O penúltimo de François Ozon [que, entretanto, já lançou Jeune & Jolie (2013) no último Festival de Cannes] roça o género do thriller com que o realizador francês já flirtou algumas vezes no passado. Roça, porque, ao contrário do que o trailer (um tanto sensacionalista) fazia prever, o mal estar nunca irrompe em verdadeira violência (pode argumentar-se que existe violência psicológica, mas num sentido diverso daquele do que o referido trailer prenuncia). E, no entanto, Dans la maison (Dentro de Casa, 2012) é um filme desconfortável, principalmente para o espectador, que se vê quase forçado a observar-se a si mesmo.
O argumento de Dans la maison, adaptado de El chico de la última fila, uma peça de Juan Mayorga, versa sobre a relação de um professor enfastiado e um aluno fascinado com a “família normal” de um colega de turma. A relação que nada tem sexual, como algumas personagens (e mesmo o espectador, a espaços) temem, e se é de, alguma forma, abusiva (da parte de quem?, contra quem?), também é consentida, baseia-se, a princípio, nas qualidades literárias de Claude, o aluno, que Germain, o professor, inveja. Durante muito tempo, esta caução artística serve para escamotear – para as personagens, para o espectador – o verdadeiro tema do filme: o voyeurismo. É que o jeito para escrever de Claude (o seráfico Ernst Umhauer) está ao serviço da sua obsessão com a vida de classe média da tal família, obsessão, essa, que vai sendo partilhada por Germain (Fabrice Luchini, de uma sofreguidão crescente) e pela mulher deste, Jeanne (a cada vez mais francesa Kristin Scott Thomas).
Por muito que Germain, um apaixonado pela Literatura e escritor falhado, empreste livros a Claude, lhe fale de personagens, de objectivos, de antagonistas, de conflitos, de Aristóteles, para vivificar a sua escrita, o cerne da fascinação está nas pessoas bem reais que o jovem disseca: a balzaquiana Esther (a ainda belíssima Emmanuelle Seigner), que preenche as horas vazias do dia preocupada com redecorações e está ligeiramente farta de Rapha pai, o marido meio pateta alegre meio patético, e Rapha filho, que esconde um desejo inconfessável naquele mundo tão composto. Claude sabe-o bem, os seus “à suivre” têm como propósito manter o interesse do professor menos na escrita do que na “história” e nas “personagens”. E, se se pode escrever que Dans la maison também tem um discurso sobre a ficção, os seus limites, as suas regras, o que faz um bom escritor, etc., ou que também é um interessante estudo sobre o que está por trás da mediana (mediocridade) burguesa (mas não de uma perspectiva sórdida: Claude finalmente descobre a particularidade de qualquer tipo; de outra maneira, a experiência não seria tão viciante), a principal problemática do filme prende-se com o lugar do destinatário da obra de arte na própria obra de arte.
Aos poucos, Germain, já não tanto professor como leitor de Claude, é envolvido na própria história, de tal forma deseja, por vezes contra vontade, saber como acabará. E será dele o maior pecado (e é ele quem mais paga pelos seus pecados), quando viola os seus princípios para que a situação continue, uma e outra vez. E é nesse momento que o espectador, mesmo impossibilitado de tomar parte do enredo, é colocado numa posição incómoda. O pecado de Germain, o leitor incauto, é também o pecado do espectador de cinema, um voyeurista inveterado, recolhido no escuro da sala, do lado de cá do ecrã, a observar pedaços de vidas que não são suas, humilhações e tristezas alheias, alegrias e prazeres dos outros. Dada a oportunidade, o preço que este pagaria para dispor deste prazer seria apenas o do bilhete ou também se aviltaria como o professor, arriscando-se a perder tudo?
O final, previsível e evitável, contrariamente aos enunciados preceitos de Aristóteles, acaba por explicitar escusadamente essa corrente, com aquele plano roubado a Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) de Alfred Hitchcock. E é exactamente no último quarto que um bom filme sobre o papel do espectador na ficção se espalha, talvez com medo de encontrar todas as conclusões da sua premissa. Não é fácil olharmo-nos nos olhos.