Da janela podemos ver o mundo. Uma moldura que se assemelha ao quadro cinematográfico, pela forma como enquadra as imagens do exterior. Em cada janela, uma pequena e intimista sinfonia urbana (ou rural…) ganha vida. Este cinema natural e espontâneo merece a homenagem dos nossos redactores nesta Sopa de Planos imune a correntes de ar.
O “brando movimento do seu leque chinês”, frase perfeita na descrição de Singularidades de uma Rapariga Loura (2009); é este leque chinês, que vai e volta, torce e retorce, em movimento perpétuo, roçando a face da rapariga loira, que olha através das plumas azuis; é com este leque, que impregna em cada segundo, que Catarina Wallenstein aparece numa sensualidade recatada pelas cortinas da sua janela, e é entre sucessivas ondas de pano e pluma que surge uma cabeleira Loura e um olho, que nos olha, a nós espectadores, como que nos hipnotizando na sua infinita pureza e perversidade. Aqui o(s) plano(s) à janela funciona(m) em rima com os de Amor de Perdição (1979), onde a janela toma o papel de abertura para o outro – o ser amado (ou nem tanto, neste Singularidade) – mas ao mesmo tempo de barreira, porque a janela separa o interior do exterior e, portanto, o espaço familiar da moça do espaço romântico do rapaz. Mais ainda, as janelas trabalham uma ponte entre a família de nascimento e a família de construção (por amor ou por interesse) e, como tal, funcionam no cinema de Oliveira menos como uma entrada para a brisa da manhã e mais como uma ranhura entreaberta que deixa entrar o bafo quente do fim de tarde – que perpetua a instituição num formato que já não faz sentido na ‘actualidade’.
Ricardo Vieira Lisboa
Um tipo chega a casa à noite sozinho e não lhe apetece bem dormir – não, prefere sonhar acordado com aquilo que o dia lhe tinha prometido. Tantos dias assim. Passeios com belas mulheres em CinemaScope, uma melodia de seduções e encantamentos, luzes calorosas e assentimentos arrebatadores. A distância entre o sonho e a sua realização é uma janela, o problema é que dá para ficar aterrado e imóvel nesse limbo belíssimo e terrível que são as suas promessas. “Ai que prazer não cumprir um dever”. E ficar a olhar com tudo menos nobreza para quem se passeia, avesso a tudo isto à nossa frente. São precisos uns cigarros, umas recusas e umas quantas noites em claro para perceber que nem tudo o que vemos da janela é nosso de direito. Talvez esperar mais umas horas e continuar a sonhar até a cidade acordar e por outra janela nos mostrar que vem outro dia e que Lisboa, “essa, de tão naturalmente matinal, como tem tempo, não tem pressa”. Que o som do trânsito e da engrenagem urbana, mesmo cortando a música e os últimos desejos, é também o som mais apaziguador do mundo. É som doutras promessas.
João Palhares
Era Serge Daney que dizia que “a modernidade se traduz num grande número de corpos filmados de costas”. Moderno ou não, este é o primeiríssimo dos planos de The Back of Her Head (2007) que nos mostram a parte de trás da cabeça dela. As costas dela – ela, cabeça, ela, rapariga – despertam a atenção dos olhos dele. Um boy meets girl dá as mãos a um neighbor meets neighbor. E, mesmo assim, virada de costas, sobre o parapeito da janela, ela dá-se a ver inteira a ele – esqueça aqui o sentido da velha expressão “querer vê-la pelas costas”. Ele olha e sonha acordado com uma serenata ao som de “Cupid” cantada por um Sam Cook em versão marreta: “I love a girl who doesn’t know I exist”. Ele não existe na vida dela e, se nada fizer, assim permanecerá. Até ao encontro, olhos nos olhos, ele vai tornando o frame da sua janela no único ecrã possível para uma história de amor com a vizinha. O namorado dela será o vilão neste pequeno conto urbano filmado de cima, à espera, talvez, de um olhar que volte, de umas costas que virem rosto e façam ascender – um andar bastará – a mensagem do cupido. Josh Safdie realiza e protagoniza esta curta de 21 minutos fazendo entrar (pelas janelas, precisamente) a mesma aragem leve e docemente melancólica que atravessa os brilhantes The Pleasure of Being Robbed (2008) e Go Get Some Rosemary (Vão-me Buscar Alecrim, 2009).
