalmente daqueles que com ele privaram – amigos, conhecidos, colegas, filhos de amigos de primos e por aí. As entrevistas são mais que muitas e temos de tudo, de Manoel de Oliveira ao filho de Buñuel, passando pelo Júlio Bressane e por António da Cunha Telles, visitando também J. Rentes de Cravalho ou Júlio Pomar assim como o crítico literário brasileiro António Cândido. E ainda Eduardo Lourenço. Uma miríade de entrevistados que levaram a realizadora a passar por 4 países – Espanha, França, Brasil e Portugal. Esta dispersão era uma necessidade dado que por todos estes países passou Novais Teixeira e em todos criou laços e de certa forma consegue dividir para reinar, isto é, multiplicando os entrevistados acaba por dar importância a Novais Teixeira. Mas dada a pluralidade de testemunhos Margarida Gil deve ter-se perguntado como os haveria de unir num todo coeso, a resposta que desencantou foi uma proto-ficção encabeçada por Cleia Almeida.
A actriz interpreta uma jovem investigadora que tem que apresentar dentro de dias um trabalho sobre Novais Teixeira – uma Margarida Gil enquanto nova, já que a realizador conheceu o crítico quando este ainda era vivo – e por isso conhecemos as dificuldades amorosas e técnicas da jovem bolseira que tenta dar sentido às horas de filmagens que conseguiu compilar. O dispositivo salva o filme do formato making-of onde o acumular de palavras laudatórias é invariavelmente aborrecido, no entanto essa saída termina num beco. Ao situar o seu centro de acção em Guimarães – cidade a que Novais Teixeira pouco mais se liga a não ser pelo cordão umbilical – como era necessário dada a natureza do projecto, percebemos que o resultado é desnecessariamente esquemático, num vai e vem de computadores que traçam a traço grosso uma narrativa com pés de barro [chega a fazer lembrar o Road to Nowhere (Sem Destino, 2010) de Monte Hellman]. No entanto, também é verdade que estando o filme sediado em Guimarães abrem-se portas para as suas gentes, para a senhora vetusta que ralha com a menina por não largar o computador e se pôr a namorar, ou a velhinha que vem chatear o malandro que não quer trabalhar. Margarida Gil consegue, por entre portas, criar uma linha feminista que conduz a componente ficcional – ainda que também demasiado esquematizada.
Também da produção vimaranense chega-nos o novo filme de Rui Simões, Em Honra de São Gualter (2012), e de Regina Guimarães, A Menina dos Olhos (2012). Ambos fazem parte do conjunto de 12 curtas metragens que Guimarães produziu com o título de conjunto, História de Guimarães. Conjunto que inclui também João Canijo, João Pedro Rodrigues, Tiago Oliveira e Bruno de Almeida entre tantos mais. Rui Simões filma as festas de São Gualter desde a a construção dos carros alegóricos até aos carrinhos de choque e algodão doce, passando pelas corridas de cavalos, pancadarias e terminando com o desfile, o fogo de artifício e a destruição dos carros. Entristece-me que um realizador tão marcante do documentário português venha, em anos recentes, filmando como se de uma reportagem televisiva se tratasse, ou neste caso, um vídeo do turismo local – com banda sonora dos Deolinda. O olhar de Regina Guimarães é de outra natureza e de olhares é o seu filme. Trata-se da festa da Santa Luzia que é a protectora dos olhos e portanto padroeira dos que fazem o que não deve ser visto, isto é um beijo roubado ou uma passarinha oferecida. É costume em Guimarães, no dia da Santa, os moços oferecerem um doces fálicos feitos de farinha de trigo (ou fécula de batata) e açúcar às suas namoradas – chama-se o sardão – e as meninas oferecerem ao seus pretendentes um doce conhecido como a passarinha; tudo muito ao jeito nortenho. A propósito disto Regina Guimarães entrevista vários casais e pergunta-lhes sobre o amor e a paixão; pena que o resultado seja tão amador – onde o arrasto do digital não ajuda em nada. Os dois filmes são exibidos no Sábado dia 4 pelas 15 h no cinema São Jorge.
Também de amores fala Leonor Noivo no melhor filme que vão poder ver no Domingo dia 5 pelas 19:00 no cinema São Jorge. Outras Cartas ou o Amor Inventado já havia passado pelo Doclisboa e agora surge aqui para quem o não teve oportunidade de ver. A voz da realizadora conduz-nos numa investigação que tem tanto de científico como de obstinação pessoal pelos amores e como eles são e de que forma se comportam e caracterizam. Motivada pela descoberta do livro As Novas Cartas de Amor Portuguesas, proibido durante a ditadura por se considerar pornográfico – espécie de resposta às Cartas de Portuguesas de Mariana Alcoforado em jeito de rebate político ao regime – nos caixotes que a mãe havia deixado abandonados. Leonor Noivo quis descobrir o que pensavam as três Marias que o escreveram e o que pensam as marias e os antónios de hoje sobre o amor. Entre material de arquivo e entrevistas, Noivo pinta um retrato que não quer nunca ser de pormenor – quando nos fala da interpretação da ciências descreve as imagens de uma ressonância magnética como umas manchinhas vermelhas que parecem bolsas de magma – mas que também recusa uma visão estritamente poética ou emocional. Nesse balanço entre o rigor do método e a liberdade do olhar Leonor Noivo consegue um filme, que por entre travellings laterais lentíssimos, olha para o amor com a calma que o amor confere àqueles que estão apaixonados (nem que seja pelo cinema).
Dono de igual calma e equivalente olhar, tanto analítico como poético, está Thom Andersen com Reconversão (2012) sobre a obra de Souto Moura. O filme chama-se Reconversão mas podia ser chamado de Ruínas, não fosse o filme de Mozos ter chegado primeiro. Enquanto o filme de Mozos olha para o que está com a memória do que foi, Andersen vê em cada ruína um estado de passagem, uma adaptação irrevogável da arquitectura ao tempo e ao poder dos elementos – visão partilhada pelo próprio Souto Moura, que no final do filme partilha com Andersen, e com a sua câmara, num oscilante inglês, essa relação singular que o seu trabalho tem com o que já foi. Pontuado por uma narração pessoal enfeitiçante, vamos conhecendo cada uma das dezenas de obras do arquitecto – das construídas e das que nunca passaram do papel – e a propósito de cada Andersen oferece-nos um olhar eloquente sobre o que vê, na obra e no que a envolve. Daí que oiça-mo-lo falar sobre a poesia de um muro [e da poesia dos muros nos trabalhos dos Souto Moura – objecto primordial da (sua) arquitectura] ou sobre o despesismo dos interiores – convocando os GNR para a banda sonora – ou sobre a batida do kuduro e os graffitis arrivistas que se espalham pela paredes das nossas cidades. Andersen consegue, de forma aparentemente trivial, chegar a um país e filmar como se sempre cá tivesse vivido, ou talvez por não o ter feito, o seu olhar é límpido e o que nos mostra sobre nós é imparcial.
Mas Reconversão, antes de olhar para as obras de Souto Moura, olha primeiro para a origem de tudo o que é casa no norte, granito. Abre o filme numa pedreira e é de lá que tudo parte, como se a pedra tivesse já em si uma ideia de edifício, como se a própria pedra desejasse ser talhada e incrustada numa obra maior para, no futuro, voltar a ser ruína e de novo pedra. Num ciclo de extracção, construção e reconversão sem fim. O filme foi produzido como comemoração dos 20 anos de Festival de Curtas de Vila do Conde, através do projecto Estaleiro, em que estudantes de cinema trabalharam em diversos filmes em funções técnicas – nomeadamente com realizadores como Canijo [cujas filmagens deram origem ao recém estreado É o Amor], João Pedro Rodrigues, Sergei Loznitsa, Graça Castanheira, Gonçalo Tocha entre outros. Tem exibição Sábado dia 4 às 17h no cinema São Jorge.