Luís Mendonça
É bem conhecida a história dos cortes abruptos de Greed (Aves de Rapina, 1924) – desde a versão mítica de 8 horas que Stroheim montou a partir das 85 (!) horas que filmou, até à versão da MGM de 2 horas e picos, passando por uma intermédia de 4. Estas histórias de medidas, um subplot histórico entre a “ganância” comercial do cinema e o seu poder artístico, transformam hoje o filme e a sua mítica versão integral num santo graal dos filmes perdidos… Para além da falta premente que este filme nos vai fazendo [ao concretizar, sobre a vileza do dinheiro, uma das enunciações da “intolerância” griffithiana (1916)], ele é um extraordinário tratado de cinema na forma como coloca lado a lado noções de gramática narrativa do seu mestre Griffith, mas também grandes planos “soviéticos”, ou antecipando a profundidade de campo de Welles em quase 20 anos. Nesta cena, à janela não há ninguém. Ou melhor, estamos nós, a ver aqui o casamento de McTeague e Trina, e ali, lá fora, do lado de lá da janela, o seu “futuro”, o seu desfecho em morte. Um casamento, uma marcha fúnebre, ao mesmo tempo, uma mesma realidade, um mesmo plano. Mais do que trabalhar a oposição entre amor e morte (ou, mais tarde, entre o peso amarelo, tintado claro, do dente gigante do dentista e a leveza amarela do seu pássaro engaiolado), o que está em causa é a presença de ambos na mesma realidade. É por isso tão difícil definir o que sente Trina pelo marido. É por isso que Stroheim dizia que Zasu Pitts era a maior “actriz psicopatológica” do cinema americano. Ora tentem lá perceber o que lhe vai na alma do início ao fim de Greed. Não é fácil.
Carlos Natálio
Numa das suas últimas obras-primas, Martin Scorsese retratou a alta sociedade nova-iorquina de fins do século XIX, um grupo regido por rígidas regras, mais apertadas do que qualquer espartilho que uma mulher pudesse usar, tão cruel e mortífero como o dos pequenos mafiosos de Brooklyn e Las Vegas uns oitenta anos depois. Nessa “idade da inocência”, desabrochava um belíssimo amor impossível entre o ingénuo arquitecto Newland Archer e a vivida e vilipendiada Condessa Olenska. Perfeitamente platónico, apesar de toda a gente ter a certeza (bastava o rumor, afinal) de que os amantes haviam consumado a paixão – uma fama sem proveito. Quando Newland se preparava para largar tudo por ela, a jovem mulher, bem mais astuta do que aparentava, soubera dar-lhe a volta, prendendo-o à vida que ele começava a detestar. Muitos, muitos anos depois, já as convenções de outrora não lembravam a ninguém (o século era outro) e a mulher tinha morrido, Newland tem oportunidade de rever a antiga amada. Dirige-se, com o filho crescido, a casa dela em Paris. Porém, decide não subir, para não estragar as memórias perfeitas de que vivera todo esse tempo. Arranja uma desculpa qualquer – “I’m old fashioned” – e senta-se num banco na rua. De repente, algo o faz levantar os olhos para a janela da Condessa. Num frémito, vê uma das portadas mexer-se até o vidro reflectir os raios do sol, como noutro tempo o mar. Fecha os olhos e sonha com ela, julga vê-la agora tal como ela era… Mas é só um criado, que veio fechar a janela. A expressão de desilusão no rosto envelhecido de Daniel Day-Lewis lembra-nos que existia um excelso actor no corpo onde agora existe um excelente caricaturista, bem como todas as vezes em que julgámos vislumbrar o ser amado e afinal era uma sombra, um móvel ou uma velhota anafada. Não é só triste como patético.
João Lameira