Onde a câmara de Andersen, por ser estrangeira – via na pedra a base de uma certa portugalidade – a câmara de Botelho vê na pedra isso mesmo, agora não por ser estrangeira mas por ser infinitamente dedicada ao lugares. Aquanto La Lhéngua Fur Cantada (2012) é o terceiro filme da trilogia que o realizador dedicou a Trás-os-Montes. O primeiro filme, A Terra Antes do Céu (2007), era uma encomenda para comemorar os 100 anos do nascimento do escritor Miguel Torga e Botelho convocou o actor José Pinto para dar corpo ao escritor e voz às suas palavras. Era um filme todo vivido entre o prazer da língua que lê as palavras torneadas por Miguel Torga, entre passagens do diário, poemas e contos – a voz de José Pinto era particularmente terna. Botelho pediu também a uma série de compositores portugueses que compusessem sobre as palavras de Torga. O resultado é um passeio pelos montes transmontanos onde Pinto/Torga caminha por entre flores e pedras (muitas pedras) sempre com o seu livro na mão. Já no segundo tomo da trilogia, Para que este Mundo não Acabe! (2009), tínhamos de novo um actor a conduzir-nos (literalmente de jeep), Marcello Urgeghe. Desta vez a ficção era mais evidente e o passeio à zona do Barroso era impregnado por uma relação em desmoronamento entre um jornalista (que ia ao norte para escrever uma reportagem) e sua mulher. Começávamos o filme a bordo de um carro na auto-estrada – era com certeza um olhar urbano que viria – e a pouco e pouco íamos entrando nos castelos e nos castros e nas ruas empedradas das aldeias empedernidas. Citando textos de português antigo e revelando factos históricos sobre os locais, a narrativa avançava tremulamente por entre as rochas ásperas. Curioso será reparar como a linguagem de Botelho evoluiu tanto em tão poucos filmes. No primeiro os filtros tentavam ocultar o digital – como em Corte do Norte se tornaria evidente – mas no segunda já nada disso aparecia e a cristalina imagem digital era assumida sem sujidades, no entanto o resultado da ficção desequilibrava o conjunto e o excesso (nomeadamente na cena de sonho) desviava o filme das gentes (que a câmara generosamente filmava).
Agora, com Aquanto tudo isso foi posto para trás e o resultado é belíssimo (o melhor filme do Panorama 2013?), de novo uma actriz – a lindíssima Catarina Wallenstein – e de novo a paisagem pedregosa de Trás-os-Montes. Mas desta vez não há jeep mas sim um burrinho, e já não estamos presos a um ir e voltar entre a orquestra e os montes. Em Aquanto, encontra-se nas paisagens a música e no mirandês a língua dessa música (e em Wallenstein a musa inspiradora). A actriz dá voz às cantigas tradicionais e o filme consiste disso mesmo, de um par de saltimbancos – Catarina e o seu acordeonista, Gabriel Gomes – que viajam pelos montes de terra em terra cantando. Não há uma linha de diálogo no filme (apenas os conselhos à borda de àgua sobre os melhores bovinos), mas no entanto é a fisicalidade (e o olhar) que a actriz confere ao filme que o elevam ao paroxismo da arte de Botelho. Está lá tudo, uma teatralidade muito própria, um trabalho infinito de iluminação, uma acção operática que termina numa assustadora cantiga religiosa a fazer lembrar o coro infantil de O Filme do Desassossego. O filme passa esta noite , sábado dia 4, pelas 21h no cinema São Jorge.
Embora não tenhamos visto um dos filmes que a compõem (A Luz da Terra Antiga de Luís Oliveira Santos), vale ainda a pena espreitar também hoje à tarde, às 19:00, no Cinema São Jorge, a sessão que o Panorama dedica ao recente cinema documental que se ocupa do tratamento dos espaços (urbanos e não só). Abre-se com a curta-metragem de Inês Teixeira, já exibida no Fantasporto este ano, realizada no âmbito do Laboratório Experimental da Escola Superior de Teatro e Cinema. 5040, é o enigmático número que Platão descobre em “A República” para a exacta quantidade de proprietários de terra que deve ter uma cidade ideal. É essa dimensão ideal, mas também o que faz algo já ser (ou ainda não ser) cidade, o que move o percurso exploratório desta reflexão urbanística, que busca na fixidez dos planos e das linhas uma intuição arquitectónica para esta questão, mas que nunca abdica de uma voz off pessoal, um tanto lírica no seu sussurro, como que a perscrutar a dimensão invisível das cidades. Com um tema um tanto abstrato, este início de exploração que agora vemos talvez seja o impulso ideal para uma longa-metragem, um filme feito cidade, isto é.
E é fácil encontrar o raccord para o prato forte desta sessão, A Rua da Estrada, belo documentário que Graça Castanheira realizou no âmbito do projecto Estaleiro para Vila do Conde. Essa ligação está na voz off doce (nunca lírica, esta a diferença) da realizadora que dá um tom sereno ao filme e que orienta o espectador para um fio de reflexão sobre esse conceito que baralha o urbano e o rural: a rua da estrada. E com ele o desafio vivencial (nem sequer vale a pena manter-nos apenas no plano da forma e da arquitectura) que é o de erigir um centro num “corredor”, numa perpétua margem. Mas o que nos fica de marcante nesta A Rua da Estrada nem sequer são as imagens do que é rua improvisada na berma: os seus cemitérios, tabuletas, sinais, montras, casas impossíveis, dinossauros (!) etc. O que fica é essa capacidade de jogar sempre entre o olhar quase-ensaístico (o filme parte do livro homónimo de Álvaro Domingues) e o olhar pessoal, à falta de melhor palavra. De uma parte Corbusier, a dimensão “wikipedista” da rua da estrada, a criação mitológica e bestiária dos leões, dos burros e sobretudo dos “tourigalos” da Maia. No fundo estamos a falar de um olhar que vê, regista, mas que produz, no mesmo gesto, “teoria” a partir de um espaço. Da outra parte, A Rua da Estrada acarinha uma estrutura de poema (a repetição “na rua da estrada” na voz off) e a possibilidade de experimentação – o magnífico plano do senhor que corta a relva junto à estrada a declamar “Verdes são os campos” de Camões, enquanto ouvimos a voz da própria realizadora). Se o desafio dos habitantes da rua da estrada é “fazê-los parar” (aos condutores dos carros que passam sempre), o nosso desafio é antes fazer circular a identidade (interminável, no fundo) do documentário. Neste caso, criou-se na passagem, naquilo para o qual se olha quando avançamos no espaço, um espaço de misteriosa comunhão entre o gesto artístico, o gesto reflexivo e aquilo que, por mero desleixo, chamamos realidade.
Se no filme de Graça Castanheira a montra é um importante espaço de sedução (pará-los, já se disse, é a palavra de ordem), em Pequenos Teatros de Rua de Regina Guimarães, as montras do Porto são palcos para os quais cada vez menos gente olha. Por isso, o documentário abdica quase das vozes das pessoas, e com a música de Pedro Moura a trabalhar uma espécie de dimensão “nostálgico-futurista” de uma cidade e seu comércio, regista os traços da onda na areia antes de ela desaparecer para sempre. Por isso, nem sequer era preciso chegar ao fim do filme e lermos o título completo Pequenos Teatros de Rua na Minha Cidade Quase Morta para perceber que o filme de Regina trabalha essa qualquer coisa que está sempre em tensão, em vias de desaparecer, como um teatro (já de si efémero) sem espectadores, precisamente. O filme de Regina lembra-nos um pouco a excepcional curta-metragem de Sandro Aguilar A Serpente (2005) mas como se a esta se tivesse acrescentado uma qualquer dinâmica (pela montagem) e daí, uma desnecessária vontade de mediar as imagens e uma intenção. Por isso, Pequenos Teatros precisa de indagar constantemente os objectos (sejam eles os anéis, os sapatos, as velas), os manequins, para estes nos mostrarem algo que recua (a onda que recua), que desaparece. No final fica-se com a sensação de que a montagem podia deslumbrar-se menos com o quê (de que serve o plano da rapariga a comer sobre um fundo de alheiras?) e trabalhar mais as paragens musicais como elemento da ordem do especial, do dramático, ou o fora de campo sugerido pelo olhar dos manequins ou dado pelo reflexo das montras.
Ricardo Vieira Lisboa e Carlos Natálio